Passado – Igreja – Futuro
Reflexão com os missionários da Diocese, logo
após a proclamação da Independência, nos primeiros dias de Julho 1975.
1 - É a primeira vez que nos encontramos após a grande festa da Independência
de Moçambique. Não posso, por conseguinte, deixar de saudar, com viva emoção, o
Povo Moçambicano, finalmente livre, independente, e senhor dos próprios
destinos.
A proclamação da independência de Moçambique foi uma
vitória decisiva e significativa. Vitória da liberdade sobre a escravidão, da
dignidade sobre a humilhação, da solidariedade sobre o imperialismo, da paz
sobre a guerra e o crime, da vida sobre a morte. Vitória não apenas do Povo
Moçambicano, mas de todos os povos que lutam contra a exploração, contra a
destruição do Homem. A libertação de Moçambique não é um acontecimento
isolado. A vitória do Povo Moçambicano é vitória de todos os povos oprimidos. É, sem dúvida, um passo em frente na construção da
fraternidade.
Saudar o Povo Moçambicano é saudar a Frente que o reuniu,
mobilizou e conduziu até à vitória. É saudar todos aqueles que, de algum modo, dentro e fora de Moçambique,
sofreram e lutaram pelo triunfo da Justiça e da sua expressão mais alta: a
Independência. É saudar todos aqueles que, ao longo
de dez anos de luta armada e ao longo dos séculos coloniais, deram a vida, o
sangue e as lágrimas para que o Povo Moçambicano pudesse, finalmente,
gritar: somos um Povo independente.
Que Moçambique novo, conduzido pela
sua vanguarda revolucionária, cresça na unidade, na justiça, na solidariedade,
na abundância e no amor fraterno.
2 – IGREJA - QUE
PRESENÇA?
A Igreja de Jesus é sinal de salvação
integral. É sacramento de unidade, fermento
libertador. É Povo reconciliado, povo portador do
Evangelho da vida, e da vida em abundância. Não está fora nem acima da
história. Está dentro, como fermento na massa, como serva dos homens em luta
pelo triunfo da dignidade, como sinal de liberdade definitiva, da comunhão
íntima, liberdade e comunhão já em marcha, já presentes no coração e na
história dos homens.
A Igreja está, portanto, na história
que Moçambique constrói: está na revolução que o Povo Moçambicano conduz.
Perguntamo-nos, porém: neste momento
inteiramente novo, qual a forma de presença que a Igreja deve viver, hoje e
aqui, para servir efectivamente o Povo Moçambicano? Ao longo da história,
várias têm sido as formas de presença da Igreja na sociedade. Pela sua
incidência na evangelização e na pastoral vale a pena destacar a presença e
acção de cristandade, a presença e acção de nova cristandade, a presença distinguindo
duas missões: a de evangelizar e de animar as realidades temporais.
2.1 -
Presença e acção de Cristandade
Em primeiro lugar a presença e acção
de cristandade.
Esta foi a experiência mais longa da
Igreja e que mais a marcou. Começada na época de Constantino, atravessou toda a Idade Média e chegou até aos
nossos dias, apesar das revoluções dos últimos séculos.
Em que consistia a situação de cristandade?
Em resumo podemos dizer o seguinte: na situação de
cristandade, o poder civil e político andam intimamente ligados ao poder da
Igreja. O civil e o político não tinham uma autêntica independência ou
consistência própria frente à Igreja.
Na mentalidade de cristandade as realidades terrenas careciam
de autonomia própria, estavam submetidas às realidades espirituais. «Todo o
poder vem de Deus», vem de Cristo, do seu vigário na Terra. O poder do Rei,
tinha a sua consistência própria no poder do Vigário de Cristo, como as
realidades temporais tinham a sua consistência nas realidades espirituais,
eternas. Por outro lado, a Igreja apresentando-se como depositária exclusiva
da salvação, o mesmo é dizer, da verdade, aparecia como um poder espiritual que
orientava e salvava todo o poder temporal.
Nestas condições, meter-se em política para um cristão,
era meter-se a trabalhar para que a Igreja tivesse um campo de influência cada
vez mais vasto, um prestígio cada vez maior. Os leigos estariam ao serviço da
hierarquia e esta ao serviço da instituição. A Igreja era primariamente
instituição.
