Ser Cristão na Revolução Socialista - 27 de junho de 1976



Ser Cristão na Revolução Socialista

No 1º Aniversário da Independência
Nampula, 27 de Junho de 1976


1 - Estamos reunidos para celebrar em acção de graças o primeiro aniversário da Independência nacional. Após longos e duros combates, o Povo moçambicano, conduzido pela sua Vanguarda armada e revolucionária, pôde, finalmente, pro­clamar, no dia 25 de Junho de 1975, a liberdade a que desde sempre tivera direito.

A proclamação da Independência de Moçambique consti­tuiu assim a vitória final da grande batalha que durante dez anos a Frente de Libertação de Moçambique, sem olhar a sa­crifícios, travara contra o colonialismo português e as suas Forças Armadas; constituiu, ao mesmo tempo, o início de no­vas lutas para a libertação total do povo moçambicano. Na verdade, a independência de Moçambique não se pode limitar à independência política. Para ser integral, ela terá de ser, ao mesmo tempo, uma independência económica, social e cultu­ral.

Daqui os novos combates. O combate «pela consolidação do poder político», «pela reconstrução económica, social e cul­tural a fim de liquidar a miséria, a fome, a doença, o analfa­betismo»; o combate «pela afirmação da dignidade e persona­lidade moçambicana»; o combate «pelo desenvolvimento e organização da produção dentro de um sistema que liquide a ex­ploração do homem pelo homem»[1].

Continuamos portanto empenhados na libertação de Mo­çambique. Com efeito, enquanto houver um homem oprimido, Moçambique não estará inteiramente independente. Conti­nuará a sofrer a humilhação.

Ao longo deste primeiro ano, muitos foram os esforços e várias as liberdades conquistadas. E não só a nível nacional. Também a nível internacional, pois é bem claro que nenhum povo é inteiramente livre enquanto houver povos escravos. No projecto definitivo da história, os povos de todo o mundo estão chamados a constituírem uma grande família. E numa família, ninguém poderá sentir-se livre enquanto houver al­guém escravo.

Tempo de reflexão e conversão: o Homem Novo

A celebração do primeiro aniversário da Independência, além de ser uma grande comemoração, é também um convite oportuno à reflexão e à conversão. Devemos na verdade re­flectir sobre a história que vivemos durante o primeiro ano da nossa independência, para descobrir com lucidez e ousa­dia as vitórias e os fracassos, sobretudo para nos mobilizar­mos em ordem a uma verdadeira conversão. São urgentes, na verdade, estruturas onde o povo experimente a liberdade, a solidariedade, a responsabilidades e exerça, efectivamente, o poder.

Mas não basta criar estruturas, mobilizar e organizar o povo. Toma-se igualmente urgente mudar de mentalidade, de comportamento e de estilo de relação com o outro e com a história. A isto chamamos conversão. Muitos sentem-se orga­nizados, dizem-se mobilizados, mas neles nem sempre aparece o ho­mem novo. Urge mudar o coração. Urge passar de uma cons­ciência de poder a uma consciência de serviço; de uma relação de explorador a uma relação de solidariedade; de um compor­tamento de domínio a um comportamento de igual; de uma atitude de estranho a uma atitude de irmão; passar de uma consciência oprimida a uma consciência libertada; de uma consciência de objecto a uma consciência de sujeito; passar do individualismo à comunhão, à partilha, à fraternidade; pas­sar da aceitação de condições injustas, opressivas, à luta pela criação de condições justas, capazes de libertar integralmente o povo. Dizemos integralmente porque a vocação do homem não se limita ao bem-estar social, político, económico e cultu­ral. O homem ultrapassa o homem.

No mais íntimo do coração nascem, constantemente, aspi­rações que nenhuma conquista puramente temporal pode en­cher plenamente; surgem interrogações a que nenhuma vitó­ria científica pode interiormente responder. Um humanismo totalmente fechado, exclusivo, correria o perigo de se tornar desumano[2]. Por isso falamos em libertação integral. Uma li­bertação que «Não pode ser limitada à simples e restrita di­mensão económica, política, social e cultural, mas que deve ter em vista o homem todo, integralmente, com todas as suas dimensões, incluindo a sua abertura para o absoluto, mesmo o Absoluto de Deus»; uma libertação que «anda intimamente ligada a uma determinada concepção do homem, a uma an­tropologia que ela jamais pode sacrificar às exigências de uma estratégia qualquer, ou de uma praxis ou, ainda, de uma eficácia a curto prazo»[3].

