Ateísmo e Religião
Fé e Revolução
Natal 1978
1 - Vivemos na Revolução
um momento novo.
Os
acontecimentos processados ao longo deste terceiro ano de combater em várias
frentes, levam-nos a reflectir e a tentar descobrir os caminhos 'que melhor
permitam cooperar ,na na "libertação total do homem"[1]. É
nesta linha que gostaríamos de falar do ateísmo, da liberdade religiosa e do
diálogo entre marxistas e cristãos.
Não se trata de defender os direitos de Deus,
mas o direito do Homem a ser Homem integral, a viver dignamente, a conviver na
amizade e na solidariedade. Por isso afirmamos que a sociedade a construir por
todos nós terá de ser "integralmente edificada e organizada em benefício
do Homem[2]. Por isso lembramos que a
dignidade do Homem será sempre o objectivo permanente de todos os combates[3], mesmo
do combate contra a alienação religiosa.
2 - A revolução moçambicana é ateia.
Convém no entanto
explicar, embora ao de leve, a génese e as características do ateísmo do nosso
tempo, para melhor assumirmos os comportamentos que o processo em curso pode
gerar, tanto nos crentes como nos ateus e nos anti-religiosos. Será de igual
modo oportuno situar a liberdade religiosa, lembrando os últimos séculos e o
momento actual da Revolução, para em seguida tentarmos compreender algumas das
exigências que o ateísmo põe tanto às Igrejas como á própria sociedade ateia.
No
processo de criação e consolidação da nova sociedade, marxistas e cristãos não
podem ignorar-se nem combater-se mutuamente. Deveremos então encontrar o
diálogo que permita uma justa e digna cooperação. Com a presente reflexão,
gostaríamos de contribuir para o avanço daquele "pressuposto indispensável
para a libertação do Homem"[4] e de
todo o Povo Moçambicano em luta pela
edificação duma sociedade de "Homens livres, solidários e
desenvolvidos"[5].
3 - Importa dizer, antes de mais, que o
ateísmo não tem as suas raízes na
revolução moçambicana, nem tão pouco recebe dela qualquer originalidade.
Seguindo o Concílio Vaticano II, poderemos descrever as várias formas de
ateísmo do nosso tempo. Com efeito, com a palavra ateísmo designam-se fenómenos
muito diversos. Há quem negue expressamente a Deus e por isso, ao falar destes,
seria mais correcto falar de anti-teístas e não propriamente de ateus. Há
também quem diga que acerca de Deus nada se pode afirmar, nem positiva nem negativamente.
Esta é a posição dos agnósticos. Há ainda quem pense que o problema de Deus
não tem sentido; que preocupar-se com tal problema é preocupar-se com uma
questão inútil. Outros pretendem que tudo se explique pela razão científica.
Esta foi e continua a ser a tarefa do positivismo e do cientismo.
Outros, mais preocupados em afirmar o Homem
que em negar Deus, exaltam de tal forma o Homem que Deus tem de morrer. O
soberano, pergunta Marx, é Deus ou o
Homem? Responde, em seguida, que «o Homem é o ser supremo para o Homem"[6] . Esta
é a linha do humanismo ateu que, partindo de Hegel, Feuerbach e Marx, caracteriza o humanismo moderno.
Há
ainda quem não reconheça qualquer verdade absoluta, caindo assim no relativismo
e no cepticismo. Não são poucos também os que, atribuindo a certos ideais
humanos um carácter absoluto, acabam por
considerar tais ideais como se fossem Deus. Aparecem-nos assim, na cultura moderna,
ideologias e mitos, substitutos de Deus; ídolos e confissões de carácter político, social, económico
e cultural.
Outros
esperam a libertação do Homem da libertação económica e a esta, dizem, opõe-se,
por sua natureza, a religião, na medida em que, dando ao Homem a esperança duma ilusória vida futura, o afasta da construção da
cidade terrena.
Os
que professam tal ateísmo afirmam ainda que a autonomia do Homem é incompatível
com qualquer dependência em
relação a Deus, pois que o homem é o autor único e demiurgo
da sua história.
Lutando
pela libertação total do Homem, esta forma de ateísmo torna-se, com frequência,
militante, sobretudo quando alcança o poder político[7].
4 - Encontrar as raízes do ateísmo é possuir, de algum modo, a chave
para o compreender.
A
humanidade de hoje vive, efectivamente, uma fase nova da sua história, marcada por
rápidas, profundas e universais transformações, a todos os níveis, provocadas
pela inteligência e actividade criadora do homem. Tais transformações põem em causa o próprio homem, os seus juízos e desejos individuais e
colectivos, os seus modos de, pensar e de agir, tanto em relação às coisas como
às pessoas, instituições e modelos de vida.
Estamos
de facto em presença duma verdadeira transformação social e cultural[8]. É lícito, na
verdade, falar duma nova era da história humana[9],
duma nova cultura, rica, sem dúvida, de grandes valores positivos, mas também
de antinomias a que o homem terá de dar resposta[10]. O ateísmo
aparece-nos, assim, como um fenómeno ligado a alguns dos principais rasgos da
cultura moderna.
5
-Antes de mais, a Secularização.
O
Concilio fala da autonomia das realidades terrestres[11], da
autonomia da cultura[12], da autonomia do Homem[13]. Afirma ainda que a autonomia das realidades temporais é plenamente
legítima. Na verdade, as realidades terrestres, as sociedades, têm as suas
leis, os seus valores próprios e compete ao homem descobri-los, organizá-los e
utilizá-los.
A
secularização é, portanto, uma recusa e uma afirmação.
Recusa
a aceitar que a terra não tenha consistência em si mesma, que o mundo só
encontre expressão na esfera e na dependência do
sagrado, que a filosofia tenha de ser escrava de teologia e que a ciência não
tenha os seus métodos e as suas leis próprias.
Afirmação
de que todas as coisas são dotadas de consistência, de verdade, bondade, de
leis próprias e de uma ordem que o homem deve respeitar e reconhecer[14]. A secularização liberta as coisas da esfera e da
influência do religioso, alarga a esfera profana, afirma a autonomia e
secularidade do mundo.
Com
a secularização opera-se uma passagem importante para a compreensão do ateísmo.
A passagem da consciência religiosa à consciência profana. O sentido último já não está no
divino. O sagrado deixou de ser significativo. Mais
do que secularização das realidades temporais poderíamos falar de secularização
das consciências.