2.2 - Presença e acção de Nova
Cristandade
A revolução cultural, científica e política, iniciada principalmente
a partir do fenómeno chamado renascimento, levou a sociedade a rejeitar e a
combater a tutela religiosa. O civil e o político afirmam, perante a Igreja, a
sua autonomia e negam ao poder eclesiástico qualquer competência no campo da
construção da cidade terrestre. Os critérios da actuação política não serão
mais os interesses da Igreja, mas a busca de uma sociedade baseada nos
direitos do homem.
Nesta perspectiva, a Igreja,
continuando a considerar-se centro de salvação, trata de estar presente na
sociedade, não como um poder, mas como um princípio inspirador de valores
cristãos. A nova sociedade não será tutelada pela Igreja, mas inspirada pelos
critérios evangélicos e construída segundo os valores cristãos. A nova
sociedade dá origem à nova cristandade. A Igreja já não domina, mas organiza-se
de maneira a manter a sua influência no civil e no político. Surgem os
cristãos empenhados em partidos, em movimentos, em sindicatos, em instituições
de etiqueta e de influência cristã. Surgem as obras da Igreja a par das obras
do Estado. Surge com particular interesse a aplicação do direito das escolas
católicas, como instrumento de cultura, de formação cristã das inteligências e
das consciências.
Esta presença de nova cristandade, se
reconhece a autonomia do político e do civil, procura manter ainda o poder
religioso frente ao poder temporal. Esta forma de presença ainda não passou,
apesar da revolução cultural cada vez mais profunda e da renovação imprimida
pelo Concílio Vaticano II.
2.3 - Presença e acção da Igreja distinguindo
duas missões: a de evangelizar e a de animar realidades temporais.
A autonomia do temporal e a
consciência de que a Igreja não deve intervir como instituição nas questões
civis e políticas, obrigam a Igreja a pensar a sua função no mundo. Chegou-se
então à teologia da missão da Igreja, em dois planos: O plano da evangelização e o plano da animação do temporal. A
Igreja não tem como tarefa específica construir o mundo, intervir directamente
na acção política. A missão da Igreja é de natureza espiritual. Compete à
Igreja evangelizar e animar. À evangelização
está ligado todo o Povo de Deus, particularmente a hierarquia; à animação está
ligado, por vocação
específica, o cristão leigo.
Estamos por conseguinte perante uma presença e acção da
Igreja que, ao diferenciar as duas missões, nos põem em dois planos distintos:
o da fé por um lado e o da sociedade por outro; o da Igreja e o do mundo.
Pretende-se com esta distinção afirmar a neutralidade política da Igreja, a
missão apolítica da hierarquia, o compromisso político do leigo e não como
Igreja.
2.4 - Presença e acção de fermento
libertador
Na prática verificamos porém que a Igreja, concretamente
em Moçambique, dizendo não se meter em política fez a política da ordem
estabelecida; proclamando a missão apolítica da hierarquia, apareceu ao lado
dos poderes constituídos; afirmando que a tarefa política é própria dos leigos
não orientou a evangelização e a pastoral no sentido de formar e de
comprometer o cristão com a política da libertação e da dignificação do homem
e do povo. Por isso a Igreja em Moçambique é acusada justamente de ter sido um
apoio do colonialismo português. Poderemos continuar com a teoria e a praxis
dos dois planos e das duas missões? Não teremos que procurar, nesta hora de
ruptura com todas as sequelas do colonialismo e de invenção de novas maneiras
de pensar, de viver e de agir, uma forma de presença mais conforme ao dinamismo
da revolução que o povo viveu?
A nova situação leva-nos a pensar a presença da Igreja em
termos de fermento libertador. Passou o tempo do poder, da aliança, do
privilégio. Chegou a hora da Igreja metida no povo como fermento na massa. Esta
presença de fermento libertador implica necessariamente a ruptura com todas as
situações de opressão e de alienação, a opção pelos explorados e o compromisso
político de todo o povo de Deus. A libertação radical proclamada pela Igreja de
Jesus de Nazaré: passa pela ruptura com toda a exploração, onde quer que ela esteja;
passa pelo amor efectivo dos oprimidos, passa pela luta de todo o povo de Deus
em favor de uma sociedade mais livre, mais justa, mais solidária, mais
fraterna, mais próspera, mais alegre, mais unida na construção do bem comum.