A fé não entra em contradição com a luta

3 - Nesta perspectiva, a nossa fé não entra em contradição com a luta pela instauração de uma sociedade de homens li­vres, iguais, solidários e fraternos. Antes pelo contrário. Com efeito, viver a fé é viver o combate pela libertação integral do homem e pela sua comunhão em Jesus Cristo. Em Cristo morto e ressuscitado todo o homem está liberto da raiz da opressão (Jo 8, 36); todos os homens são irmãos; todos os povos estão chamados a participar da cidade, onde «não ha­verá mais pranto, mais gritos, mais dor» (Ap 21, 22).

Longe de nos alienar e de nos tornar estranhos ao processo histórico, a nossa fé obriga-nos a assumir as mais diversas ta­refas, dando-lhes o sentido que liberte efectivamente o povo.

A mensagem de libertação - a começar pela raiz de toda a opressão, o pecado, e a terminar na plenitude da vida em Jesus Cristo - está no centro do Evangelho: «vim para anun­ciar aos cativos a liberdade e tornar livres os oprimidos» (Lc 4, 18). E o Senhor assegura-nos que seremos julgados pela atenção que houvermos dado aos oprimidos: «vinde benditos de meu Pai, porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, estava nu e destes-me de vestir, adoeci e fostes-me visitar, estive na prisão e fostes ter comigo» (Mt 25,34). «Apartai-vos de mim malditos, porque tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, era peregrino e não me recolhestes, estava nu e não me vestistes, enfermo e na prisão e não fostes visitar-me» (Mt 25, 41).

Nesta página do Evangelho está bem claro o compromisso do cristão. A sua fé em Jesus Cristo não se limita a acreditar numa doutrina, a esperar um mundo que há-de vir, mas leva-o a amar até ao dom da vida, trabalhando, lutando para que todo o homem seja liberto da opressão, da fome, da sede, da doença, da ignorância, da falta de habitação, da injustiça, da discriminação, do abandono e do egoísmo.

Amar a Jesus Cristo é amar o homem. «Se alguém disser «eu amo a Deus, mas odiar o seu irmão é mentiroso» (Jo 4, 20). «Todo aquele que não pratica a justiça e não ama o seu irmão não é de Deus» (Jo 3, 10). Nós «sabemos que passamos da morte à vida, porque amamos os irmãos. Aquele que não ama permanece na morte» (Jo 3, 14).

A fé em Jesus Cristo torna-se operante pela caridade. E a caridade manifesta-se no trabalho pela libertação de cada ho­mem-irmão, na partilha dos bens, na construção duma socie­dade mais solidária, no anúncio permanente do homem novo, em Jesus ressuscitado. Com efeito «se alguém está em Cristo é uma nova criação» (2Co 5, 17).

«A caridade evangélica recobre todo o campo da activida­de humana, tanto colectiva como individual, porque o mandamento divino que constitui a sua fonte atinge o homem no mais Íntimo do seu ser, na raiz da sua inteligência e da sua decisão; e porque o homem é essencialmente estar-com-o-ou­tro, estar-em-comum, ser-para-outrem». «A caridade evangélica tem evidentemente dimensões políticas e de tal maneira que bem poderíamos chamar ao mandamento do amor, o manda­mento da eficácia».

«A palavra-chave da parábola do bom samaritano e da cena do julgamento final é o verbo fazer. Vai e faz o mesmo; tudo o que fizestes a um dos mais explorados a mim o fizestes»[4].

A fé não faz do Homem um estranho às conquistas da política
4 - A fé, como dom de Deus, resposta e compromisso do homem, não é um ópio, uma bebida que faz adormecer, um sentimento anacrónico, um refúgio dos fracos, uma alie­nação, uma forma de obscurantismo.