A
estruturação e organização social do mundo já não têm o divino por quadro de
referência. O homem moderno já não conta com o sobrenatural para a compreensão e construção do mundo, de que ele se sente senhor e artífice. E parece
tratar-se dum sentimento crescente.
A
maior parte dos historiadores concordam em dizer que os últimos tempos
conheceram uma evolução das culturas religiosas para culturas mais materialistas. Verifica-se, de facto, a passagem do mundo religioso ao mundo
secularizado, a passagem da consciência espiritualista à consciência materialista[15].
A
secularização, sendo em si mesma positiva, não deixa de constituir uma das
raízes do ateísmo contemporâneo.
6
- A emancipação progressiva do Homem e da
História é um outro dado importante da cultura moderna. A
emancipação que toma verdadeiramente corpo a partir do Renascimento, tem vários
aspectos, como vários são os aspectos da submissão.
Em
primeiro lugar, a emancipação cultural. Todo o seu esforço consiste em
desligar a filosofia da teologia, a ciência da religião, a investigação da Bíblia,
a consistência do profano da consistência do sagrado. É o tempo da afirmação da
autonomia da razão, frente, particularmente, à Igreja.
Em
segundo lugar a emancipação política. Terá como objectivo desligar a
organização da sociedade do mundo religioso. A Revolução Francesa foi o grande
arranque. Não se tratava duma revolução ateia ou anti-religiosa, mas
intencionalmente anti-clerical. O peso da instituição
clerical-religiosa era demasiado. A emancipação da sociedade, sem a remoção
desse peso, seria ilusória.
A proclamação universal dos direitos do Homem, em 1789, põe um ponto final à ordem estabelecida por Deus, como fundamento desses direitos e do Poder. O
ateísmo aparece-nos assim como um problema politico.
Já nos finais da Idade Média se iniciara
um processo de emancipação política, cujos resultados definitivos só
encontrariam expressão na Idade moderna.
A primeira etapa remonta à luta das investiduras. Uma luta
prolongada entre o Papado e o Imperador e cujo significado último consistia na
dessacralização do Imperador e por conseguinte, na afirmação da politica como
actividade autónoma. Desde então, a política disporia de objectivos próprios,
independentes dos objectivos espirituais. O tempo, contudo, não estava maduro
para que o poder civil levasse a cabo todas as consequências.
Mas a primeira pedra estava lançada: a legitimação teórica da política, como
actividade específica.
A segunda etapa inicia-se com as divisões religiosas.
Toma corpo durante as guerras de religião e institucionaliza-se com a Revolução
Francesa. A Reforma religiosa do séc. XVI levanta um grave problema de
convivência social. O conflito das Igrejas não era apenas religioso. Era também
político. O poder civil sente-se obrigado a lutar pela verdade contra o erro e
com os argumentos que possuía: as armas.
As guerras de religião ensanguentaram a Europa e as suas
consequências foram definitivas para a emancipação política. Se, na época
anterior, a Igreja manipula a política, as guerras dão aos príncipes a
possibilidade de tomar consciência da própria força e superioridade sobre as
igrejas. Chegam, além disso, à conclusão de
que a unidade politica, bem como a convivência social, não podem cimentar-se
sobre a religião, convertida em elemento de discórdia.
A paz, a unidade, a segurança nacional, só poderão
conseguir-se à custa do controlo da
religião pela política. A construção da paz e da unidade nacional é assunto do Príncipe,
cujas decisões são leis. A emancipação política torna-se um facto.
Em terceiro lugar a emancipação social.
Os movimentos revolucionários do séc. XIX desligaram
definitivamente a construção duma sociedade nova da influência do poder
religioso e do poder do estado cristão.
Estes movimentos foram ateus e anti-religiosos. A
supressão da religião aparece-lhes como primeira condição para o
desmantelamento e liquidação das forças opressivas.
Em quarto lugar a emancipação científica e tecno1ógica.
Unida intimamente à emancipação do homem, ela pretende
desligar toda a ciência e toda a técnica de qualquer referência ao religioso. A
autonomia absoluta e à consistência, seguir-se-ia a moral a partir da eficácia.
Esta é a revolução em curso. A mais temível e a mais decisiva, porque a técnica
tornou-se um deus que ameaça terrivelmente a Humanidade.
7 –
O processo de emancipação vai naturalmente marcado por um tipo de pensamento
cuja constante é a crítica à religião.
No “século das luzes" encontramos o conceito de
religião numa dupla perspectiva. No interior das igrejas, a perspectiva da
religião positiva e revelada no mundo dos filósofos, a religião natural, que
opõem criticamente à religião
revelada.
A relação entre os dois conceitos vai-se aclarando pouco
a pouco e por etapas.
A princípio não se quer liquidar o mundo biblico-cristão.
Kepler, Bruno, Galileu, Newton, prosseguem uma purificação do cristianismo
criticando toda a forma de superstição e de obscurantismo. Mas, à medida que
os interesses eclesiais se distanciam dos interesses da racionalidade crítica,
a diferença vai crescendo. As guerras de religião persuadem os filósofos da
superioridade da religião natural, bem como a assimilação desta à ordem da convivência social. A actividade humana, o
pensamento, a sociedade, não têm por medida uma ordem revelada. Derivam de
pressupostos naturais, de si mesmos, universais e racionalmente controláveis.
Da distinção entre natural e revelado, à oposição, vai apenas um passo. Este dá-o a doutrina
de Hobbes e o deísmo inglês. A religião há que fundamentá-la, natural e
racionalmente, na consciência do homem, nunca na tradição e na autoridade. Ao
mesmo tempo, denuncia-se de ideologia a religião revelada. Toda a religião é a
justificação teórica de interesses ocultos.
A crítica à religião não
se detém na crítica à religião revelada mas desemboca na crítica absoluta a
toda a religião. A Ilustração francesa reduz a religião natural a um conceito
racional-estético.
A denúncia da religião revelada como ideologia, leva à crítica do fenómeno religioso como ideológico.
Inimigos da racionalidade são os preconceitos, particularmente os religiosos.
Fontes dos preconceitos são a ignorância e o medo de que se aproveita a
religião para manter o povo na servidão. A missão de uma crítica radical à
religião consiste, pois, em desmascarar o fenómeno religioso, como um complexo
de preconceitos. Ao mesmo tempo, há que desmontar o complexo sociocultural que
os alimenta, assim como os interesses políticos que subsistem e se produzem graças à manutenção do fenómeno
religioso. A crítica da religião desdobra-se, deste modo, em crítica da sociedade.