Uma Igreja fermento libertador de toda a escravidão, particularmente daquela
que nasce do pecado da idolatria, não pode aceitar, dentro de si mesma,
situações que denunciem ou gerem opressões.
Convém por isso analisar honestamente as alienações que porventura ainda existam
dentro da Igreja em Moçambique. Nesta análise muito poderão ajudar as críticas
que ultimamente têm sido feitas à religião, às Igrejas e, de modo especial, à
Igreja Católica. Elas são um claro indicativo da opressão que a Igreja vivia e
possivelmente exercia. Elas são um vivo apelo à pureza de evangelho.
3 - CRÍTICAS
FEITAS À IGREJA
Podemos resumir em cinco as grandes
críticas feitas à Igreja: a colaboração com o colonialismo, a divisão do povo
provocada pela religião, a improdutividade da religião, os privilégios, o
silêncio cúmplice. Embora nos humilhem, não podemos deixar de concordar com o
fundamental destas críticas.
A Igreja colaborou efectivamente com
o regime colonial.
Colaborou activamente, enquanto
aceitou difundir a cultura nacional portuguesa; enquanto aparecia
ostensivamente ao lado dos governantes coloniais, enquanto anunciou um Evangelho
de resignação e de obediência à ordem estabelecida. Colaborou passivamente
enquanto se deixou instrumentalizar pelo poder colonial, enquanto sofreu a
opressão do regime a ponto de silenciar, por medo e prudência, os crimes e as
violências coloniais, particularmente a guerra de opressão e de repressão
desencadeada contra os direitos fundamentais do Povo Moçambicano. A
colaboração da Igreja com o colonialismo português, pela acção e pela omissão, é uma injúria ao
Povo Moçambicano, injúria bem difícil de esquecer. Não nos admiremos por
conseguinte, se hoje, ao celebrarmos a vitória da luta pela libertação, ao
festejarmos a Independência, sentimos do topo e da base reacções negativas
contra a Igreja, contra os missionários, contra a evangelização.
A religião dividiu o Povo. Esta crítica, à primeira vista
estranha, dado que por sua natureza a religião deveria unir, não deixa de ser
verdadeira se considerarmos os condicionalis-mos que acompanharam desde o
início a evangelização em Moçambique. Aliada ao Império, a fé unia as
populações africanas ao povo português, ao mesmo tempo que as tornava cristãs.
Secundava portanto a política do império e do governo português que punha a
unidade do povo no ser português e jamais no ser moçambicano. Ao aceitar esta
transferência violenta de identidade, a religião não só dividia como impedia o
povo de ser povo. Se para muitos, ser cristão era sinónimo de ser português,
fácil será concluir que a religião não actuou como factor de reunião e de
coesão de todos os homens, tribos, culturas de Moçambique, num só Povo
Moçambicano. Mais grave se torna esta crítica se pensarmos que as Missões
Católicas, mercê do ensino rudimentar que assumiram a partir do Acordo
Missionário, colaboraram na difusão da cultura portuguesa, contribuindo assim
para a alienação radical do povo. Mais uma vez o povo moçambicano sofria a
despersonalização, perdendo os valores que lhe eram próprios e adquirindo
valores que lhe eram estrangeiros. A cultura portuguesa, enquanto portuguesa -
nacionalista, dividia, dando origem não a um povo mas a sociedades justapostas,
estrangeiras na própria pátria. Os chamados assimilados constituem um caso típico
desta divisão cultural.
Mas havia, particularmente nas religiões católica e protestante, um
outro factor interno de divisão. Importadas da Europa, traziam no próprio seio
a separação de credo e de prática, e mais ainda a guerra de religião. Desta «guerra
santa» não estava alheio o islamismo. Também ele trazia desde a origem a
divisão, cultivando a separação e a luta contra as religiões cristãs. Assim
nasceram no meio do povo, «sociedades islâmicas, sociedades católicas,
sociedades protestantes», dificultando o crescimento da sociedade moçambicana,
do homem moçambicano, professando embora a fé católica, a fé protestante ou a
fé islâmica.
