DESAFIOS DO TEMPO NOVO - 1976




DESAFIOS DO TEMPO NOVO
Reflexão com os Missionários de Nampula. 
Novembro de 1976


Vivemos um tempo novo em Moçambique.
Muito sumariamente, poderíamos assim caracterizá-lo assim:

1 - O tempo novo é um tempo de rejeição.
     Rejeição, de um modo cada vez mais consciente, de todas as formas de opressão, de todos os sistemas de exploração.
Rejeição, concretamente, do colonialismo, do capitalismo, do imperialismo; rejeição da exploração do homem pelo homem, não só no campo económico, como no campo cultural e religioso. Rejeição das relações sociais fundadas na desi­gualdade, na discriminação, na dependência e na humilhação. Rejeição do individualismo, do paternalismo, e dos deuses que não deixam os homens ser homens, sujeitos e não objectos da história.

Por isso, fazer a revolução em Moçambique é «liquidar a totalidade do sistema de exploração e opressão». E liquidá-lo até às raízes. E são raízes a propriedade privada dos meios de produção, a ideologia e cultura que a sociedade dos explora­dores segregou, o individualismo, a discriminação social, o ra­cismo, a ignorância, o obscurantismo e a superstição.
Esta ruptura com a exploração de qualquer tipo é um dos momentos essenciais da luta revolucionária. Ninguém poderá estranhar que a linguagem de todos os dias exprima a deter­minação de acabar com o sistema colonial, capitalista, fascista e a preocupação de destruir a sociedade velha e as mentali­dades que lhe são subjacentes.
«A nossa luta é uma luta de explorados contra os capita­listas. E uma luta de pobres para liquidar a injustiça social e transformar a sociedade»[1].

2 - O tempo novo é um tempo de invenção.
     A revolução pretende libertar o homem, o povo, as relações sociais; pretende criar uma nova sociedade, onde o homem não seja mais explorado pelo homem.
«E a revolução que instala no poder as massas exploradas, as massas que viviam oprimidas e forçadas à passividade». «E a revolução que, destruindo o sistema de exploração, constrói uma nova sociedade libertadora das potencialida­des do ser humano». «É a revolução que reconcilia o homem com o trabalho, com a natureza, com os outros homens».
«Só a revolução é capaz de resolver definitivamente a con­tradição que existe entre as massas populares e a ordem so­cial exploradora, porque só ela incarna os interesses das mas­sas exploradas, as mobiliza, organiza e une para o combate; só ela é capaz de destruir a ordem social antiga»[2].

 3 - O tempo novo é um tempo de mobilização.
«A construção da nova sociedade é inseparável da criação do homem novo, da criação de novas consciências e de novas relações sociais.
«Impõe-se, por isso, um trabalho árduo de educação da consciência, não só porque a modificação da mentalidade não surge automaticamente com a transformação da infra-estru­tura, mas também porque à nova mentalidade se opõe activa­mente a enorme e pesada herança do passado»[3]. «Sem a cria­ção de uma nova mentalidade, a luta pela criação de novas estruturas fracassará»[4].

A politização aparece-nos assim como um dado de fundo na revolução e como condição indispensável de qualquer avanço. O trabalho político é o primeiro factor da construção da nova sociedade. É a tarefa prioritária. «Não podemos nunca aban­donar o trabalho político, não podemos desprezar nenhuma oportunidade para elevar a consciência política do Povo»[5]. Por outro lado, «não há tarefa que não tenha o seu conteúdo político, não há centro que não seja difusor da linha política, não há iniciativas sem objectivo político»[6].

4 - O tempo novo é, em definitivo, o tempo do homem novo e da sociedade nova. 

E se identificarmos o homem novo com o homem socia­lista, poderemos concluir que o tempo que vivemos é o tempo do socialismo, como ontem foi o tempo do colonialismo e do capitalismo. Na verdade, «a tarefa da revolução, nesta segun­da etapa da luta, é construir o socialismo». «Acabou a primeira etapa», ou seja, «a tarefa da Frelimo em conduzir o povo à independência». «Mas agora, na segunda etapa, a nossa tarefa é a construção do socialismo, ou seja, a construção de um sis­tema elaborado pelas classes trabalhadoras e exploradas de todo o mundo, no processo da sua luta pela conquista do Po­der e pela edificação da nova sociedade» «onde todos contri­buam, de acordo com as suas capacidades e onde a cada um caberá segundo as suas necessidades»[7].