Chegamos assim à luta de Marx contra a religião e às situações que a
originam[16].
8
- O ateísmo
da civilização contemporânea é, por conseguinte, um fenómeno extremamente
complexo.
Nele
convergem múltiplos factores de natureza religiosa, política, social e
económica. O pensamento moderno não tem sido mais que a afirmação progressiva do reino
do homem a expensas da crescente perda de Deus. Por isso, o ateísmo radical
definirá a positividade do ser do homem, como pertença absoluta de si mesmo.
"O Homem é o ser supremo para o Homem". Tenderá, por outro lado, a
identificar-se, em muitos aspectos, com a nova civilização, a ser portador, não
só duma aspiração à liberdade, mas também dum projecto duma nova sociedade,
mais justa e mais humana.
Poderemos
então imaginar que a emergência do ateísmo poderá acontecer onde aconteçam instâncias
que provoquem a emancipação do homem e a consciência duma nova maneira de
organizar a vida política, social e económica dos homens.
9 - Marx não
desconhece o ateísmo do seu tempo. Herda-o e parte dele como um pressuposto
indiscutível.
Não
se preocupará, por isso, com a negação de Deus. Na sua crítica à religião terá
presente a afirmação do homem. Sentirá, além disso, a larga influência que a
religião exerce sobre os seus contemporâneos, bem como a fraqueza e o débil
testemunho social das Igrejas. Criticando o Estado prussiano, acusará a
religião de ser conivente com a política dos poderosos, servindo de apoio ao conservantismo e à reacção e travando, no
oprimido, a revolta e a luta.
A
alienação religiosa determina a crítica de Marx. Alienado é o homem que se
perdeu em si mesmo. Para se reencontrar, torna-se forçoso destruir as situações
que o alienam. A religião é uma situação alienante."É a consistência que o homem
extraviado possui de si mesmo. É a realização fantástica do ser humano. É o
suspiro da criatura oprimida, a alma dum mundo sem
coração. É o ópio do povo". “A religião não passa do sol ilusório que
gravita em volta do homem, enquanto o homem não gravita em volta de si próprio".
"
A abolição da religião, enquanto felicidade ilusória do povo, é uma exigência que a felicidade real formula". E se "o Estado e a
sociedade produzem a religião, consciência invertida do mundo, porque eles
próprios são um mundo invertido, lutar contra a religião é lutar contra esse mundo". "É pois, tarefa
da filosofia, desmascarar a auto-alienação nas suas formas não sagradas, uma
vez denunciada a forma sagrada da auto-alienação do homem. Assim a crítica do
céu transforma-se em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do
direito, a crítica da teologia em crítica da política"[17].
Podemos
concluir que, para Marx, a crítica da religião não é o objectivo supremo. Com
efeito, se é verdade que a religião é um fenómeno social, se é efectivamente um reflexo deformado, ilusório, que tem por origem as
contradições da sociedade, então a luta contra a religião, para ser
verdadeiramente eficaz, deverá tender a eliminar as raízes sociais que lhe dão origem.
Deste
modo a luta contra a alienação religiosa deverá estar subordinada a luta dos
explorados contra os exploradores. É nesta perspectiva que se inscrevem as
explicações de Marx e Engels.
No
entanto, o problema religioso aparece o Marx como um ponto de partida. "A
crítica à religião é a condição de toda crítica". Mais ainda quando a
religião justifica a violência exercida pelos exploradores
e a violência sofrida pelos explorados, ou quando, por conivência com o poder,
trava a emancipação do homem oprimido.
É
verdade que Marx apresenta a religião em duas dimensões: "A angústia religiosa é, por um lado, a expressão da angústia real, e por outro, o
protesto contra a angústia real"[18].
Se
a dimensão de "expressão" justifica a crítica, a dimensão
de"protesto" autoriza a simpatia. Engels, particularmente, sublinha
ao lado dos aspectos negativos, o aspecto positivo da fé
cristã. Isto levou Garaudy a afirmar que a religião se nunca foi motor da história,também
nem sempre foi um travão.
10
- Lenine continua a crítica de Marx e organiza, além disso, a
luta contra a religião.
Para
ele, a religião é não só "o ópio do povo", mas também a "matriz
de impurezas, preconceitos, obscurantismos e incultura". "Órgão de
reacção burguesa, a religião desempenha um papel classista e serve para
consagrar a servidão!”.
"Deus
é, antes de tudo, um conjunto de ideias engendradas para a destruição obtusa do homem, nas mãos da natureza ambiente e do jugo
classista". "A ideia de Deus sempre adormeceu e embotou os
sentimentos sociais, substituindo o que é vida pelo que é
morte"[19].
Por isso, "a
luta contra a religião" impõe-se "como obra de todo o materialismo
e, por conseguinte, do marxismo"[20]. E
se a religião é um assunto privado relativamente ao Estado, não o é quanto ao
partido. A neutralidade do Partido, com respeito à religião, seria uma
inconsequência oportunista. Combater a religião, por todos os meios ao alcance
da propaganda e da ciência materialista, é um dever.
Todavia, é preciso
saber conduzir a luta. O essencial é lançar as forças do proletariado contra o
capital e fazer desaparecer as raízes sociais que dão origem à religião e a
mantêm. Actuar de outra maneira, seria esquecer as leis do materialismo
dialéctico e cair no esquerdismo revolucionário.
Aclarado isto, a
luta ideológica do partido contra a religião será sempre um objectivo
inevitável[21].
Esta posição leva-nos a concluir que, no leninismo, o combate à religião faz
parte do processo revolucionário. E
se ao Estado compete garantir a liberdade religiosa do cidadão, ao Partido
compete combate-la em nome da Revolução. E como o Partido está acima do Estado,
não será difícil compreender que tal combate possa gerar, sob a aparência de
liberdade, novas e graves situações de opressão.
11
- A Revolução moçambicana, inspirada e
guiada pelo Marxismo-Leninismo, é de sua natureza, ateia e ateizante.
No âmbito ideológico,
o Partido prosseguirá a luta contra todas as manifestações negativas das
sociedades tradicional-feudal e colonial-capitalista e pela criação de uma
nova mentalidade científica e portanto materialista. Assim, o Partido
conduzirá o combate contra todas as manifestações do idealismo
tradicional-feudal, em especial o obscurantismo, a superstição e as tradições
reaccionárias[22].