A religião não é produtiva. O
evangelho não produziu até hoje homens comprome-tidos com o homem, com o povo, homens
revolucionários; homens comprometidos com a unidade, com o trabalho, com a
identidade do povo moçambicano. Esta crítica embora não corresponda
inteiramente à verdade, não deixa de ter fundamento. Ao longo dos séculos
coloniais, a evangelização foi muito marcada pelo espiritualismo, pelo
individualismo e pelo dualismo. Numa concepção espiritualista, a religião
considerava o além como lugar da vida verdadeira e fazia da vida presente uma
prova. A vida eterna era vista exclusivamente como vida futura e não como
activamente presente na história e também criadora. O espiritualismo, ou mais
justamente, o transcendentalismo da fé, não formou cristãos comprometidos,
inseridos nas lutas pela justiça, pela construção da liberdade e da abundância.
Formou cristãos alienados das próprias opressões, alheios à luta dos oprimidos.
Formou cristãos, mas não cristãos combativos. Por sua vez o individualismo
religioso isolou o cristão numa fé quase exclusivamente vertical. A dimensão
horizontal da fé não aparecia como exigência radical do ministério cristão. O
evangelho da Ressurreição, com todas as suas consequências, não estava
presente na prática social, política, da maioria dos cristãos. A visão
individualista da fé reduziu tragicamente o evangelho, fez aparecer cristãos fiéis ao culto, mas
alheios à luta solidária. Não formou cristãos solidários com os homens, nem
com a libertação que a integridade do evangelho exigia. Finalmente o dualismo,
de raízes maniqueias, ensinando a separação da alma e corpo, o natural e o
sobrenatural, provocou na práxis cristã o divórcio entre a fé e a vida. A fé
dizia respeito ao sobrenatural, nada tendo a ver com o natural. O corpo, o
tempo, a história estariam fora das exigências da fé. Tratava-se de
salvaguardar a alma e não salvar o homem, muito menos a história dos homens.
Nesta visão dualista não cabe o compromisso político do cristão. A inutilidade
de prática da religião aparece evidente.
A Igreja gozou efectivamente de privilégios.
Privilégios que lhe vinham da tradição, do sistema, do
governo, do acordo missionário, da sociedade dominante. Privilégios que as
outras Igrejas não tinham.
Privilégios que a comprometeram, a tornaram débil, ambígua,
distante e contestada. Mas uma Igreja de privilégios é uma Igreja em perigo.
Perigo de traição à pureza do Evangelho e de infidelidade às aspirações do
povo. Perigo de seguir a mesma sorte dos poderes que garantiam os privilégios.
Caiu o sistema colonial e com ele os privilégios da
Igreja.
Na revolução que vivemos não há, felizmente, privilégios.
Há a liberdade de existir, de praticar e de amar a sério. Há a liberdade de ser
povo, fermento duma sociedade onde ninguém tenha privilégios e onde todos gozam
dos direitos fundamentais. É por isso que
a perda de privilégios constitui para a Igreja uma libertação, e um caminho de
identificação com o povo.
Há ainda a crítica pelo silêncio cúmplice com o sistema,
com a guerra de agressão e de repressão e particularmente com os crimes de
guerra.
A Igreja silenciada pelos privilégios, que constituíam uma
forma de opressão, silenciada pelo medo da catástrofe, não falou quando
devia falar, nem como devia falar. É certo que nos
últimos anos algumas vozes da Igreja se levantaram contra a injustiça do sistema
colonial, contra as atrocidades da guerra, contra a repressão do direito
fundamental do povo moçambicano: a Independência. Estas vozes porém não podem
ser consideradas como tomadas de posição da Igreja enquanto Igreja. Foram vozes
isoladas e nem sempre compreendidas pela própria Igreja. Resta portanto em pé
a verdade e a dureza desta crítica.
A Igreja não denunciou o sistema
colonial, não denunciou a guerra colonial, não denunciou, como era necessário,
as atrocidades cometidas ao longo dos dez anos de violência armada. Mais
ainda, a Igreja aceitou a presença de capelães católicos no seio do exército
colonial. Querendo minorar a violência da guerra pela acção dos capelães,
acabou por abençoar tacitamente a guerra que reprimia um povo na sua luta pela
Independência. Nesta perspectiva, a Igreja, particularmente a hierarquia,
apareceu intimamente aliada ao sistema colonial, à guerra contra a Frente que
por imperativo da justiça e da verdade lutava até ao sangue, pela libertação de
Moçambique. Não admira, portanto, que na hora da vitória da liberdade do povo
moçambicano a Igreja seja chamada a juízo e denunciada como cúmplice do
colonialismo.