5 - Nesta perspectiva serão certamente imperativos da Re­volução de Moçambique, a igualdade fundamental de todos os cidadãos, o trabalho, a produção colectiva, a propriedade co­lectiva dos meios de produção, a justiça social, a solidarieda­de, a consciência de classe operário-camponesa, a edificação do Poder Popular, a unidade nacional, o internacionalismo, o de­senvolvimento da personalidade moçambicana e da mentalida­de revolucionária, o combate pela liquidação do colonialismo, do capitalismo e do imperialismo.

6 - Será oportuno acrescentar que o tempo novo é tam­bém, neste momento, um tempo de transição.
Transição necessariamente longa, difícil e dura, dado que serão profundas as transformações a imprimir à sociedade e muitas as tarefas a enfrentar.
Transição de uma sociedade explorada pelo capitalismo e pelo colonialismo para uma sociedade em que o Poder (polí­tico, económico, cultural) pertence aos explorados.

7 - O tempo novo é também um tempo de desafio.
Desafio à capacidade criadora do Povo, ao espírito solidá­rio dos homens, à esperança numa terra liberta da «opressão, da exploração e humilhação»; desafio dum modo particular à Igreja, dado o seu passado e o juízo que pesa sobre ela.
Desafio a toda e qualquer religião, uma vez que a «crítica da religião é a condição preliminar de toda a crítica»[8].

A Revolução desafia efectivamente a Igreja. O Povo de Is­rael ao atravessar o deserto, após a saída do Egipto - a casa da escravidão - experimenta a provocação e o desafio. Mui­tos, de coração transviado, nada entenderam e, por isso, não chegaram a entrar na terra prometida. Para a Igreja em Mo­çambique, saída também ela da casa da escravidão - colonia­lismo - chegou certamente o tempo da provação e do desafio.

A Revolução é para a Igreja um tempo de prova e de de­safio. Tempo de graça, pois que se por um lado purifica a Igreja das estruturas, dos métodos, das situações que a torna­vam de algum modo poderosa e aliada dos poderosos e como tal mais próxima dos ídolos do que de Deus vivo, por outro lado cresce na medida em que se vê obrigada a responder, se­gundo o Evangelho, aos desafios que lhe são feitos. Diante das críticas, das incorrecções ou das acusações justas ou in­justas, não deixemos, por isso, que se fale de perseguição. Falemos antes de tempo de graça, caracterizado, fundamen­talmente, pela provação que liberta, e pelo desafio que provoca de um modo novo a força criadora do Espírito. Será por con­seguinte oportuno descobrir os desafios que são postos à Igre­ja, hoje e aqui, e quais as respostas a dar.

8 - Desafio a rejeitar os sistemas de opressão.
     A Igreja deve rejeitar tudo quanto nela possa haver, ou parecer, de colonialismo, de capitalismo, de imperialismo ou de domínio. Isto significa, em primeiro lugar, desligar-se efec­tivamente, e não apenas historicamente, dos sistemas, das mentalidades, dos comportamentos que traduzam ou apoiem qualquer forma de colonialismo, de capitalismo e de imperia­lismo.

Significa, em seguida, descolonizar-se. E se a colonização pode ser traduzida em termos de domínio e de exploração, a Igreja descolonizar-se-á na medida em que abandonar tudo o que nela houver de domínio e de exploração.
Significa ainda entrar na luta contra tudo o que domina e explora o povo e aparecer historicamente ao lado dos oprimi­dos e explorados de todo o mundo na sua justa luta pela li­bertação.
A Igreja deverá rejeitar de igual modo os complexos de superioridade ou de inferioridade e os preconceitos que por­ventura a dominem por motivo de cultura, de raça, de ideolo­gia e de religião. Na sua condição de pobre com os pobres, de comunidade livre e libertadora, a Igreja deverá aparecer, desarmada, inteiramente disponível, sinceramente aberta e to­lerante. No momento em que vivemos, não faltam infelizmen­te complexos e preconceitos, uns espontâneos, outros sociais. Mas não serão os preconceitos um meio de defesa e de agres­sividade, frente à mudança e ao aparecimento duma sociedade que obriga a repensar a nossa identidade e a re-situar-nos his­toricamente?

Deverá, finalmente, abandonar todas as formas alienantes que a religião possa ter segregado em contacto com as diver­sas situações históricas, costumes e tradições.

