quarta-feira, 13 de maio de 2020

Afonso Imputha

Profere a homilia com a vivacidade que lhe era peculiar


Conheci-o antes de, em 1988, eu ter assumido os cuidados pastorais das Paróquias do Marrere e Murrupula (a esta já eu dera assistência de 1982 a 1986 em plena guerra civil, contando, ali, com outro grande Pastor, Papá Alexandre Rancho).

O “senhor” Afonso era conhecido entre os médicos que prestavam serviço no Hospital do Marrere. Tinha fama! O servente, senhor Afonso, era a pessoa mais confiada para segurar as delicadas chaves do depósito dos medicamentos!

Um jovem médico português, Rui Teixeira, cardiologista, meu amigo ao conhecê-lo como cooperante zeloso e dedicado, em cuja casa eu parava com alguma frequência nos anos 1982-1985, falara-me dele. Falávamos justamente a propósito de ética profissional (ou por causa da falta dela) nos hospitais. Era uma pessoa com credibilidade social incontestada. Era, como bem sabemos todos, um conselheiro social. Consequentemente, sentia eu, na minha alma, um exemplo do que deva ser um cristão em testemunho na sua vida corrente.

Conhecê-lo, pessoal e fisicamente, em 1988, foi, para mim, uma enorme alegria e satisfação. Na análise de todas as situações, das sociais às estritamente pastorais, sabia que tinha ali um sábio! E foi-o, realmente, em todas as situações, por delicadas e melindrosas que elas fossem. A primeira foi logo nos primeiros meses da minha chegada ao Marrere, quando tivemos de corrigir algumas situações de comportamentos de alguns animadores. 

Homem corajoso, nunca se deixou amedrontar pelos costumados medos macuas...sobretudo com ameaças de feitiços ou por invejas fossem de quem fossem. Sem hesitar ou tentar inventar qualquer desculpa para se livrar, aceitou, em condições delicadas, assumir, interinamente, o serviço de Animador Paroquial. Foi, por isso, o meu grande mestre e o meu alicerce seguro na busca dos caminhos de uma pastoral atenta ao pobre e ao humilde, e bem alicerçada na cultura materna. Ao mesmo tempo, nas circunstâncias delicadas em que assumira a interinidade do serviço de Animador Paroquial, foi um servidor que, na sua coragem, nos ajudou a corrigir tentações já então emergentes, dos que já se insinuavam como pretendendo instalar-se como donos vitalícios das comunidades ou dos cargos paroquiais como se fossem “régulos” ou seus sobrinhos. Poucos homens, cristãos ou não, teriam sido capazes de tanta coragem. 

Na mesma linha se situa outra situação. Era ainda quase madrugada. Talvez 4 da manhã. Passou na minha casa para avisar: vou à minha terra, lá onde está o meu pai. Ouvi dizer que há lá uma situação: uma criança morreu na barragem e as pessoas estão a acusar um jovem, vindo da cidade, de lhe ter feito feitiço. Eu vou lá para defender esse jovem. Pode acontecer que se virem contra mim; se ouvir que morri, já sabe o que se passou. E partiu!

Mas sobre este homem, que na sua simplicidade e espontaneidade pastoral eu sempre senti ter muito a ver com o nosso Arcebispo Manuel e agora com o Papa Francisco, talvez, nestes dias venha ainda a contar mais coisas edificantes.

 Hoje, fico por aqui, celebrando, em dolorosa páscoa, a plenitude da vida em Jesus que, sem dúvida, já o acolheu na sua glória. 

Sob o impacto da notícia dolorosa, no contexto da crise mundial, juntamos a esta páscoa, este 13 de Maio, em que as celebrações do Santuário de Fátima ficarão, sem dúvida, marcadas na alma de todos nós, agradecendo a magnífica homilia do seu Bispo, o Cardeal António Marto, que tanta proximidade revela também com o nosso querido Papa Francisco . Glória a Deus e à nossa Santíssima Mãe, Maria! (Zé Luzia)

domingo, 10 de maio de 2020

Páscoa do Arcebispo Manuel Vieira Pinto




Herança e desafios



*Este texto foi produzido para o jornal SAVANA de 7.05.2020





“Cristianismo e religião - Fé e revolução” foi o título da carta-pastoral do Bispo Manuel Vieira Pinto no Natal de 1978. Num tempo de ateísmo militante, tratou-se de uma proposta e de um desafio a um diálogo sereno aos ideólogos marxistas da Frelimo como Jorge Rebelo, Marcelino dos Santos, Sérgio Vieira, e outros, a uma mais realista definição das atitudes políticas tendo em conta a índole socio-religiosa do Povo moçambicano. 