4 - IGREJA E
CONSTITUIÇÃO POLÍTICA
À face da
Constituição da República Popular de Moçambique a Igreja não tem qualquer
privilégio e o seu direito é igual ao direito de qualquer instituição religiosa
aceite no país. Diz o artigo 19:
"A República Popular de
Moçambique é um Estado laico, nela existindo uma separação absoluta entre o
Estado e as insti tuições religiosas».
E o artigo 33 afirma:
«Na República Popular de Moçambique o Estado garante aos
cidadãos a liberdade de praticar ou de não praticar uma religião».
O artigo 26 declara que {(todos os cidadãos da República
Popular de Moçambique gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos
deveres, independentemente da sua cor, raça, sexo, origem étnica, lugar de
nascimento, religião, grau de instrução, posição social ou profissão».
E continua o mesmo artigo:
«todos os actos visando prejudicar a harmonia social,
criar divisões ou situações de privilégio em base na cor, raça, sexo, origem
étnica, lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição social ou
profissão, são punidos por lei».
E o artigo 19 lembra que «Na República Popular de Moçambique
as actividades das instituições religiosas devem conformar-se com as leis do
Estado». Este, o articulado que fala expressamente da religião, outros artigos
falam dos direitos dos cidadãos, direitos esses que os cristãos, como primeiros
comprometidos com a revolução, devem testemunhar e praticar. Deverão também os
cristãos assumir criticamente os objectivos que a República Popular de
Moçambique se propõe realizar e confessar, na construção de cada um deles, a
fé, a esperança, o amor, a libertação radical em Jesus Cristo.
5 - NOVA MANEIRA DE ESTAR, AGIR E
TESTEMUNHAR
Perante a revolução social, política e sobretudo cultural
que o povo de Moçambique está a realizar, perante o fracasso do tempo colonial,
a Igreja de Moçambique deverá encontrar uma maneira nova de estar, de agir, de
testemunhar a vida nova em Jesus Cristo. Não é fácil dizer hoje, como será aqui
a Igreja do amanhã próximo. E digo próximo, porque a revolução é muito rápida.
No entanto, algumas indicações poderemos enumerar.
Em primeiro lugar deveremos transformar a
crítica que nos é feita de dentro ou de fora em auto-crítica e esta em energia
criadora. Uma atitude sistemática de defesa, ou de lamúria, seria estéril e
contraproducente. Muitas têm sido as críticas feitas à Igreja a partir de
dentro e a partir de fora. Outras virão. A hora da purificação e do escárnio
ainda não passou. Não obstante a dureza, a inexactidão, o subjectivismo de
certas expressões, a crítica feita à religião, à Igreja, tem sido um bem para a
mesma Igreja. Se tivéssemos atendido às vozes que surgiram no interior da
Igreja, particularmente nos últimos anos, não haveria tanto para dizer. A
dureza dos nossos corações fechou-nos os ouvidos e levou-nos a denunciar como
«divisão escandalosa» o que efectivamente não passava de uma contestação
profética. Hoje pagamos o preço. Estamos porém no princípio. Maior preço
teremos que pagar para que a Igreja apareça como sinal indiscutível de
salvação, como fermento humilde e pobre no mais íntimo do povo em marcha.
Transformar a crítica em autocrítica é aceitar que pecámos, é aceitar não ser
mais uma instituição triunfalista, não ter mais obras poderosas, não ter mais
alianças, é aceitar morrer como Igreja do saber, do ter e do poder. É aceitar viver
e agir como Presença fraterna, Presença de comunhão, de compromisso e de
testemunho.
Isto leva-nos a enumerar uma segunda
indicação. A auto-crítica sincera, dinâmica, obriga-nos a repensar onde estão
e onde continuam a actuar as alienações e a acabar com as situações que
provocam. A conversão é uma mudança de mentalidade, antes de ser a mudança de
uma estrutura. A revolução é uma atitude de espírito, antes de ser uma linguagem
ou uma iniciativa. O tempo novo exige homens novos. Não adianta iludir o
problema. Sem uma conversão radical, sem uma passagem de uma mentalidade
colonial e burguesa a uma consciência fraterna, solidária, comprometida, continuarão
as alienações, as situações provocantes.