Será necessário passar de uma «religião sacral a uma reli­gião secularizada», de uma «religião da natureza a uma reli­gião da liberdade», de uma religião do indivíduo a uma «re­ligião de comunidade», de uma «religião dos espíritos a uma religião dos homens», de uma «religião da harmonia a uma religião de afrontamento»[9]. Abandonar e combater a aliena­ção religiosa com mais vigor do que os ateus, pois a Igreja sabe que não se trata apenas de eliminar um obstáculo à li­bertação do homem, mas de suprimir os desvios que desfi­guram o verdadeiro rosto de Deus.

Enquanto existir uma ideologia, uma linguagem, um modo de pensar e de agir que alienem de algum modo os hom­ens na sua relação pessoal e comunitária, a religião continuará a ser justamente acusada e combatida em nome da dignidade da libertação do homem e do povo.

9 - Desafio a ler de um modo novo a história.
     Não terá chegado o tempo de lermos a história a partir homem, das suas relações e do seu projecto de liberdade e solidariedade? De eliminarmos o dualismo entre a fé e a vida, o natural e o sobrenatural, a história da salvação e a história ­profana? Não será esta a hora de esquecermos a leitura da história a partir dos poderosos, da ordem e da harmonia, e de a aprendermos a ler a partir dos pobres, da desordem e do afrontamento? A história que vivemos não terá nada com o cântico de Maria quando do seu encontro com Isabel? ­Não diz Ela que o aparecimento de Cristo na história depôs do trono os poderosos e exaltou os humildes, saciou de bens os famintos e aos ricos despediu de mãos vazias (Lc 1,46)?

10 - Desafio a discernir na Revolução os sinais dos tempos.
       É dever de todo o povo de Deus, mas sobretudo dos pasto­res e teólogos, auscultar, discernir e interpretar com o auxílio do Espírito Santo, as diversas línguas do nosso tempo e jul­gá-las à luz da palavra divina, para que a Verdade revelada possa ser melhor percebida, mais profundamente entendida e expressa em forma mais adequada»[10].

"Movido pela fé, pela qual crê que é conduzido pelo Es­pírito do Senhor que enche o universo, o Povo de Deus esfor­ça-se por descobrir nos acontecimentos, nas exigências, nos desejos do nosso tempo que compartilha com os seus contem­porâneos, quais sejam os verdadeiros sinais da presença ou dos desígnios de Deus»[11].

Para cumprir tal missão: «continuar a obra de Cristo que veio para salvar e não para condenar, para servir e não para ser servido»[12], a Igreja tem o dever incessante de perscrutar os sinais dos tempos e de os interpretar à luz do Evangelho, de tal sorte que possa responder de um modo adequado a cada geração, às eternas interrogações dos homens sobre o sentido da vida presente e futura e sobre as suas relações recípro­cas»[13].

Auscultar, discernir e interpretar as línguas dos nossos tempos; descobrir nos acontecimentos, nas exigências, nos de­sejos do nosso tempo os verdadeiros sinais da Presença de Deus, é um dever da Igreja. E serão sinais dos tempos a idade nova em que se encontra hoje o género humano, idade caracterizada por mudanças profundas, rápidas e universais na ordem cultural, social, psicológica, moral e religiosa, as condições e desequilíbrios provocados por uma evolução tão rápida; as aspirações cada vez mais universais do género hu­mano (aspirações à igualdade, à participação, à dignidade, à liberdade, à justiça, à comunidade)[14], a secularização que permite aos homens libertarem-se das forças da natureza, te­rem acesso ao domínio do mundo que lhes é dado por Deus e de se tornarem assim verdadeiramente responsáveis pela própria existência; a luta pela libertação de todos os tipos de opressão política, social, económica, cultural e religiosa, traduzida nas sucessivas revoluções contra o colonialismo-fascis­mo, a burguesia, a discriminação, o racismo; contra o capi­talismo e a exploração; contra o homem unidimensional (idea­lista ou materialista), contra a alienação e a tutela.