A fé não faz do homem um exilado da história, um estranho às conquistas da política, da técnica, da ciência, da cultura e da convivência humana.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     a fé tem dentro do seu coração uma novi­dade que o torna capaz de amar a sério, de servir sem descanso e sem mentira; de lutar a sério pela transformação do mundo e de pôr em causa todas as revoluções, no sentido de as libertar da tentação do absoluto, do pecado do dogmatismo, do entrave da suficiência.

«Seria absurdo separar radicalmente Reino de Deus e «mo­vimentos revolucionários» (que tendem a instaurar a justiça social), como se o Reino de Deus não estivesse relacionado com as nossas lutas históricas e se situasse num «outro mundo» indiferente às vicissitudes, às ordens e desordens deste, fazendo assim dos cristãos uma «confraria de ausentes», alheios aos combates políticos e sociais deste mundo».

«Não seria menos falso, identificar os dois, como se o Reino de Deus pudesse instalar-se numa ordem necessariamen­te provisória que ele sacralizaria». «A fé é uma força transformadora, e a esperança revolucio­nária é um dos lugares privilegiados onde ela pode anunciar a «Boa-Nova», «Não imitamos Cristo abstendo-nos de responsa­bilidades sociais e políticas, mas sim trazendo-lhes exigências absolutas, a fim de relativizar toda a realização histórica e de contribuir para fazer emergir projectos cada vez mais universais»[5].

A fé obriga-nos a assumir a política
5 - Podemos então dizer que a nossa fé nos obriga a estar presentes na revolução que tende a edificar uma sociedade li­berta da exploração. Presentes como testemunho do homem novo; como dinamismo e compromisso; presentes como pro­fecia, afirmando que «nenhuma realização histórica pode ser considerada como fim último»; presentes perguntando se «o socialismo é apenas uma alternativa económica do capitalis­mo, permitindo pela abolição da propriedade privada, dos meios de produção e sua socialização, uma produtividade maior, ou se é uma mutação global, não apenas da gestão eco­nómica, do poder e da cultura, mas da própria concepção do homem e do seu projecto de construção do futuro»[6].

Pre­sentes, assumindo, consciente e ousadamente a política, vendo nela «uma maneira exigente - se bem que não seja a única - ­de viver o compromis-so cristão ao serviço dos outros». «To­mar a sério a política, nos seus diversos níveis», nas suas di­versas actuações «é afirmar o dever do homem, de todos os homens, de reconhecerem a realidade concreta e o valor da li­berdade» e de «procurarem realizar juntos o bem da cidade, da nação e da humanidade»[7].

O bem do povo é com efeito o objectivo último de toda a actuação política. «A comunidade política existe em vista do bem comum». «Nele encontra a sua completa justificação e significado e dele deriva o seu direito natural e próprio». «Quanto ao bem comum, ele compreende o conjunto de con­dições de vida social que permitem» a cada homem, à família, à comunidade «alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição»[8], mas uma palavra de ordem que mobilize o povo; não há povo objectada seja do que for, mas povo sujeito seja do que for.

Por isso, assumir a política, assumir o poder é assumir as tarefas que tornem o povo capaz de se libertar e de exercer o poder; capaz de se organizar, tendo como dinamismos fundamentais a igualdade, a dignidade, a responsabilidade, a participação, a posse comum dos bens de produção, a solidariedade, a frater­nidade e a paz.

Assumir a política é defender e promover a personalidade moçambica-na, agarrar com entusiasmo e lucidez as tarefas que a reconstrução nacional exija, praticar no lugar próprio e no momento próprio a crítica e auto-crítica, como forças cons­trutoras da linha que sirva verdadeiramente o povo; é sen­tir-se mobilizado pelas justas aspirações do povo, realizar a partir da consciência, a unidade, o trabalho e a vigilância.

Realizar a partir da consciência: a unidade

6 - Primeiro a unidade. Não apenas a unidade fundada na cultura e identidade moçambicanas, alimentada pela teoria e prática política, mas a unidade que tem a sua força mais ínti­ma na igualdade, na comum dignidade de todos os homens, na comum vocação e destino. Todos os homens são iguais e todos estão chamados a viver em família. A unidade é uma exigência profunda a interpelar constantemente o coração do homem. Ninguém nasceu para viver solitário. Ser homem é ser solitário, é ser-com-os-outros, é partilhar a vida.

