CARTA AO PRESIDENTE SAMORA MACHEL - 29 Março 1976



Denúncia das injustiças cometidas nos Campos de Reeducação, que D. Manuel Vieira Pinto pessoalmente visitou, e a defesa das liberdades individuais.
in D. Manuel Vieira Pinto – Arcebispo de Nampula. Cristianismo: política e mística. Antologia, Introdução e notas de Anselmo Borges, Porto, 1992, ASA

Na conversa que tivemos por amável deferência do Camarada Presidente em 5 de Janeiro do ano corrente, entre outras, pudemos abordar a interroga­ção levantada pelo povo acerca dos Campos de Reeducação.
Dizíamos então: «Os abusos já denunciados (com particular ressonância na reunião do Departamento da Defesa de 10 a 13 de Dezembro p.p.) levam o povo a interrogar-se sobre a seriedade dos Campos de Reeducação e suas condições de vida, talvez por falta de informação correcta». 

- Referindo os objectivos correctos dos Campos de Reeducação, o Camarada Presidente focou particularmente o valor da vida humana como princípio que levou a Frelimo a criar os campos, afirmando ao mesmo tempo que a destruição ou humilhação da vida humana (como seja o fuzilamento e os maus tratos) estão fora da linha correcta da Frelimo. 

- Apesar das diligências feitas ulteriormente pelo Governo, no sentido de eliminar possíveis abusos e de promover as condições políticas e técnicas que permitam aos campos realizar efectivamente os objectivos, conforme a linha correcta da Frelimo, a interrogação que o povo levantava não só conti­nua como tende a agravar-se, mercê das situações de desumanidade que, verdadeiras ou falsas, vão sendo conhecidas.

- Para nós é evidente que a Frelimo, sendo por definição e pela prática uma vanguarda revolucionária de libertação do Povo, não pode aceitar, sob pena de se contradizer, campos que em vez de recuperarem e reeducarem destroem e oprimem. 

- Dentro, por conseguinte, de uma colaboração leal com as estruturas, tanto da Frelimo como do Governo, no combate que o Povo moçambicano hoje trava para se libertar de toda a exploração (de toda a injustiça e opres­são, de todos os vícios e abusos degradantes, de todo o medo e ameaça), entendemos ser nosso dever pedir mais uma vez ao Camarada Presidente um  rigoroso inquérito» sobre os Campos de Reeducação. 

- Tal inquérito deveria permitir averiguar objectivamente a situação actual dos detidos, a culpabilidade de cada um deles, as condições e estrutu­ras políticas e técnicas dos campos, os programas de reeducação, os abusos cometidos, as injustiças praticadas.
- Deveria, além disso, proporcionar aos inocentes a liberdade imediata, aos culpados o direito de se defenderem e às famí1ias dos detidos uma infor­mação correcta. Na verdade, a detenção, o paradeiro e a sorte de muitos detidos constituem para as respectivas famílias um motivo de profunda angústia, além de ocasionarem boatos, gravemente prejudiciais ao avanço correcto da Revolução. 

- Juntamos um pequeno relatório que nos chegou, bem como algumas cartas de detidos. Embora deficientes, tanto o relatório como as cartas têm o valor de quem contactou directamente com os detidos e de quem viveu situ­ações concretas. 

- Desejaríamos que na construção da sociedade nova, o direito das pes­soas à justiça, consignado na Constituição, fosse inteiramente respeitado. Com efeito, «na República Popular de Moçambique ninguém pode ser preso e submetido a julgamento senão nos termos da Lei. O Estado garante aos arguidos o direito de defesa» (Artigo 35º), bem como as liberdades individu­ais a todos os cidadãos» (Artigo 33º). 

Por outro lado, «fazer respeitar a Constituição e fazer justiça a todos os cidadãos» é um dever que o Presidente da República a si mesmo impõe, quando, no momento da investidura, presta o seu juramento de honra (Artigo 50º). 

Cremos bem que ao «dedicarem todas as energias à defesa, promoção e consolidação das conquistas da Revolução, ao bem-estar do Povo moçambicano» (Artigo 50º) o Camarada Presidente e a Frelimo não deixam de ter pre­sente a justiça, sem a qual não é possível a libertação do Povo. 

- Pedimos que nos releve esta breve exposição. Fizemo-la, pensando na dig­nidade e vocação do Povo moçambicano e no desejo sincero de continuar­mos a trabalhar na construção de uma sociedade verdadeiramente liberta da exploração.

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