Não haverá na revolução, no tempo novo de Moçambique, línguas, acontecimentos, exigências, aspirações que traduzam alguns destes mesmos sinais? E não serão estes sinais, histo­ricamente vividos por nós, por esta Igreja local, presença e desígnio de Deus? Não será urgente conhecermos o tempo no­vo e interpretá-lo à luz da Palavra, do Amor e do projecto de Deus? Desde o momento em que o Senhor entrou na história dos homens, a história é presença de Jesus Cristo.
«Ele assumiu a nossa humanidade, a nossa história, o nos­so tempo, toda a criação e a fez sua». Deste modo a história humana é lugar de presença e de acção do Senhor. Em rigor não há duas histórias: uma humana e outra sagrada. Na his­tória humana vive e se manifesta Jesus Cristo. Nos aconteci­mentos, nas exigências, nas aspirações dos homens vive e actua Jesus Cristo[15]. Uma fé alheia à história e fora «dos acontecimentos e das aspirações dos homens» não seria a fé de Jesus Cristo. Seria uma fé alienante e alienada. Procurar conhecer os acontecimentos ou exigências, as aspirações da revolução é procurar descobrir no desenrolar da história moçambicana a presença do Senhor.

A libertação é uma das aspirações fundamentais da Revo­lução. É objectivo central, uma exigência radical. Libertação política, económica, cultural, libertação da classe operária camponesa explorada pelo capitalismo colonialista, libertação da mulher oprimida desde há séculos e reduzida à condição de instrumento de produção. Libertação da personalidade mo­çambicana abafada por formas caducas de culturas importadas ou impostas pelo sistema colonial. Libertação da energia criadora do povo humilhado pelos interesses do colonialismo e do imperialismo. Libertação das estruturas opressivas e criação de uma nova sociedade sem classes e sem exploração.

Mas a libertação que tem em vista o homem todo, com todas as suas dimensões, é um acontecimento intimamente ligado à vinda do Reino[16]. Embora o progresso terreno se deva cuidadosamente distinguir do crescimento do reino de Cristo, todavia, na medida em que pode contribuir para a melhor organização da sociedade humana, interessa muito ao rei­no de Deus.
Todos os valores da dignidade humana, da comunhão fra­terna, da liberdade, fruto da natureza e do trabalho, depois de os termos difundido na terra (...) voltaremos de novo a encontrá-los, mas então purificados de qualquer mancha (...), quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal: reino de verdade, (...) de justiça, de amor e de paz»[17].

A relação profunda entre a libertação do homem todo e todos os homens e o crescimento do Reino, deve levar-nos, por um lado, a amar seriamente as iniciativas verdadeiramente li­bertadoras nascidas do dinamismo da revolução e, por outro lado, a dar as mãos na luta pela destruição das estruturas e mecanismos opressivos e pela criação de uma sociedade mais livre e mais fraterna.
Constituir uma história livre da exploração, da injustiça e do ódio é anunciar o reino onde todos os homens possam, co­mo irmãos, descobrir e viver a plenitude da sua liberdade. Cristo nos libertou para que gozemos da liberdade (Gal. 5, 1) e da Paz.
Conceber a história como um processo de libertação do ho­mem é perceber a liberdade como uma conquista histórica, é compreender que a passagem de condições menos humanas a condições mais humanas não se dá sem luta.

11 - Desafio a inventar um modo novo de estar e de agir.
       Como estava a Igreja e como agiu na sociedade velha, na sociedade que deve desaparecer? Como deve estar e agir na sociedade nova, na sociedade que deve aparecer? Está posta perante um dilema: ou continua a estar e agir como ontem e correrá o risco de ser considerada estranha, ou encontrará um novo modo de estar e de agir e poderá ter lugar na sociedade nova.

Diga-se porém que este novo modo de estar e de agir não pode ser fruto de oportunismos, de uma técnica, ou de uma identificação com o tempo. Para ser autêntica, terá de ser fruto de uma profunda e sincera conversão ao Espírito e ao povo no qual vive e opera Jesus Cristo (Mt 25, 40). É possível que o novo modo de estar e de agir encontre a sua melhor expressão na Igreja-comunidade, na Igreja-sinal, na Igreja­-serviço.
É evidente que a Igreja-poder está sob denúncia - de­núncia da Revolução, denúncia de muitos cristãos - e parece não ter lugar.
Também é evidente que as aspirações mais profundas, o sopro do Espírito, os sinais dos tempos, aqui e hoje, nos indicam o caminho da Igreja-comunidade, da Igreja-serviço, da Igreja-sinal.