A 2ª Conferência do
Departamento do Trabalho Ideológico, realizada na Beira em Junho deste ano,
virá dizer que "a religião é um obstáculo ao avanço do processo
revolucionário", que "a actividade das organizações religiosas é
nociva", que a "propaganda" das Igrejas é "idealista e
metafísica"[23].
Na sua "Resolução
sobre questões, religiosas" afirmará que "nas actuais circunstâncias,
o combate contra a alienação religiosa apresenta-se como condição necessária
para o triunfo das novas ideias e como exigência para o desenvolvimento eficaz
do trabalho político e ideológico no seio das massas”[24].
Não se estranhará,
por isso, uma nova fase de luta contra as actividades das organizações
religiosas, e contra a influência das Igrejas. Mas será necessário prevenir
alguns desvios para não continuarmos, a confundir e a praticar um esquerdismo
lamentável.
Em primeiro lugar,
não é licito confundir alienação religiosa com religião como tal. A alienação
denunciada pelos clássicos da crítica à religião é uma situação de extravio e
como tal deverá desaparecer. A religião como tal é um fenómeno complexo e nada
de sério autoriza a identificá-la, pura e simplesmente, com a alienação
religiosa. Não ter isto presente, será correr o risco de criarmos “no meio das
massas” não "ideias novas" mas ideias confusas e opressivas.
Em segundo lugar,
não é lícito atribuir, sem mais, à actividade religiosa e à influência das
Igrejas, os fracassos que, possivelmente, a Revolução experimente num dado
momento. Identificar o inimigo através duma séria e leal auto-critica será mais
positivo que atacar a religião como única culpada. Alijar a própria culpa é
criar inimigos imaginários, iludir as situações e fomentar o oportunismo.
Em terceiro lugar,
não é lícito classificar de "nova táctica" aquela actividade que é
própria da Igreja como organismo vivo. O crescimento da Hierarquia e das
comunidades, a renovação da doutrina, a presença dos cristãos nas tarefas, a
responsabilização de elementos das comunidades, a luta pela justiça e direitos
humanos, o testemunho social, não surgem da oportunidade de uma nova táctica,
mas da própria vida da Igreja. Se, num dado momento, não se verificou esta ou
aquela manifestação, é porque a Igreja, como organismo, não sentia ainda essa
dimensão, ou os membros da Igreja não davam o testemunho que deviam; ou as
situações concretas e históricas não o permitiam. Dizer que uma nova actividade
da Igreja equivale a "uma nova táctica para manter a sua influência sobre
as massas" é desconhecer a Igreja, agir sem análise prévia, aceitar o
preconceito como princípio científico.
A "Resolução
sobre questões religiosas" funda o combate à alienação religiosa
na"acção política e ideológica". Enquadrado e planificado pelo
Partido, o combate à alienação religiosa deverá ter em conta uma adaptação das
orientações gerais a cada caso especifico e processar-se, fundamentalmente,
através da educação ideológica dos membros do Partido e da elevação do nível
de consciência das massas populares"[25].
"Análise prévia", "enquadramento e planificação",
"adaptação a cada caso específico", "educação ideológica",
"elevação do nível de consciência", são orientações que nos permitem
esperar a ultrapassagem definitiva da injúria aos crentes e da discriminação
por motivo religioso, bem como um trabalho que contribua eficazmente para a
libertação do Povo, não só da alienação religiosa, mas de toda e qualquer
alienação. Leva-nos a esperar também que no processo revolucionário, a
"educação ideológica" e a "elevação do nível de consciência das
massas populares" não acabem por criar uma nova alienação e um novo
integrismo. Ontem, a alienação religiosa e o integrismo das Igrejas, hoje, a
alienação ideológica e o integrismo do Partido. A Idade Média engendrou um
sistema de inter-relações humanas dentro de cujas fronteiras a confissão da fé
cristã era obrigatória. Os não cristãos eram tolerados como cidadãos de segunda
ou terceira classe. Hoje pode repetir-se de igual modo o fanatismo medieval.
Como afirma Lombardo-Radice, hoje existe o grave perigo de exigir previamente a
fé marxista - ou seja, a profissão do materialismo dialéctico ou visão do mundo
que inclui o ateísmo - para alguém ser cidadão de primeira classe, num país
revolucionário, ou para ser revolucionário de primeira num processo de
libertação humana[26].
12
- Mas, uma coisa é o ateísmo, o combate à
alienação religiosa, outra a negação das liberdades fundamentais.
A liberdade é um
todo indivisível. Negar a liberdade religiosa é negar a liberdade. E sem
liberdade a emancipação do Homem é ilusória, a luta de libertação uma táctica e
a Revolução uma nova fonte de opressões. A liberdade, e não a força, é o
dinamismo do progresso pessoal e do progresso social. Verdade e liberdade,
justiça e Amor, são pedras fundamentais sobre as quais se edifica a civilização
humana[27].
Dentro da Revolução,
a liberdade do Povo situa-se como um fim político ao lado da justiça. Não
haverá justiça social sem liberdade, nem liberdade sem justiça social.
A liberdade é também
o método político pelo qual o Povo realiza o seu bem mais alto, ou seja, a sua
própria unidade e solidariedade[28].
Desprezar este método é condenar ao fracasso a edificação duma sociedade
fundada na unidade e na solidariedade de pessoas e bens.
Por
isso, a sociedade nova é chamada à prática dos métodos da liberdade, se quiser de
facto constituir-se em comunidade de homens solidários, fraternos e engajados no progresso comum e na luta pela libertação real dos oprimidos.
Quando
a liberdade do Povo é limitada injustamente, a ordem social inverte-se. Porque
toda a ordem social para ser humana, deverá ser uma ordem de liberdade. O
contrário pertence à história dos regimes fascistas e totalitários. A ordem nascida
destes regimes é necessariamente uma ordem de violência, estabelecida
e mantida pelo direito da força. O Estado de direito é fatalmente
substituído pelo Estado das forças policiais e militares.
A
liberdade religiosa é uma exigência da verdade e da justiça. É um elemento
integrante da liberdade do Povo. Incarna-se no direito civil e humano; pessoal
e colectivo. Faz parte da civilização humana, o que quer dizer que uma
civilização sem liberdade religiosa, não é humana. Caracteriza, juntamente com as demais liberdades fundamentais, o Estado de direito. A sua ausência, num dado espaço político, social ou cultural, denuncia a
presença de poderes totalitários.