À luz do Evangelho a vocação à unidade torna-se ainda mais profunda. Em Jesus Cristo todos os homens estão chamados a consti­tuir uma comunidade fraterna; em Jesus cristo todos os muros caíram, toda a discriminação foi vencida, todos os ódios foram mortos. Na sua carne destruiu a parede que nos separava; do que estava dividido fez uma unidade; de dois povos fez um só; reconciliou-nos, abolindo o ódio e estabelecendo a paz (cf Ef 2, 14 - 16). «Em Jesus Cristo não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher; nele morreram as barreiras e nasceu um povo santo» (cf Gl 3, 28).

Empenhados na unidade de todos os homens que vivem em Moçambique, devemos estar atentos aos valores que a edi­fiquem e aos vícios que a destruam. E são vícios destrutivos da unidade toda a forma de racismo, de discriminação, de divisão, de injustiça, de absolutismo, de medo e de mentira.

Ao longo deste primeiro ano de independência, não falta­ram esforços tendentes a reunir os moçambicanos num só povo; não faltaram também, infelizmente, atitudes, desvios e erros a criar entre o povo conflitos, barreiras e distâncias. Urge construir a unidade, formando dos diversos homens de Moçambique, das diversas raças e culturas um só povo. Urge destruir a divisão, combatendo os preconceitos, o espírito de vingança, as atitudes racistas, os comportamen-tos injustos. «Se vivemos pelo Espírito, caminhemos também segundo o Espírito» (Gl 5, 25), e os frutos do Espírito são a caridade, a paz, a reconciliação, a unidade e a alegria. (cf Gl 5, 22).

 Realizar a partir da consciência: o trabalho

7 - O trabalho é outro imperativo fundamental na Revolu­ção.
     Pelo trabalho o homem transforma o mundo, domina a natureza, liberta-se das carências e das forças que o tornam menos homem. Sem trabalho a natureza permanece hostil, o homem não cresce, a sociedade não se constrói.

 «A actividade humana do mesmo modo que procede do homem assim para ele se ordena. De facto, quando age, o homem não transforma apenas as coisas e a sociedade, mas realiza-se a si mesmo. Aprende muitas coisas, desenvolve as próprias faculdades, sai de si e eleva-se sobre si mesmo[9].

Trabalhamos não apenas para ter mais, para vencer as carências e a miséria, mas para ser mais. «O homem vale mais por aquilo que é do que por aquilo que tem» (GS 35). Liberta-se, eleva-se, realiza-se quan­do é mais homem e não quando tem mais coisas. Todo o pro­grama para aumentar a produção não tem, em definitivo, ou­tra razão de ser além do serviço da pessoa. Se existe é para reduzir as desigualdades, combater as discriminações, libertar o homem da escravidão, torná-lo capaz de ser por si mesmo agente responsável da sua melhoria material, do seu progresso moral e do seu desenvolvimento espiritual»[10].

Por isso o trabalho não se reduz à simples produção de bens económicos. «A finalidade fundamental da produção não é o mero aumento dos produtos, nem o lucro, ou o poderio, mas o serviço do homem; do homem integral, isto é, tendo em conta a ordem das suas necessidades materiais e as exigên­cias da sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa»[11].

A produção deve, portanto, servir o homem todo e todos os homens. Deve tornar o homem mais homem, mais solidário, e mais comprometido com a civilização da justiça e da equi­dade. Uma civilização onde o homem seja «protagonista, cen­tro e fim de toda a vida económico-social» (GS 63), onde as relações económico-sociais estejam fundadas na igualdade, na dignidade, na justa participação e distribuição dos bens, na primazia do bem comum.

A nossa fé obriga-nos a tomar a sério o trabalho, qualquer que ele seja. «A mensagem cristã não aparta os homens da ta­refa de construir o mundo»[12]; antes pelo contrário, compro­mete-os dum modo mais profundo. Com efeito, o homem cren­te sabe que deve cumprir o «mandamento de dominar a terra com tudo o que ela contém e governar o mundo na justiça e na santidade» (Gn 1, 26-27), e sabe também que o «imenso e forço dos homens para melhorar as condições de vida, para transformar o mundo, corresponde à vontade de Deus»[13]. Por isso, quando não trabalha, quando não dá as mãos aos seus semelhantes na construção colectiva da sociedade, quan­do não produz, desobedece ao mandamento de Deus, nega o amor fraterno, atraiçoa o Evangelho[14].
Na palavra de Paulo aos cristãos de Tessalónica, «todo aquele que não trabalha não te  m direito a comer» (2Ts 3, 10-13); não tem direito a participar das alegrias da libertação do povo. Quem não trabalha não constrói a liberdade, a uni­dade, o bcm-estar e a paz.