Responderemos, portanto, ao desafio, rejeitando o que há de poder na Igreja e promovendo o que há de serviço; sus­citando comunidades adultas na celebração da fé, da esperan­ça e do compromisso com a história; comunidades inteiramen­te ministeriais (o ministério do presbítero terá sempre o seu lugar) e inteiramente libertas do colonialismo, do paternalis­mo e do angelismo; comunidades-sinal da unidade universal, da liberdade pela libertação das opressões e da sua raiz fun­damental - o pecado; sinal da igualdade entre todos os ho­mens, da solidariedade sem fronteiras; sinal do homem-novo e da sociedade nova pelo triunfo de cada homem sobre o egoís­mo, pelo triunfo radical de Jesus Cristo sobre a morte.

Comunidades-serviço, ou seja, comunidades-abertas-enga­jadas, entregues como fermento na massa. Continuaremos então a dar o melhor da nossa atenção e do nosso esforço ao aparecimento da Igreja-comunidade, pelas comunidades que reunidas no mesmo e único Senhor, caracterizadas pela mes­ma e única fé, alimentadas pela mesma e única Eucaristia, organizadas pelo único Espírito são a mesma e única Igreja Universal, presente aqui e hoje.

Encontrar um novo modo de estar é encontrar um novo modo de agir.
O que definirá no tempo novo será o seu espírito de ser­viço. Mas não um serviço qualquer. Não será um serviço do maior ao menor, do que tem ao que não tem, que pode ao que não pode, do que sabe ao que não sabe.
Será essencial e claramente um serviço de pobres com os pobres, de igual a igual, de mútua ajuda e procura, de mú­tuo enriquecimento e combate. Será um serviço gratuito e silencioso, uma partilha e uma aventura comum.

12 - Desafio a encontrar um novo modo de evangelizar.
Sabemos que o Evangelho é sempre o mesmo. É boa-nova ontem e hoje e amanhã. Todavia o modo de o proclamar terá de ser diferente. Diferente como diferentes são os homens, as culturas, os tempos, os espaços históricos. O tempo novo de Moçam­bique exige um modo novo de anúncio e de denúncia. A Exortação Apostólica de Paulo VI sobre a Evangeliza­ção fala-nos de alguns modos de anúncios e de denúncia. Fixemos apenas três: o testemunho de vida, a palavra da vida, a dimensão comunitária.

Em primeiro lugar, o teste­munho da vida. Testemunho pela presença, pela participação e pela solidariedade. Estas indicações, além de oportunas, são fundamentais para a evangelização hoje. O evangelizador deve estar presente, deve participar, deve ser solidário. O Evangelho é presença, participação, solidariedade. Que signi­fica esta presença, esta participação, esta solidariedade?
Não constituem porventura estas indicações, as grandes exigências do tempo novo? Em termos de Revolução, pode­mos dizer que o «engajamento» é o novo modo de evange­lizar.

Além do testemunho da vida, impõe-se a palavra da vida.
O anúncio implícito exige o anúncio explícito.
Anúncio que é dar testemunho, de maneira simples e di­recta, de Deus revelado por Jesus Cristo no Espírito Santo. Testemunho de que Deus é Pai e que portanto os homens são irmãos uns dos outros.
Anúncio que é afirmação da vocação profunda e defini­tiva do homem, construtor e portador de história.
Anúncio que é mensagem de libertação integral; que in­terpela a vida toda, que tem em vista o homem todo.
Anúncio cujo centro é a proclamação clara de que em Jesus Cristo, morto e ressuscitado, a salvação é oferecida a todos os homens, hoje e aqui[18]. Assim considerado, não terá este anúncio lugar em Moçambique? Não estão nele tantos valores que a revolução procura?

Importa ainda sublinhar um terceiro aspecto no modo novo de evangelizar: a dimensão comunitária.
Evangelizar não é para quem quer que seja um acto in­dividual e isolado, mas profundamente eclesial.
Por outro lado, se cada um evangeliza em nome da Igreja, ninguém é Senhor absoluto da sua acção evangelizadora. Ele evangeliza em comunhão com a Igreja e com os seus Pas­tores. Quando ele evangeliza, é toda a Igreja que evangeliza.
Daqui a dimensão eclesial, comunitária da evangelização, o sentido solidário do evangelizador[19].
Não vai esta dimensão comunitária ao encontro de uma das aspirações profundas do tempo novo? Não constitui o individualismo, o liberalismo, o grupismo, o divisionismo, um obstáculo à construção da sociedade nova, um vício que urge combater?