Afinal, a religião não tem de ser, fatalmente, ópio do povo, mas também pode ser fonte de rebeldia revolucionária, de inspiração transformadora da sociedade.


Manuel, também nisto se revelou o pastor intrépido, seguro de que as vicissitudes por que a Igreja católica passava, às mãos da Frelimo, eram o dedo de Deus a fazê-la renascer no coração do Povo como genuinamente moçambicana. Nada de anticomunismo primário ou de tentação de resistência à proposta de reconstrução nacional. Manuel Vieira Pinto foi, também, tranquilamente, catequista dos políticos. Por isso pode responder à conhecida interpelação de Samora: “Deus não precisa que o defendam. O Homem sim!”


Nestes dias da sua “Páscoa”, proliferam, os elogios ao querido Arcebispo Visionário, "Bispo do Povo", como o classificou o meu amigo Charles Inácio Baptista no jornal Canal de Moçambique. E todos serão poucos, para com um discípulo de Jesus que foi, crescentemente, na sua peregrinação terrestre, um incontornável defensor da dignidade de todo o humano. E foi-o, especialmente das pessoas mais pobres, mais abandonadas nas margens do mundo, ou perseguidas pela sua entrega ao serviço das causas da verdade e da paz; e mais ainda, e, tantas vezes, sacrificadas e massacradas na estupidez de todas as guerras, enfatizando, aqui, sua querida terra moçambicana, a tristemente inesquecível guerra civil – a tal dos 16 anos - de que ainda ninguém se penitenciou. Nem Frelimo nem Renamo. E o resultado dessa falta de penitência, está bem patente, hoje, a nossos olhos.


 De mim, sobrevivente privilegiado de todos os colaboradores mais próximos do amado Arcebispo, já não se devem esperar mais encómios. Seria fastidioso repetir aqui o que tantos outros já disseram, e muito exaustivamente, o meu irmão, militante católico, Benedito Marime, na mesma edição referida do SAVANA . Fá-lo-ia de bom grado, e com toda a facilidade. Mas já seria “chover no molhado”.


Mas porque o Fernando Lima, nosso companheiro de caminhadas em tantas trincheiras de liberdade, comuns a mim e a Vieira Pinto, me pediu um testemunho, ainda que profundamente consternado, como tantos dos que, com imensa cordialidade, se me dirigiram nesta hora, até expressando condolências, como se eu fosse o seu filho dilecto pela carne e pelo sangue, aceitei marcar a minha presença neste registo. De facto, como ficou claro no livro que produzi sobre ele – MANUEL VIEIRA PINTO – O VISIONÁRIO DE NAMPULA – a nossa sintonia espiritual, pastoral e política, foi total.


Funeral em Amarante (Portugal) - 2.05.2020


A pandemia do COVID 19 obrigou a que o seu funeral não tivesse a solenidade que todos desejávamos e tivesse sido feito na exiguidade e nos constrangimentos de todos conhecidos. Um dia, reconvocar-nos-emos para fazermos a celebração da glorificação pascal da vida tão plena de tão grande pastor.
Já nos tínhamos habituado ao seu silêncio, à sua ausência de cena, à sua voz emudecida pela doença. 


Tanto assim que, um relevante moçambicano dos governos de Samora, Teodato Hunguana, me diz: 

Na verdade não fazia ideia de que o D. Manuel Vieira Pinto estivesse ainda entre nós! Tanto silêncio sobre um nome tão notável, a quem tanto devemos, levou-me certamente a essa presunção. Estou em crer que há muito da vida dele, da relação dele com os libertadores, que não conheço, ou não conhecemos, e que deve ser trazido ao nosso conhecimento. Por isso me interrogo se o padre Zé Luzia, sendo um privilegiado e profundo conhecedor da vida de D. Manuel Vieira Pinto, terá de facto dado já por terminada essa tarefa com os livros que publicou, mas que não cobrem essa fase antes do seu regresso a Portugal...?!...sobretudo sobre as circunstâncias desse regresso!