Realizar a partir da consciência: a vigilância

8 - Dentro da revolução, a vigilância é também uma pa­lavra de ordem.
     A experiência do primeiro ano de independên­cia nacional mostra-nos que muitos não chegaram a entender o significado real da palavra vigilância. Outros serviram-se de­la, cometendo graves abusos, violações da justiça, atentados à liberdade das pessoas e à unidade do povo. Não podemos deixar de lamentar particularmente as prisões que tantos so­freram por má definição de «inimigo», por vingança, por in­correcção e abuso do poder. As medidas ultimamente toma­das pelas estruturas máximas são um avanço no respeito pe­las liberdades das pessoas e na prática da justiça e um travão à arbitrariedade.

Impõe-se, na verdade, uma profunda e objectiva recupera­ção da palavra vigilância. No decurso da Revolução, no con­texto sócio-político de Moçambique, na construção da socie­dade nova, que significa exactamente a palavra de ordem, vi­gilância? Torna-se necessário saber definir correctamente o inimigo e distinguir concretamente entre o erro e o homem que erra; entre o crime e o criminoso; entre a reacção e quem a pratica.

Sabemos que na luta pela libertação integral do nosso povo, podem surgir inimigos. O interesse, o egoísmo, o ódio são por vezes mais fortes que a verdade. Mas não pode­mos confundir o inimigo com a cor, com o direito de discor­dar, ou com a não participação nesta ou naquela tarefa. Não podemos destruir as pessoas, humilhando-as psicológica e socialmente ou sujeitando-as a penas arbitrárias. Na política cor­recta da Revolução, o respeito pela dignidade da pessoa huma­na, o princípio de recuperação e de reintegração na sociedade, o princípio de clemência não podem ser apenas teoria: devem tornar-se prática efectiva no quotidiano da vigilância. Não po­demos intimidar seja quem for, ameaçando ou denunciando de ânimo leve. Com tal comportamento estaríamos a negar a libertação do povo, provocando um clima de medo, de des­confiança, de silêncio, de fuga às iniciativas colectivas, de re­jeição das estruturas; clima esse em tudo negativo e grave­mente prejudicial ao avanço correcto da Revolução.

Como ci­dadãos animados pela fé em Jesus Cristo, fonte e caminho da verdadeira liberdade, defendemos o princípio da vigilância, denunciamos tudo aquilo que se oponha à autêntica liberta­ção do nosso povo, ao seu crescimento integral, à paz na jus­tiça e na verdade. Condenamos toda a opressão. Condenamos os massacres de ontem em terras de Moçambique, e os cri­mes de lesa-humanidade que hoje se cometem nos países ain­da sujeitos a regimes coloniais e imperialistas. A nossa fé manda-nos estar atentos, lembra-nos a necessidade da vigilân­cia para não sermos surpreendidos (Lc 16, 10). Mas a vigi­lância Evangélica, antes de ser uma atenção aos inimigos de fora é uma atenção permanente ao inimigo que vive dentro de nós mesmos. No coração de cada um dorme efectivamente o inimigo. E se «é do coração que nascem os homicídios, as prostituições, os falsos testemunhos e as blasfémias» (Mt 15, 19) devemos começar a vigilância por nós mesmos. Só então estaremos aptos a tomar conta do nosso irmão, a des­cobrir e a recuperar os que praticam a iniquidade.

O ateísmo: convite à autocrítica

9 - Gostaria de falar, ainda que brevemente, de uma ou­tra palavra, que não sendo de ordem, parece em alguns casos mobilizar a consciência do povo, particularmente a consciên­cia dos crentes. Trata-se do ateísmo que acompanha a Revolução. O ateísmo, teórico ou prático, não é uma invenção da revolução moçambicana. Vem de longe e constitui um «dos factos mais graves do nosso tempo».