A remoção das estruturas, porventura
colonialistas, pouco aproveitará se os homens que nelas viviam não deixam de
pensar e de agir segundo o estilo colonial. É portanto hora de conversão, hora
da verdade. Não nos perturbemos, por conseguinte, com a crítica, venha donde
vier. Em união com todos os que professam a mesma esperança, em diálogo
sincero com o povo, eliminemos através da auto-crítica as alienações que porventura
existam.
A partir da conversão e do desaparecimento das alienações,
poderemos entender que a Igreja não está hoje e aqui para defender os seus
interesses. A Igreja do Evangelho não
tem interesses. O seu interesse é a salvação integral do povo. É a consolidação da justiça, da
liberdade, de fraternidade, da paz e da abundância. É o crescimento do povo na fé, na
esperança, na alegria de Jesus Ressuscitado. É o Anúncio discreto da Boa Nova de
Jesus de Nazaré. Talvez a Igreja tenha de morrer muito mais como meio
institucional para renascer como comunhão. Chegará então para a Igreja em
Moçambique a hora da pobreza efectiva, a hora da identificação com o povo como
povo.
Esta hora de pobreza e de identificação será possivelmente
mais dura para os missionários vindos de outras latitudes, de países marcados
pela mentalidade colonial e burguesa, e habituados a dispor na evangelização e
na pastoral de um certo poder. Mas se é hora de purificação, de pobreza e de
identificação com o povo é também hora do Espírito. Por isso, as dificuldades,
as críticas, os fracassos, as interrogações, não devem criar em nós a tentação
da angústia, do medo, da auto-defesa. Devem, sim, levar-nos à reflexão, à
descoberta de novos caminhos, à conversão e ao testemunho. A revolução exige da
Igreja mais do que palavras, factos evangélicos de ontem e de hoje que darão à
Igreja a credibilidade necessária para ser voz dos que não têm voz, para
caminhar com o povo como povo.
6 - QUE FAZER
IMEDIATAMENTE?
Chegados a este ponto, poderemos
perguntar: que fazer imediatamente? Quais
as orientações pastorais a seguir para viver o Evangelho na revolução
moçambicana?
Digamos, desde já, que orientação não é
sinónimo de solução. O tempo das receitas passou. As soluções concretas terão
de vir de todo o Povo de Deus em diálogo, em comunhão efectiva, em abertura aos
outros, tal como o fermento em relação à massa.
Tentemos, no entanto, algumas pistas:
► A nível de reflexão (em grupos, em
equipa, em comunidade, diálogo com o povo) urge descobrir respostas correctas
a várias interrogações que se nos põem:
- como viver o Evangelho numa
sociedade de orientação socialista? (não esqueçamos que a nossa maneira de
viver nasceu e cresceu dentro de sociedades de orientação capitalista).
- como aprender a amar esta nova
sociedade moçambicana de orientação popular e de inspiração materialista?
- como ajudar os cristãos a crescer
no conhecimento, na celebração e a comunicação da Fé, dentro de uma sociedade
socialista?
►A nível de acção impõe-se, como
inadiável, o seguinte:
- Toda a Igreja em Moçambique deve
testemunhar claramente a sua opção pelo povo. Isto significa em resumo que os
cristãos, a começar pelos missionários, experimentam e vivem na própria carne,
na confissão da fé, na celebração litúrgica, na circulação do amor, os
sofrimentos e as alegrias, as aspirações e as desilusões, as lutas e os
fracassos, os riscos e as esperanças, as dúvidas e as certezas, numa palavra,
a vida e a história do povo moçambicano. Não haverá dois caminhos paralelos: o
caminho da Igreja e o caminho do Povo. Haverá apenas um caminho: o
do povo. Neste caminho estará presente o Espírito reunido,
reconciliando, salvando,
testemunhando a vitória definitiva da vida sobre a morte. Igreja que não seja
povo, animado pelo Espírito, caminhando com o povo e como povo, não terá lugar
na história que Moçambique independente iniciou.
Significa ainda que as actividades pastorais devem nascer
das comunidades e não do missionário ou da equipa missionária isolados no topo
da pirâmide. Não há mais vértice e base na evangelização. Há comunhão orgânica,
activa e responsável. Há igualdade de dignidade, de vocação, de compromisso e
diversidade de funções, de ministérios e de carismas. As iniciativas, as
actividades, os objectivos devem nascer das comunidades e serem assumidos por
elas, tendo em conta, como é óbvio, a diversidade de carismas que o Espírito
Santo suscita para bem de todo o povo. Continuar com iniciativas nascidas do
topo, é continuar um regime que o povo já venceu, é condenar ao fracasso, à
inutilidade, ao contra-testemunho, a evangelização.