13
- Que significa, na teoria e na prática, a liberdade
religiosa?
Significa,
em primeiro lugar, um direito radicado na dignidade da pessoa humana, reconhecido
e garantido pela ordem jurídica da sociedade, de tal modo que se torne
efectivamente um direito civil.
Significa,
em segundo lugar, a imunidade de coacção. Isto quer dizer que, em matéria
religiosa, ninguém pode ser forçado a agir contra a própria consciência, nem
impedido de proceder, segundo a mesma, em privado ou em público, só ou associado com outros.
A
imunidade
de coacção que compete às pessoas tomadas individualmente, também lhes deve ser
reconhecida quando actuam em conjunto. Com efeito, as comunidades religiosas são exigidas pela natureza social tanto do homem como da própria
religião.
É,
portanto, uma injustiça contra a pessoa humana, contra a ordem da liberdade,
negar ao homem o livre exercício da religião na sociedade, uma vez
salvaguardada a honesta paz pública[29].
Por
conseguinte, são de condenar todas as formas políticas que impeçam a liberdade civil ou religiosa, desviando do bem comum a autoridade, em
benefício de ideologias ou partidos, ou dos próprios governantes[30].
Tanto a liberdade de consciência, como o livre exercício
de religião, fazem parte dos direitos humanos e civis, consignados nas
constituições dos estados modernos. Assim o revela a Declaração Universal dos
Direitos do Homem, assinada pela maioria das nações. Assim o diz a acta final
da Conferência de Helsínquia de 1 de Agosto de 1975, assinada por representantes
de 35 países.
14 - É no seio da sociedade que se exerce o direito à liberdade em matéria religiosa. Por isso, o exercício desse direito está sujeito a
certas normas reguladoras.
Assim, no uso de qualquer liberdade, deve respeitar-se o
princípio moral da
responsabilidade pessoal e social. Cada homem e cada grupo social estão
moralmente obrigados, no exerc1cio dos próprios direitos, a ter em conta os
direitos alheios e os seus próprios deveres para com os outros e o bem comum[31].
Compete, por conseguinte, ao poder civil, assegurar eficazmente, por meio de
leis justas e outros meios convenientes, a tutela da liberdade religiosa de
todos os cidadãos e proporcionar condições favoráveis ao desenvolvimento da
vida religiosa, de modo que os cidadãos possam realmente exercer os seus
direitos e cumprir os seus deveres[32].
Compete, igualmente, ao poder civil proteger a sociedade
contra possíveis abusos que, sob pretexto de liberdade religiosa, se venham a
verificar. Isto, porém, não se poderá fazer de modo arbitrário ou favorecendo
injustamente uma parte, mas segundo as normas jurídicas, conformes à ordem objectiva, postuladas pela tutela eficaz dos
direitos de todos os cidadãos e sua pacífica harmonia.
Em qualquer caso, dever-se-á manter o princípio de
assegurar a liberdade integral na sociedade, segundo o qual, há que reconhecer
ao homem o maior grau possível de liberdade, só restringindo esta, quando e na
medida em que for necessário[33].
15 - O
"cuidado da religião" tem sido, ao longo dos últimos séculos,
problema aberto, dando origem a tensões e conflitos entre a Igreja e os poderes
constituídos.
Na Idade Média, o cuidado imperial da religião era
limitado pelo princípio da liberdade da Igreja, ou seja, do Pontífice Romano e
do povo cristão. Dum modo geral, a liberdade religiosa significava restrição
para os judeus, tolerância para os pagãos, intolerância para os heréticos. O
pressuposto último de tal liberdade era o princípio de que, no sacro-império, a
fé cristã constituía a base da cidadania e do direito.
Depois da Reforma, o cuidado da religião era determinado
pelo princípio territorial, ou pelo princípio de que o poder do Príncipe devia
favorecer a causa da religião e perseguir o erro. Punham-se
então duas questões: que tipo de coacção era, ou não, compatível com a
liberdade de consciência? Que poder
confere ao Príncipe o cuidado da religião para suprimir a expressão pública
duma fé errónea?
É
neste momento que aparece a separação entre liberdade de consciência e livre
exercício de religião.
Ao
mesmo tempo, cresce a convicção de que a liberdade de consciência não tem
sentido se a expressão pública da fé é
interdita.
Estavam
lançadas as bases dos equívocos entre religião e poder político.
Três
concepções de soberania política impediram uma solução justa: a concepção da
nação como família e do príncipe como pai, o que facilmente conduzia, dum lado,
ao absolutismo paternalista, do outro lado, à submissão infantil; a concepção
do príncipe como membro qualificado da Igreja, o que levava a considerar o
poder civil como um poder de algum modo eclesiástico, e a unidade religiosa
como essencial à unidade politica; a
concepção da soberania como um todo individual e do mesmo modo o poder, o que obrigava a
concluir que a prerrogativa religiosa do príncipe era um atributo essencial à sua soberania
política e o cuidado da religião um direito e um dever.
Estas
concepções, apesar de esbatidas pelo tempo e pelo desenvolvimento da
consciência individual e social, continuam, em certos espaços políticos, embora
com outros nomes.
Dum
modo geral, continua a haver "príncipes" que se consideram pais da
nação, transformando, deste modo, os cidadãos em "filhos obedientes"
e determinando o que lhes convém, tanto no aspecto político, económico e
social, como no religioso. Continua a haver chefes que, por motivos
de consciência, defendem a religião, não como um bem em si mesmo, mas como um
factor importante na unidade nacional. Continua a haver políticos que,
praticando a indivisibilidade do poder, consideram o cuidado da religião como
um direito e um dever, mesmo que por hipótese se declarem membros dum estado laico.
16 - O racionalismo instaura um dogma fundamental: a
autonomia absoluta da razão humana. A
transcrição política deste dogma será a teoria da omnipotência e da omnicompetência do Estado.
Em conclusão: não haverá distinção entre sociedade e Estado, e a totalidade da vida social será subordinada ao poder do Estado. Este conceberá a sua prerrogativa religiosa, nos termos da sua própria omnipotência, e como personificação política da razão individual autónoma, tornar-se-á supremo árbitro da verdade religiosa e do regime eclesiástico. Fundado sobre o principio racionalista, dirá que todas as religiões são igualmente verdadeiras, como expressões iguais da consciência individual liberta da lei. Partindo do princípio da indivisibilidade da soberania, não permitirá a nenhuma outra autoridade pública existir na sociedade.