13 - Desafio a viver e a exprimir uma consciência nova para um tempo novo.
Esta consciência nova implica, antes de mais, um sentido de responsabilidade perante os acontecimentos, os projectos, as medidas, as iniciativas, os riscos que dia a dia podem sur­gir como fruto do tempo novo de Moçambique. O cristão não é menos moçambicano por ser cristão. A fé em Jesus Cristo - vida e sentido último de todo o homem - não o torna um estranho ao seu povo; não o põe à margem da construção da história, da sociedade, da revolução; não faz dele um alie­nado, um adormecido à espera de um mundo que há-de vir e que nada tem a ver com o mundo que vem todos os dias; não o proíbe de anunciar qualquer tarefa libertadora. Pelo contrário, a fé - se é vida, se é força a provocar no homem a procura da própria plenitude e a dos homens seus ir­mãos - deverá tornar o cristão profundamente responsável, frente à construção da história. Um cristão que não tivesse, bem no íntimo do coração, o sentido da responsabilidade, seria uma negação. Não pode haver um cristão verdadeiro que não viva em todas as situações e em todas as tarefas um verdadeiro sentido da responsabilidade.

Estejam pois aten­tos, os cristãos, às tentações que as dificuldades do tempo novo podem trazer. Não faltará quem tente fugir, metendo-se na sua casa, ouvindo passivamente as palavras de ordem, fe­chando a porta às chamadas que lhe são feitas. Haverá tam­bém quem procure refugiar-se nos outros, afirmando que na­da sabem e que nada podem, tentando deste modo evitar qualquer risco. Há ainda quem procure confundir responsa­bilidade com ambição, assumindo cargos, realizando tarefas, não tanto para servir o povo, mas para se afirmar. A revo­lução chama-lhes oportunistas. O Evangelho chama-lhes ser­vos maus e diz que lhes está reservado um lugar de trevas (Mt 25).

14 - Desafio a repensar a Teologia e a Pastoral.
Não podem os cristãos de hoje ouvir e anunciar um Evangelho que nada tenha a ver com o sentido, os objecti­vos, os valores, os contra-valores da revolução. Não podem os cristãos refugiar-se num conjunto de verdades que em nada respondam às grandes perguntas da revolução. Não pode a Igreja apresentar uma teologia e consequentemente uma pastoral espiritualista, estática e ocidental, e arcaica. Para compreenderem e viverem as grandes interrogações de hoje, os cristãos, a começar pelos próprios missionários, têm necessidade de novas e adequadas perspectivas teológicas e eclesiais. Não se trata de inventar um novo evangelho. Trata­-se de formular e de exprimir de novo o Evangelho. E se a revolução é mudança, não precisarão os cristãos de uma teo­logia que responda às profundas mudanças políticas, sociais, económicas e mesmo religiosas? Não será oportuno dar aos cristãos a teologia que lhes permite fazer no dia a dia uma leitura evangélica da revolução? Será portanto necessário que os cristãos se habituem, nas celebrações, a ler correcta­mente a revolução e a interrogar a Palavra.

A credibilidade da boa nova está posta em causa. E não vale argumentar com discursos. O combate pela justiça e a participação nas transformações do mundo devem aparecer como dimensão constitutiva da proclamação do Evangelho (Justiça no Mundo). Hoje e aqui, urge mostrar, bem claro, que a libertação do homem tem qualquer coisa a ver com a salvação em Jesus Cristo. A palavra de Deus tem uma im­plicação política. Não pode estar fora do grande projecto humano; não pode ser alheia às grandes lutas dos homens. A palavra de Deus entra na história. Ela faz-se história e ca­minha connosco. É uma palavra que age e que faz (Is 55, 10).

Muitas vezes a palavra que anunciamos ou celebramos tem sido uma palavra vaga, não comprometida, desconhe­cendo, na prática, a luta de classes, os conflitos de interesses, as relações de força e pronunciando, em nome do valor Su­premo da Caridade, um discurso mais alienante que liber­tador.
A palavra, para ser eficaz, deve saber tomar partido. A li­bertação verdadeira e total do homem está inserida no cora­ção da mensagem de Cristo e da Sua acção salvadora. Não importa uma teologia de libertação ou sobre a libertação, mas uma teologia que tome partido deliberadamente pela li­bertação. Uma teologia que não se limita a falar de liberta­ção, mas que a provoca efectivamente.