Testemunhar claramente a opção pelo povo significa,
finalmente, que os missionários entregam efectivamente a responsabilidade de evangelização
às comunidades, a responsabilidade das obras de assistência, de promoção, de
ensino e saúde, ao povo. Esta passagem desde há muito que nos preocupa. Não é
uma descoberta de hoje, nem muito menos um oportunismo. É uma exigência da verdade. Se as
obras são do povo, a responsabilidade também deverá ser do povo. Por outro
lado, a vida das obras não será autêntica enquanto não surgir do povo. Pensadas
e dirigidas pelos missionários serão duas vezes estrangeiras. Primeiro porque
os missionários vêm de fora; segundo, porque foram construídas sem o povo.
Serão obras marcadas pelo vício do paternalismo, enquanto aparecem com força do
missionário, e como ajuda do missionário ao povo. As obras da exclusiva
responsabilidade dos missionários negam ao povo o direito de participação, a
capacidade de criar, de assumir responsabilidades.
- Todos os missionários, desde o bispo
ao leigo, devem dar a primazia de tempo, de energia e de criatividade ao crescimento,
expressão e auto-suficiência das comunidades.
Isto supõe que o binómio
escola-capela, professor-catequista está definitivamente ultrapassado; supõe
ainda que as comunidades são formadas a partir dos adultos e progressivamente
responsabilizadas. Comunidades a partir das escolas, e totalmente dependentes,
são comunidades fictícias e condenadas a desaparecer. Supõe finalmente que na
preocupação pastoral passamos efectivamente das missões às comunidades, como
teremos possivelmente de passar num futuro próximo das comunidades às
famílias.
- Todas as comunidades devem suscitar
a partir do seu próprio seio os diversos ministérios. O tempo de missionários
de fora passou. É chegada a hora de os moçambicanos serem missionários dos
moçambicanos. O tempo de direcção estrangeira, passou. É chegado o momento de
os moçambicanos se dirigirem a si mesmos. Daqui, a necessidade urgente de ministérios
nascidos das comunidades e formados a partir das mesmas comunidades. Cristãos
investidos no ministério de presbíteros e Bispos devem surgir quanto antes das
comunidades. Os seminários tradicionais estão em crise e profundamente marcados
pelo trauma do colonialismo. Terão de ser repensados em moldes que por
enquanto desconhecemos. Por outro lado não parece que dos seminários
tradicionais possam sair presbíteros suficientes para as comunidades que deles
necessitam. Não terá chegado o tempo de pensarmos seriamente na ordenação
sacerdotal de cristãos casados, propostos e assumidos pelas comunidades?
- Todos os cristãos adultos deverão
comprometer-se com as diversas tarefas da revolução. O cristão não é um ser à parte. É um cidadão que leva consigo uma
vida, uma esperança, um testemunho, uma mensagem. Isto exige dele uma
consciência adulta, uma competência sólida e uma atitude solidária. O seu distintivo no
engajamento que vive e realiza, será o amor fraterno a toda a prova e a alegria
de servir.
- Todos os missionários deverão participar no crescimento
do povo.
O modo de participar na libertação, na unidade, no trabalho
é muito vasto e muito variado. A tarefa que não é imprópria da vocação humana
não é imprópria da vocação missionária. Como qualquer cidadão, também os
missionários estão empenhados na construção nacional. Não recusam participar
nas tarefas da produção. Comprometidos com o povo, cada decisão concreta deverá
ser pensada principalmente a partir das comunidades onde estão inseridos, de
tal maneira que o trabalho apareça não como simples ganha-pão mas como expressão
de solidariedade e de identificação com o povo empenhado na construção do
próprio país.
CONCLUSÃO: O tempo novo de Moçambique é também tempo novo da Igreja.
O Espírito está presente e interpela a sua Igreja. É hora de despertarmos do sono (Rm 13, 11). É hora de conversão de consciências, de atitudes, de
métodos e de estruturas. A Igreja também foi libertada da opressão colonial.
Deverá continuar a crescer na liberdade. Só assim poderá testemunhar a vida no
seio da revolução que tenta construir o homem novo, no Moçambique novo.
Bispo
Manuel
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