Louvado seja Deus pela herança desafiante que nos deixa!  Na verdade, conheci-o melhor lendo os seus livros... Na verdade, os seus livros são garante da preservação do legado de D. Manuel Vieira Pinto! E hoje estamos tão precisados desse legado! O caminho da Igreja, isto é, de Cristo em Moçambique, passa pela vida dele e pelo legado. Não se pode compreender bem onde estamos hoje sem essa referência fundamental. D. Manuel Vieira Pinto “combateu o bom combate, terminou a corrida, permaneceu fiel”...e está recebendo a “merecida coroa ... que o Senhor lhe entrega”. 

Partilhas como esta, do Teodato, tão imediata e espontânea no whatsapp, calam muito fundo no meu coração. Aprendi, agora, que a palavra consternação não é vocábulo de simples conveniência protocolar de necrologia. Exprime, nestes dias, a mais profunda intimidade de todos nós. Afinal, mesmo roubado pela doença, há anos, ao nosso convívio, todos continuávamos a senti-lo vivo, palpitante, como se fosse nosso eterno companheiro nesta peregrinação terrestre.

A “Irmã Morte” veio despertar-nos, a todos, da letargia em que vivíamos e trouxe para a ribalta mediática, sociológica, política e eclesial, o nosso Pai (como tão carinhosamente, sobretudo os mais humildes do Povo Moçambicano, me perguntavam por ele).

Todos o sentimos. Assim o exprimiu o Professor Jorge Ferrão quando há dias escreveu: “Dom Manuel Vieira Pinto foi alguém que nos habitou às múltiplas despedidas, tantas foram as vezes que partiu e regressou (Cartamoz, 4.5.20). Porém, em Março de 2001, partiu para nunca mais voltar.  E toda agente me pergunta: porquê?

Os registos acerca deste nosso Pai, chegados nestes dias, são unânimes e convergentes.

Diz o Professor Leonel Marcelino, o verdadeiro construtor da nossa Rádio Encontro:
“Nunca me esqueço das reuniões e dos encontros em que participámos. Era um espectáculo de humildade, de saber, de recato, de saber estar e cativar. Não precisava de falar para se fazer entender. Um gesto, um sorriso, bastavam para nos dar paz e entendermos o que tinha na ideia para bem do Povo em geral, dos colaboradores, de todos que o acompanhavam mais de perto, e não só. Há-de ser muito difícil encontrar alguém capaz de lhe chegar aos calcanhares na sua acção e missão. Descanse em PAZ!”

Eu, muito jovem, cheguei ao convívio do Bispo Manuel, em Nampula, em 1968. 

Setembro 1968 - Primeiros encontros do jovem Bispo com os filhos da terra
Eu, aprendiz de missionário e de padre, logo me dei conta do pastor sempre aproximado de toda a gente como esta fotografia ilustra.
A "Diocese", denominação, então, da casa do Bispo, deixava de ser o palácio distante onde os pobres nunca tinham acedido. Como, 45 anos depois, viria a dizer o Papa Francisco, “um Pastor com cheiro a ovelhas”. De facto, o Bispo Manuel foi, como agora Francisco, sempre surpreendente nas palavras e nos gestos.

Atrevido, avantajou sempre as asas dos nossos voos de jovens insatisfeitos e rebeldes, arroteando caminhos por abrir. Ousado! Tanto na pastoral em sentido mais estrito, como nas suas incidências políticas, como o testemunham as homilias “Repensar a guerra” (1974), interpelando o governo e a sociedade coloniais, que o levou à expulsão; e “A Coragem da Paz” (1984), desafiando, em nome do Povo, o Presidente Samora a entabular o diálogo com a Renamo.

Como Igreja, conheci, na prática, um Bispo não-clerical. Com ele aprendi a ser animador de uma genuína Igreja de Todos, crescentemente livre do vício clerical, pela participação de todos os batizados, do pé descalço ao engravatado, tanto ao gosto, hoje, do Papa Francisco. 



Visita Pastoral no Mirrote - Animador Paroquial José Monteiro

Nessa linha, aprendi a ser padre mais da “Igreja das Palhotas”, das pequenas e humildes comunidades emergentes, do que da grandiosidade das empoladas catedrais por impressionantes que elas possam ser. E são-no! Vieira Pinto deleitava-se nas celebrações do "mato", para as quais levava os mesmos solenes paramentos que utilizava na catedral!
 