«Com a palavra ateísmo designam-se fenómenos muito di­versos entre si. Com efeito, enquanto alguns negam expressa­mente Deus ... , outros tratam o problema de Deus de tal ma­neira que Ele parece não ter significado. Muitos, ultrapas­sando indevidamente os limites das ciências positivas, ou pre­tendem explicar todas as coisas só com os recursos da ciên­cia, ou, pelo contrário, já não admitem nenhuma verdade abso­luta. Alguns exaltam de tal modo o homem que a fé em Deus perde toda a força e parecem mais inclinados a afirmar o ho­mem do que a negar a Deus. Outros concebem Deus de uma tal maneira que aquilo que rejeitam não é de modo algum o Deus do Evangelho»[15]. Outros esperam «a libertação do ho­mem, sobretudo a sua libertação económica. A esta, dizem, opõe-se por natureza a religião na medida em que dando ao homem a esperança de uma enganosa vida futura, o afasta da construção da cidade terrena»[16].

Entre nós são claras algumas destas formas. Mas em vez de cairmos na tentação de argumentar contra os ateus, deve­mos antes de mais perguntar-nos como viver a exigência da fé numa sociedade ameaçada pelo ateísmo. O Concílio diz-nos que «O ateísmo, considerado no seu conjunto, não é um fenó­meno originário, antes resulta de várias causas, entre as quais se conta também a reacção crítica contra as religiões e, nal­guns países, principalmente contra a religião cristã. Pelo que os crentes podem ter tido parte não pequena na génese do ateísmo, na medida em que pela negligência na educação da sua fé, ou por exposições defeituosas da doutrina, ou ainda pelas deficiências da sua vida religiosa, moral e social se pode dizer que mais esconderam do que revelaram o autêntico rosto de Deus e da religião»[17].

O ateísmo aparece-nos, assim, como um grave convite à autocrítica, uma denúncia da doutrina e da vida que mais «es­conderam do que revelaram o autêntico rosto de Deus» e uma provocação ao testemunho de Deus vivo na prática «religiosa, moral e social». Por isso, «o remédio para o ateísmo há-de vir da conveniente exposição da doutrina e da vida íntegra da Igreja e dos seus membros». Isto há-de alcançar-se antes de mais pelo testemunho duma fé viva e adulta ( ... ) manifes­tada sobretudo na prática «da justiça e do amor» para com os oprimidos[18]. A luta pela justiça torna-se ainda mais ur­gente, se pensarmos que o ateísmo que parece fazer parte da revolução, põe a libertação do povo principalmente na sua li­bertação económica e social afirmando ao mesmo tempo que a «religião por sua própria natureza é um obstáculo a essa li­bertação». Àqueles que vêem na religião «o suporte ideológico mais profundo, a super-estrutura mais séria do sistema de ex­ploração» deveremos mostrar com a prática que «o verda­deiro socialismo é o cristianismo integralmente vivido, na jus­ta repartição de bens e na igualdade fundamental de todos»; que a «participação e a fraternidade são evangélicas»[19].

Os que consideram, não sem motivo histórico, a religião uma alienação, uma vez que torna o homem estranho a si mesmo, às tarefas da história e o projecta num mundo ilusó­rio, obrigam-nos, por um lado, a denunciar e abandonar as fal­sas expressões de religião, e por outro lado a viver uma «fé viva e adulta», uma prática cristã que realize efectivamente o homem.

«Não basta crer, é necessário crer, tal como o mundo de hoje, o universo de hoje no-lo exigem. Pelo simples facto de crer não se possui sem mais a forma de fé que hoje se nos pede. Po­demos desfigurar o rosto da fé se esta não responde às exi­gências dos tempos. A fé não é apenas uma graça, mas tam­bém uma tarefa que devemos cumprir. E podemos levá-la a cabo de maneira equívoca»[20].