Assim, a Igreja será incorporada na ordem jurídica do
Estado, deixando de ter existência pública. A religião passará a ser uma questão puramente privada[34].
É curioso verificar como da afirmação soberana da razão humana nasce o Estado soberanamente
omnipotente.
Apesar do avanço da democracia e da consciência da
dignidade do homem, esta posição ainda não passou. Encontramo-la incarnadas em
tipos diversos de estados e regimes. Todos, porém, com a mesma tónica: o
absolutismo do poder. Deste modo, a liberdade religiosa, como aliás outras
liberdades, serão concessões e jamais reconhecimento de direitos inalienáveis e
anteriores ao poder
político. Será o Estado a definir o estatuto da liberdade religiosa, bem como a regulá-lo ou a suprimi-lo, conforme as conveniências políticas. A
negação duma liberdade não será uma injustiça, mas uma exigência do bem do Estado.
17 - Com o advento das ideologias totalitárias, os direitos fundamentais do
Homem entraram em perigo.
Lenine dirá que "a ideologia não é mistificação ou
impotência, mas um conjunto de ideias-forças, susceptíveis, não só de
justificar um ponto de vista, mas também de animar um movimento”[35].
Uma ideologia ê totalitária se engloba e define a
existência e a vocação do homem todo e da sociedade tode. Neste sentido,
qualquer liberdade terá de possuir um conteúdo conforme à ideologia dominante. A liberdade será vista a partir
duma perspectiva ideológica; mais ainda se a religião se apresenta como
ideologia. Teremos então o perigo do confronto. A abolição de uma será condição
para o triunfo da outra.
O combate à ideologia religiosa poderá fazer nascer a religião da ideologia. Isto
acontecerá todas as vezes que a "ideologia se converter em fé".
A ideologia, quando cede à tentação de se converter em religião, substitui a análise pelo credo, os
princípios pela mensagem, o projecto pela vocação, a impersonalidede do método
pelo culto da personalidade[36]
.
Ideologias
totalitárias, ideologias convertidas em religião, terão necessariamente
que negar à religião um espaço próprio na sociedade.
O homem terá de ser mutilado, apesar dos esforços para o criarem totalmente
novo.
18 - A história da liberdade religiosa
mostra que a relação entre poder civil e poder religioso está marcada por
avanços e retrocessos, vitórias e fracassos, tensões e conflitos.
A Igreja,
manifestando um sério interesse pela liberdade religiosa, espera que o Estado a
respeite, como é seu dever respeitar e promover as demais liberdades dos
cidadãos.
O diálogo da Igreja
com o mundo moderno implica, neste ponto, posições sem ambiguidade. Em primeiro
lugar a autonomia própria das instituições religiosas. "No domínio
próprio de cada uma, comunidade política e Igreja são autónomas e
independentes, servindo embora, a títulos diversos, a vocação pessoal e social
dos mesmos homens"[37].
Em segundo lugar, o respeito pela fé de cada crente, o que significa, em definitivo, o respeito pela dignidade do homem. É grave e injusto defender por um lado a dignidade do Homem, e por outro, atacá-lo e ofendê-lo nas suas convicções mais profundas.
Em terceiro lugar, a
aplicação do principio de igualdade de direitos e deveres. A Igreja renuncia,
de bom grado, aos privilégios que porventura passam fazer parte dos processos
históricos e culturais[38], mas
não pode renunciar ao bem da liberdade que lhe é própria. Ao fazê-lo, estaria
contra o Homem, contra a justa organização da sociedade. Por isso, a Igreja, ao
denunciar as restrições da liberdade religiosa, as injúrias aos crentes, a
supressão de certas actividades próprias da religião, tem em vista, primariamente,
a defesa dos direitos do homem. Se num dado espaço existe opressão, ela será
contra o Homem e, em última análise, contra o Povo.
Em quarto lugar, o
diálogo como instrumento de procura em comum, como expressão do compromisso com
o Homem cidadão e crente, como serviço à construção duma sociedade fundada
sobre a justiça, a liberdade e a solidariedade, como arma contra a
discriminação, a intolerância, a acusação e a morte social ou política.
Por sua vez, a
liberdade religiosa implica, na Igreja, em cada crente, um sério apelo a uma fé
mais crítica, mais pessoal e mais livre; implica uma rejeição total de
atavismos que, porventura, possam transformar a religião em ritos ou práticas
sem linguagem nem referências sociais, ou em superstições alienantes; implica
o respeito pelo poder legitimamente constituído, pelas leis justas, pela
honesta paz; implica o compromisso com a terra, com os homens e com a História,
pois a transformação do mundo é um imperativo que a todos abrange.
19 - O ateísmo, bem
como o combate à alienação religiosa,
mais do que levantar discussões, desconfianças e medo, deverá suscitar nos
crentes e nos responsáveis da sociedade em construção, uma constante e leal
interrogação que poderíamos formular deste modo:
- Estamos a caminho
da libertação da alienação religiosa, em proveito da fé em Jesus Cristo morto e
ressuscitado, e do compromisso histórico que, na prática, essa mesma fé
implica?
- Estamos a caminho
duma sociedade para todos, sem exploração nem discriminação, sem autoritarismo
nem infantilismo, sem ideologias nem mecanismos de perversão do homem
individual e social?
- Não estaremos a
caminho duma sociedade ameaçada de ídolos e de situações degradantes, à medida
que aumenta a negação do Deus vivo?
Como crentes,
entendemos que a função crítica do ateísmo e do combate à alienação religiosa
poderá, prestar, tanto à religião como à Igreja, um serviço positivo.
O tempo dos
anátemas, das cruzadas, das polémicas, passou, não só para a religião e as
igrejas, como para os poderes públicos. O tempo novo exige uma atitude nova de
ambas as partes.
"O remédio para o ateísmo há-de vir, antes de mais,
da conveniente exposição da doutrina e da vida íntegra da Igreja e dos seus
membros. Pois a Igreja deve tornar presente e como que visível, o autêntico
rosto de Deus, renovando-se e purificando-se continuamente sob a acção do
Espírito. Isto há-de alcançar-se, primeiro que tudo, com o testemunho duma fé
viva e adulta"[39].