15 - Desafio a praticar a autocrítica.
Fiel a Jesus Cristo e ao Espírito que a anima, renova e orienta, a Igreja será sempre em cada situação histórica «o sinal e instrumento de união íntima com Deus e da unidade de todo o género humano»[20]; «será sempre aquele orga­nismo visível, aquela comunidade de fé, de esperança e de amor, através do qual o Senhor Jesus comunica a graça e a verdade»[21]. «Mas enquanto Cristo, santo, inocente e ima­culado, não conhece pecado e veio expiar os pecados do povo, a Igreja reúne em seu seio os pecadores e, por isso, ao mesmo tempo que é santa, precisa também de purificação e sem descanso prossegue no seu esforço de penitência e renova­ção»[22]. Por outro lado, «a Igreja sabe que entre os seus membros, tanto clérigos como leigos, não faltou quem, no decorrer dos séculos, fosse infiel ao Espírito de Deus»[23]. Inserida na história, «servindo-se dos conceitos e da lingua­gem de cada povo»[24], não raro a difusão do Evangelho foi prejudicada pelas formas culturais, tornadas, num dado momento, contra-sinal. Por isso a Igreja «qualquer que seja o juízo da história, deve tomar consciência dos próprios de­feitos e combatê-los com a máxima energia»[25], e não colo­cando a sua esperança nas forças do mundo, renunciará não só às formas culturais ultrapassadas ou ambíguas, mas também ao exercício de alguns direitos legitimamente adquiridos, quando conste que o seu uso põe em dúvida a sinceridade do seu teste­munho, ou que novas condições de vida exigem outras dispo­sições»[26]. Nesta linha, as críticas que possam surgir da revolução deverão constituir para a Igreja um benefício e não um prejuízo, e a autocrítica deverá aparecer como im­perativo evangélico. Na verdade «a Igreja reconhece que muito aproveitou e pode aproveitar da própria oposição da­queles que a hostilizam e perseguem»[27].

16 - O programa pastoral, desde Julho de 1975, tinha as seguintes linhas fundamentais:

«Toda a Igreja em Moçambique deverá testemunhar cla­ramente a sua opção pelo Povo.
Todos os missionários deverão dar primazia de tempo, de energias, de criatividade ao crescimento, expressão e au­tosuficiência das comunidades.
Todas as comunidades deverão suscitar a partir do seu próprio seio os diversos ministérios.
Todos os cristãos deverão comprometer-se com as diver­sas tarefas da Revolução.
Todos os missionários deverão participar no crescimento do Povo»[28].  
Enunciámos estas linhas em reflexão comum, e ao longo de toda esta primeira etapa da revolução, temos procurado pô-las em prática. Muitas comunidades surgiram. Muitos as­sumiram responsabilidades. Muitos ministérios o Espírito suscitou. Grande parte dos missionários engajou-se no en­sino, na saúde, na produção, ou noutras tarefas.

Com a nacionalização do Ensino e da Saúde, que funcio­navam nas Missões, o ponto de referência da evangelização e da pastoral deslocou-se do centro para a periferia. Não são mais as Missões, mas as comunidades, o ponto de refe­rência. Há na Diocese centenas de comunidades. Umas em embrião, outras mais adultas; umas organizadas, outras em via de organização.
As zonas pastorais fizeram a sua primeira experiência.
Algumas funcionaram bastante bem, outras não funcionaram praticamente nada. Teve-se em grande conta a formação de responsáveis das comunidades. Pelo Anchilo passaram cente­nas deles. Uns continuam a servir com entusiasmo o povo e as comunidades; outros desanimaram.
A Igreja diocesana procurou fazer, no dia-a-dia, a sua opção pelo Povo. Há, porém, um grande caminho a fazer. A nossa opção está longe de ser clara.

17 - Algumas linhas pastorais para o tempo presente.
Propomos, por isso, como linhas pastorais para o tempo presente:
- Tornar mais clara a opção pelo povo, partilhando as ale­grias e as tristezas, caminhando com, participando com, o pro­jecto da Revolução. Como princípio, os evangelizadores devem estar onde está (ou estará) o povo.
Como «presença nova», os cristãos, sendo povo, devem viver e participar no caminho normal do povo. Cristãos fe­chados são uma contradição.
Comunidades fechadas são quistos religiosos, condenados ao desapareci-mento, por indesejáveis.
Concretamente, não serão as aldeias comunais o espaço do futuro para a celebração da nossa esperança e do Amor­-compromisso, e o caminho mais claro da nossa opção pelo Povo?  
- Continuar a promoção de comunidades adultas. Neste aspecto continua a urgir a tarefa de descolonizar e descleri­calizar as comunidades o mais possível, e de «indigenizar» as comunidades na teologia, na liturgia, nos ministérios, no tes­temunho, no empenhamento.
- Lançar as comunidades nas tarefas da construção da sociedade socialista, já em curso em Moçambique.
- Levar os cristãos a encontrar tempo e espaço para aprofundarem a Fé e a presença na Revolução.
- Fomentar nos responsáveis das comunidades, nos que exercem qualquer ministério, a decisão de procurarem uma formação adequada, a nível das comunidades, das zonas ou da Diocese.
- Suscitar vocações sacerdotais e religiosas a partir das famílias e das comunidades.
-Continuar o apoio às Estruturas, principalmente da Saúde, do Ensino, da Emancipação da Mulher, da Assistên­cia e da Produção.
- Fazer do testemunho de vida no meio do Povo o prin­cipal momento de evangelização.