Deste modo, dizerem-nos que a religião aliena é chamarem-nos a atenção para um exame de consciência sobre a autenti­cidade da religião na sua relação com Deus e na sua relação com o homem. Verificamos ao longo da Bíblia que a tentação da alienação religiosa é frequente. Os ídolos tentam constante­mente ocupar o lugar de Deus-vivo e uma vez no altar os ho­mens que os adorem alienam-se tornando-se escravos do poder mítico. «Frente aos deuses como forma mítica de poder e de opressão, o Novo Testamento e os Profetas proclamam a men­sagem de um Deus vivo que é exigência e fonte última da li­bertação radical do homem»[21].

O tema de alienação religiosa é um tema comum  a Paulo, aos primeiros cristãos, aos primeiros doutores da Igreja. «Por­que ainda que haja alguns que sejam chamados deuses, quer no céu, quer na terra, existindo assim muitos deuses e muitos senhores, para nós, não há mais que um só Deus, o Pai de Quem tudo procede e um só Senhor Jesus Cristo» (1Co 8,5). «É rigorosamente falso que o cristianismo, que é por sua na­tureza abertura radical ao real e por isso a Deus, seja uma alienação. É verdade porém que hoje, como sempre, existe a alienação religiosa porque continuam a existir muitos deuses e muitos senhores»[22].  "Contra essa alienação luta o homem marxista em nome da sua fé no homem. É injusto porém quando pensa que é ele o único a lutar, podendo mesmo, a par­tir dessa consciência de monopólio, cometer um erro análogo, introduzindo novas alienações, embora de outro sinal».

"O cristão por fidelidade à sua fé no homem e em Deus, ou no Homem-Deus, luta contra todas as alienações humanas e de um modo especial, pelo que ela significa de idolatria, con­tra a alienação religiosa, consciente de que é este o primeiro pecado contra a fé»[23].

"Consciente da gravidade dos problemas postos pelo ateís­mo e movida pelo amor que sente a todos os homens, a Igreja julga que os motivos do ateísmo devem ser objecto de um exame sério e mais profundo»[24]. Não olhemos portanto, com ligeireza, um fenómeno que se torna cada vez mais vasto; não caiamos na estéril e anacrónica tentação de espírito de cru­zada, nem definamos a revolução pela carga de ateísmo que possa transportar. Pela prática da fé, mostremos que não há oposição entre Deus e o homem, o mundo e Deus, o mundo e os homens, a história presente e a história futura; mostremos que a transcendência, entendida rectamente, é «contestação interior e permanente de toda a imanência e de toda a sufi­ciência»[25].

A liberdade religiosa não é um direito ilusório

10 - Mas, uma coisa é o ateísmo, outra a negação da liber­dade religiosa.
       Na República Popular de Moçambique o Estado é laico, a separação entre Estado e instituições religiosas é absoluta e cada cidadão é livre de praticar ou não praticar uma religião (Cf Constituição Política, artºs 19 e 33). Depois do estado cristão, depois do estado ateu, um e outro intoleráveis, por defenderem ou atacarem uma religião, surge finalmente na história o estado laico. Quando dizemos laico, dizemos neutro em relação à religião, não porém em relação aos cidadãos que praticam uma religião. Não pode e não deve estar contra, ou a favor de uma religião (não seria laico mas confessional); como não pode nem deve deixar de garantir, promover e harmoni­zar as liberdades fundamentais dos cidadãos. E entre as liber­dades fundamentais conta-se a liberdade religiosa.

«Os pode­res públicos existem para tornarem possível um clima em que os cidadãos encontrem os estímulos próprios à sua realização integral e entre esses meios, não se pode menosprezar os que pertencem à esfera do religioso, tendo em atenção nomeada­mente as suas repercussões positivas sobre a vida social. Por­que a qualidade da vida pública encontra o seu alimento na profissão sincera da religião e esse sentido moral leva o crente a actuar na cidade e na nação com uma consciência aguda dos seus compromissos a favor de mais justiça e mais paz»[26].