Renovação, doutrina, testemunho, são os pólos de reflexão
que o Concílio propõe como resposta à interpelação do ateísmo.
Primeiro, a doutrina. O aparecimento do teísmo na
teologia católica é um fenómeno cujas últimas raízes se prendem com variados
interesses políticos.
De facto, não é difícil encontrar ao longo dos tempos, o
Deus da fé cristã convertido em ideologia, em suporte dum dado interesse
religioso, político e social. Vemos assim o nome de Deus legitimar políticas
autoritárias, organizações sociais exploradoras, guerras de religião ou de
expansão da civilização cristã.
Abandonar definitivamente a doutrina que nos dá a imagem
de um deus racionalizado e utilizado, conforme os interesses; abandonar a
ideologia religiosa para fazer aparecer o Deus da fé, transcendente e gratuito,
é condição fundamental para interiorizar a crítica do ateísmo e ultrapassar o
reparo da ideologia que o mundo atira ao rosto da Igreja.
Segundo, a vida. O
Concílio aponta claramente três aspectos da vida cristã: o religioso, o moral e
o social. A experiencia histórica diz-nos como é fácil reduzir o social ao
moral, e este ao religioso, que por sua vez, se degrada ao ponto de alienar. O
moralismo e o espiritualismo não são esporádicos na vida dos cristãos. Quando
estes desvios se instalam, a prática religiosa corrompe-se, o compromisso
social não existe, a justiça dá lugar á injustiça. Já no tempo dos profetas
existiam estes perigos. Isaías, a propósito da prática religiosa, dizia aos
seus contemporâneos: "não jejueis como tendes feito até hoje se quereis
que a vossa voz seja ouvida. Acaso o jejum que agrada ao Deus vivo consiste em
o homem se mortificar por um dia, curvar a cabeça como um junco, deitar-se
sobre saco de cinza? Romper com as ligaduras da iniquidade, desatar os nós do
jugo, deixar ir livres os oprimidos, quebrar toda a espécie de jugo, repartir o
pão com o esfomeado, dar abrigo aos infelizes, vestir o nu, não desprezar o
irmão, este é o jejum que fará surgir a tua luz como aurora, e caminhos de justiça
à tua frente”[40].
Marx tinha razão ao
acusar a religião de ópio, quando via, dum lado, as situações humilhantes dos
trabalhadores, o progresso das máquinas e do capital, e, de outro lado, o
absentismo social das igrejas e a prática burguesa dos cristãos. Aceitar a
crítica do ateísmo é buscar aqueles modos de testemunho que melhor reduzem a
vida que a fé em Jesus Cristo exige em cada crente.
Paulo VI, recolhendo
as experiências dos cristãos dispersos, particularmente pelo mundo
subdesenvolvido e oprimido de muitas e variadas maneiras, diz-nos que o
testemunho cristão deverá obedecer, hoje, a três exigências fundamentais:
presença, participação e solidariedade[41].
Estar presente na história, na vida de cada homem, participar nas diversas
tarefas, tornar-se solidário com o homem todo e com todos os homens, com as
lutas pela justiça e pela paz, com as vitórias sobre a humilhação e a morte,
com as alegrias e as tristezas, parece ser também o convite que o mundo, em
transformação, faz aos crentes.
Terceiro, a
renovação. Isto supõe uma sincera aceitação da culpabilidade que possa ter
havido na génese e avanço do ateísmo. O Concí1io diz-nos que os crentes podem
ter tido uma parte, não pequena, na origem do ateísmo[42].
Aceitar a culpa é já caminhar na conversão; é, além disso, reconhecer a justiça
que possa haver na luta que o ateísmo trava contra a religião. O ateísmo não
pode compreender-se senão a partir da imagem da religião à qual se refere e que
considera como inaceitável, ou, ao menos, como estéril e carente de
significados. Sendo assim, o ateísmo remete-nos à religião, à Igreja, tal como
se apresentam nas suas realizações históricas, psicológicas, sociológicas, nas
suas instituições, testemunho e repercussões políticas,
sociais e económicas, na sua atitude global frente à cultura e à civilização.
A crítica do ateísmo pode suscitar no crente um instinto
de defesa, ponto de partida, muitas vezes duma apologética agressiva, ou duma
reacção magoada. Todavia, uma análise mais objectiva pode levar tanto as
instituições religiosas como cada um dos crentes a conclusões que permitam o
crescimento da fé, da esperança, do amor fraterno, que purifiquem e tornem a
Igreja mais presente e aceite nas sociedades que lutam contra a exploração do
homem pelo homem. E na medida em que o ateísmo é expressão de uma situação de
humanidade e realiza instâncias típicas da nossa época, a atitude que a igreja
e os crentes tomarem definirá as relações entre cristianismo e mundo moderno.
Apresentando-se o ateísmo como estilo de vida e de
civilização, a fé de cada crente, a fé da Igreja, não poderá ser mais a
fidelidade a um património cultural; terá de ser uma opção pessoal, comunitária
e comprometida.
Em conclusão, o ateísmo não é para o crente apenas um
fenómeno que urge estudar, mas uma interpelação
profunda e positiva.
20 - O ateísmo interpela também as sociedades que desconhecem, negam ou
atacam a Deus.
Construir uma sociedade sem Deus, será construir uma
sociedade à medida do homem, ou uma sociedade contra o homem. São, na verdade,
sintomáticas, tanto as aspirações como as opressões do mundo actual.
Primeiramente que tudo as aspirações à felicidade. O
desejo de "ser” ultrapassa, nas consciências mais vivas, o desejo de “
ter mais”. O homem quer ser feliz, luta pela felicidade real, histórica,
pessoal e comunitária. Uma felicidade que supõe a liberdade e a emancipação.
Que exclui os esquemas de qualquer modo repressivos e toma a sério a
consciência privada, dentro do maior sentido de colectividade. Uma felicidade
que rejeita a redução arbitrária das liberdades, o absolutismo do Estado e das
ideologias, a privação da liberdade política por razão de discordância. Uma
felicidade que busca a solidariedade social, ao mesmo tempo que luta contra o
burocratismo das organizações sociais, contra os fenómenos de manipulação e
irracionalidade dos sistemas.
Com a aspiração à felicidade vem a aspiração a uma
sociedade nova, de homens solidários, iguais na dignidade, nos direitos e
deveres, capazes de participar directamente no processo de construção do tecido
social.