Conclusão
Perante as dificuldades que a Revolução põe às Igrejas há quem pense que «não há mais sinais, nem mais profetas» por­que «os inimigos do Santuário disseram entre si: destruamos tudo de uma vez» (Sal. 73). Esta consciência negativa desco­nhece a força do Espírito e a presença de Cristo na história dos homens. Na verdade Ele nos manda levantar a cabeça e olhar a messe preparada para a ceifa (Jo. 3, 35). Os desa­fios são momentos privilegiados e o desastre estará mais na resposta do que na provocação que nos é feita. «Cabe à própria Igreja a tarefa essencial de repensar a sua acção num Moçambique livre. É certo que tal tarefa exige uma conversão de muitas mentalidades. Não cremos, no entanto, que seja esse um obstáculo insuperável»[29]. Não é este um desafio radical a um caminho de esperança?
A credibilidade da Igreja no tempo novo passa pela «conversão de muitas mentalidades».
A presença da Igreja na Revolução passa pela experiência da pobreza, da gratuitidade, da partilha com os oprimidos; passa pelo testemunho do empenhamento na construção de uma sociedade verdadeiramente liberta da exploração.

Nampula, Novembro de 1976.

+ Manuel, Bispo


__________________________________

SIGLAS – Referentes a este documento

EN – Evangelii Nuntiandi, exortação Apostólica do Papa Paulo VI.
GS – Gaudium et Spes, Concílio Vaticano II - Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo.
LG – Lumen Gentium - Concílio Vaticano II -  Constituição Dogmática sobre a Igreja





[1] Samora Moisés Machel, Discurso em Fevereiro de 1976.
[2] Samora Moisés Machel, A Libertação da Mulher, Colecção Estudos e Orientações, caderno nº 4, Edições Frelimo, 1974, p. 19.
[3] Samora Moisés Machel, Fazer da Escola uma Base... Colecção Estudos e Orientações, caderno nº 6, Edições Frelimo, 1974, p. 11.
[4] Samora Moisés Machel, Educar o Homem para Vencer a Guerra ... colecção Estudos e Orientações, caderno nº 2, Edições Frelimo, 1974, p. 3.
[5] Samora Moisés Machel, No Trabalho Sanitário Materializamos o Princípio de que a Revolução Liberta o Povo, colecção Estudos e Orientações, caderno nº 3, Edições Frelimo, 1973, p. 5.
[6] Samora Moisés Machel, Discurso in Notícias de 26.10.75.
[7] Samora Moisés Machel, revista Tempo nº 265, de 2.11.75, p. 44.
[8] Karl Marx, Friedrich Engels, sobre a Religião, Edições 70, Lisboa, 1976, p. 45.

[9] Jules Girardi, Cristianismo y Libertacion del Hombre, Ediciones Singueme, Salamanca, 1973, pág. 153 e 177.
[10] GS 44.
[11] GS 11.
[12] GS 3.
[13] GS 4.
[14] GS 5 a 9.
[15] GS 45.
[16] EN 33.
[17] GS 39.
[18] EN 21.
[19] EN 60.
[20] LG 1.
[21] LG 8.
[22] LG 8.
[23] GS 43.
[24] GS 44.
[25] GS 43.
[26] GS 76.
[27] GS 44.
[28] Pinto, M., Passado-Igreja-Futuro, Nampula, Julho 1975.
[29] Samora Moisés Machel – Mensagem ao Conselho de Presbíteros da Arquidiocese de Lourenço Marques em 26 de Agosto de 1974.

Sem comentários:

Enviar um comentário