A liberdade religiosa não é apenas um problema ético ou eclesiástico, é também um problema constitucional. O Estado não deve contentar-se em reconhecer, em proteger o direito à liberdade religiosa; tal como no que respeita aos outros di­reitos, o direito à liberdade religiosa deve ter condições de exercício eficaz. Doutro modo, seria um direito ilusório. E co­mo a liberdade é indivisível, onde há a negação de um direito, há a negação da liberdade. Daqui a íntima relação entre a liber­dade religiosa e a liberdade efectiva do povo; entre a propa­ganda anti-religosa e a propaganda anti-liberdade do povo.
Perante os preconceitos que determinam os comportamen­tos de muitos, perante as incorrecções que surgiram em vá­rios casos, perante as palavras e atitudes anti-religiosas, os cris­tãos devem, antes de mais, tomar consciência do significado claro e da prática exacta da liberdade religiosa; depois tes­temunhar essa liberdade na construção da liberdade integral do povo; e finalmente dialogar serenamente com todos aque­les que, movidos por razões estranhas à verdadeira libertação do povo, ameaçam ou dificultam a liberdade religiosa.

No mais íntimo da revolução: sal, fermento, luz (Mt 5, 13)

 11 - A proclamação da independência de Moçambique foi também a proclamação da Revolução a nível nacional. Como cidadãos animados pela fé, pela esperança e pela força do amor sentimo-nos empenhados nas diversas tarefas. Deseja­mos ser, no mais íntimo da revolução, o sal, o fermento, a luz (Mt 5, 13).
Para isso não basta participar. Uma inserção correcta exi­ge de todo o cidadão, mormente do cristão, o discernimento, a honestidade, a fidelidade à verdade, a coragem que lhe per­mitam separar o trigo do joio, não chamar bem ao mal e mal ao bem (Isaías 5, 20), rejeitar as idolatrias, os totalitarismos de qualquer tipo, e conservar o sentido autêntico do homem, da sociedade e da história.

Os cristãos deverão associar-se corajosa e activamente à vida nova baseada na justiça social, na vitória da igualdade e da solidariedade sobre a exploração e a discriminação. Mas não poderão sem mais, aceitar ideologias, estratégias e me­tas que ponham em causa a liberdade, a responsabilidade, a abertura ao espiritual, a vocação integral do homem e do povo[27].  

Deus revoluciona a história pela incarnação da Palavra (Jo 1, 14), pela alegria da Páscoa, pelo triunfo da Ressurreição, pela santificação de cada um e de todos, pela inauguração de uma nova terra (Ap 21, 1), de uma humanidade nova (Col 1, 13), pelo Espírito que tudo renova e que tudo conduz à ple­nitude da vida (Ap 21, 5). Onde haja um gesto em favor do triunfo da liberdade sobre a opressão, aí está o Espírito, aí está o cristão, o homem que vive e luta pela instauração da justiça.

Nampula, 27 de Junho de 1976.





[1] Samora Machel, Discurso na abertura da Escola do Partido, Revista Tempo, n 265, 2 de Novembro 1975, p. 43.
[2] Paulo VI, Populorum Progressio, 42, Cinco Grandes Mensajes, BAC, Madrid, 1968, p. 227.
[3] Paulo VI, Evangelii Nuntiandi, 33.
[4] Cf. René Coste, Dimensões Políticas da Fé, Telos, Porto, 1973, pp. 69·70.
[5] Garaudy, Fé e Socialismo, em Alternativas Socialistas, 2, Arcádia, 1975, p. 23 e g. 30.
[6] Garaudy, o.c., p. 23.
[7] Paulo VI, Octogesima Advenians, 46.
[8] GS 74
[9] GS, 35.
[10] Paulo VI, Encíclica Populorum Progressio, 34.
[11] GS 64.
[12] GS 34.
[13] GS 34.
[14] GS 43.
[15] GS 19.
[16] GS 20.
[17] GS 19.
[18] GS 21.
[19] Maximus IV, [)oc. Cath. 1965, 1875-76.
[20] Rahner, La fe deI Sacerdote hoy, Sel. de Teologia, nº8, 1963, p. 253.
[21] Vários, Dios-Ateismo, III Semana de Teologia niversidade de Deusto, Mensajero, 1968, p. 53.
[22] Vários, Dios-Ateismo, o.c., p. 53.
[23] Vários, Dios-Ateismo, o.c., p. 54.
[24] GS 21.
[25] Garaudy, o.c., p. 28.
[26] Mons. Etchagaray, em «Nova Terra», ano III, nº57, 16/6 a 22/6/76
[27] Paulo VI, Octogesima Advenians, 31.

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