Alexandre Rancho na celebração do Envio dos Animadores

Tenho a certeza de que se o Papa João Paulo II lho tivesse permitido, alguns homens casados, como, por exemplo, o Animador Paroquial Alexandre Rancho, de Murrupula, teriam sido ordenados presbíteros.

Com efeito, foi também o atrevimento e a aposta do Bispo Manuel que fez destes homens e mulheres simples e de pé no chão, protagonistas do renascimento da Igreja católica em Moçambique, e mais particularmente, na nossa Diocese, no contexto do ateísmo a seguir à independência. 

 
Esta atitude de Manuel Vieira Pinto era mestra, também, para toda a Igreja de Moçambique como, em mensagem agora recebida do Bispo Élio Greselin, emérito de Lichinga, o exprime:

“Li com verdadeiro gosto a tua intervenção sobre o bispo de Nampula D. Manuel Vieira Pinto. Eu conhecia-o muito bem e tinha ficado em sua casa durante uns tempos  em Nampula. Lembro, muito bem, a sua simplicidade e a sua fidelidade ao povo durante os tempos da guerra colonial . Ele era para nós um verdadeiro bispo, guia do povo e dos bispos naquele tempo de grande confusão”.

É urgente que esta figura emblemática da nossa história moçambicana, sirva de fonte de inspiração. Bem no-lo apontava já o actual e também Bispo-Profeta de Cabo Delgado, Luiz Lisboa, quando, em 2016, prefaciando o livro O VISIONÁRIO DE NAMPULA, não suspeitando da desgraça que haveria de se abater sobre ele e o seu povo, escrevia: 

...convido todos os bispos de Moçambique e de outras terras para que a vida e o testemunho de D. Manuel seja, para cada um de nós, fonte de inspiração e encorajamento; incentivo cada leitor/a para que saboreie as poucas páginas deste livro que, contendo apenas uma parte da rica trajectória de um valente e destemido cristão, não são mais do que um aperitivo para despertar o apetite para “comer” toda a sua herança teológica, pastoral e espiritual”.

Inspiração para que o mundo académico, a começar pelos nossos seminários e as instituições universitárias, sobretudo as das áreas da sociologia, da psicologia, da política e das humanidades em geral, produzam trabalhos de pensamento que rentabilizem a preciosa herança que ele nos deixou.
Os dias do Moçambique de hoje no-lo exigem. A guerra larvar no centro do país, e o terrorismo criminoso de Cabo Delgado, desafiam-nos como cidadãos e como cristãos. 

A democracia doentia sem eleições justas, infernizam a vida dos moçambicanos que clamam por honestidade.

Mas se todos estamos de acordo sobre o gigantismo desta incontornável figura de comprovada e pragmática moçambicanidade, como podemos entender:

1º Que ele nunca mais tenha voltado à sua querida terra de adopção como tanto desejava? Que não esteja sepultado na campa rasa à entrada da sua catedral, como tão explicitamente manifestou numa homilia na mesma catedral e que, lamentavelmente, logo, também no jornal SAVANA daqueles dias, uns fedelhos "ultra-nacionalistas" apareceram a verberar? Quem foram os ingratos que não lhe abriram o caminho regresso? 

2º A ingratidão de um governo que não o enalteceu nem lhe concedeu, atempadamente, a consolação de o brindar com a nacionalidade, pedido que ele nunca fez por uma questão de evitar equívocos e mal-entendidos, mas cujo desejo manifestou na sessão de despedida da diocese em 4 de Março de 2001? Será que Mário Raffaelli, o respeitado facilitador do Acordo Geral de Paz (Roma, 4 de Outubro de 1992) se pode comparar, no serviço a Moçambique, a Manuel Vieira Pinto? Ou mesmo os ínclitos Presidentes Julius Nyerere e Keneth Khaunda?

Talvez o leitor possa ter interesse em escutar a sua própria voz sobre  estas questões na gravação feita e guardada pelo Padre Manuel Vilas Boas (2002) em https://www.tsf.pt.

Não podia não voltar a falar destas temática por achar que a ingratidão é um pecado de lesa-pátria que contamina as sociedades e os estados como entidades de bem e de serviço. Já Jesus de Nazaré questionava: “Não foram dez os curados? Então só voltou este estrangeiro para dar glória Deus? Onde estão os outros nove?"

Gratidão, é o que faz falta, cantaria, quase de certeza, o saudoso trovador  Zeca Afonso!