Esta aspiração denuncia, em primeiro lugar, a
desconfiança das palavras, dos
mitos, das ideologias, o domínio da violência pela violência, a mentalidade
produtivista, a liberdade vazia de sentido; a luta pelo poder, o dogmatismo, o
culto da personalidade e dos partidos.
Em segundo lugar,
esta aspiração revela que a democracia representa um progresso real e favorece
a promoção humana na medida em que nela todos participam como homens livres e
solidários.
Uma terceira
aspiração deriva das hipóteses científicas mais recentes. Todas elas são
unânimes em afirmar que a única esperança do futuro - tão incerto e discutido
- não consiste no aperfeiçoamento indefinido da técnica, na conquista orgulhosa
do cosmos, no incremento politizado da produção, no simples nivelamento
económico, na eliminação mecânica das classes, mas unicamente no aparecimento e
maturação dum homem mais moral e de uma sociedade mais moral. Por seu lado,
Helsínquia afirmou que a segurança e a cooperação não podem realizar-se sem o
fundamento da moral. Está em causa, por consequência, a qualidade da vida, a
qualidade da sociedade[43].
Está em causa o homem e a sua relação com os demais, com a sociedade, com a
natureza e com as últimas questões. Como afirma Garaudy, na questão da
qualidade de vida podemos distinguir três períodos fundamentais: aquele em que
o poder da natureza ultrapassava o poder do homem; aquele onde o poder do homem
ultrapassou o da natureza; aquele em que o poder do homem ultrapassa o poder
do homem. Estamos numa civilização que não sabe dominar os meios, nem organizar
os verdadeiros fins. Uma tal civilização - conclui Garaudy - está equipada para
o suicídio[44].
Aqui se radicam as novas opressões.
Para Luís Althusser,
"a história não passa dum imenso processo, sem sujeito, reduzida a funções
económicas, políticas e ideológicas". "A questão de saber como é que
o homem faz a história desaparece completamente[45]. Em
resumo, o homem não conta. O humanismo absoluto dá origem ao anti-humanismo
absoluto”.
Por sua vez, a
sociedade da abundância, com a sua ideologia tecnocrática, a sociedade do
homem que domina a natureza e os poderes esclavagistas das sociedades políticas,
económicas e religiosas, pode também gerar o anti-humanismo. O estruturalismo,
o neo-freudismo, o neo-positivismo, o produtivismo reduzem a humanidade a uma
doentia máquina de desejos, passando, deste modo, a certidão de óbito ao homem
histórico, ao homem livre, solidário e feliz[46].
Teria Nietzche dado conta que ao proclamar a "morte de Deus", estaria
proclamando igualmente a "morte do Homem"? O Concílio, traduzindo uma
experiência histórica secular, diz-nos que faltando efectivamente o
"fundamento último", a dignidade do homem pode ser gravissimamente
lesada, como acontece nos nossos dias; as questões últimas poderão ficar sem
resposta, criando-se, deste modo, um mundo cada vez mais propenso ao desespero
e ao suicídio[47].
O ateísmo faz, por conseguinte, sérias
perguntas, tanto às Igrejas como às sociedades que o difundem ou praticam.
Sabendo que a revolução pretende a libertação do homem todo é-nos lícito pensar
se a "morte -de Deus" faz nascer o "homem livre", ou o
homem oprimido por novos deuses.
21 - A revolução moçambicana inspira-se e
rege-se pelos princípios universais do marxismo-leninismo, tendo embora em
conta as condições concretas em que se desenvolve a luta de classes no País[48].
A revolução é, portanto, marxista-leninista. E será nela que os cristãos terão
de viver e testemunhar a fé. Será, por conseguinte, oportuno perguntar: que
atitude devem viver os cristãos frente à Revolução?
Comecemos por dizer que a confrontação não será o melhor
caminho. As condenações doutrinais não poderão servir inteiramente de norma,
atendendo aos sinais dos tempos, ao próprio Concílio Vaticano II, ao imperativo
de presença, participação e solidariedade que o testemunho cristão, hoje,
implica[49].
Por outro lado, invocar a doutrina pronunciada em tempos
e circunstâncias passadas é desconhecer o dinamismo do Espírito na Igreja e no
Mundo; é ignorar os novos problemas, as novas descobertas e atitudes que a
consciência da humanidade, e também a Igreja, foram assumindo ao longo dos últimos
quarenta anos[50].
Impõe-se, por conseguinte, uma nova atitude. Os cristãos
de hoje devem saber olhar a situação de hoje com olhos novos e com espírito
criador. Do mesmo modo os marxistas. Uns e outros, cristalizados em fórmulas e
atitudes passadas, correrão o perigo de se tornarem dogmáticos, impedindo o
crescimento da verdade, da justiça e da liberdade.
Encontrar, corajosa e lealmente, uma atitude de diálogo,
será responder às exigências dos tempos novos.
Isto implica, antes de mais, e como prévia condição, o
abandono, de parte a parte, de tudo aquilo que bloqueia, desmobiliza e torna
estéril o diálogo.
Em primeiro lugar, o integrismo. Apesar do avanço do
pluralismo na cultura moderna, o integrismo subsiste, e, nalguns casos, tende a endurecer-se.
O integrismo "cristão" entende que todos os
valores deverão ser pensados como essencialmente relativos aos valores
religiosos; neste sentido, todo o encontro na esfera profana deverá ter em
conta a convergência religiosa.
Por sua vez, o integrismo marxista considera todos os
valores como essencialmente relativos à esfera sócio-económica,
mais precisamente, à acção
revolucionária, conduzida pela classe proletária. Assim, nenhum encontro será possível, se não se adopta a praxis como critério de verdade e
de valor.
No centro da visão integrista subsiste uma interpretação
do indivíduo como sendo totalmente relativo, não tendo, por isso, valor em si
mesmo e por si mesmo. O integrismo religioso fará depender a consistência do
homem da sua relação com Deus. O integrismo marxista fá-lo-á depender da sua relação
com a natureza, a sociedade, a classe, o partido. O diálogo será possível
quando uns e outros ultrapassarem a posição integrista para assumir uma posição
humanista. Uma atitude humanista permitirá o diálogo, porque o humanismo, tanto
para os cristãos como para os marxistas, constitui um ponto essencial de
referência[51].
Em segundo lugar, os preconceitos.
Marx era contra os preconceitos porque
na medida em que estes funcionam as análises não serão científicas. Preconceito
e ciência, excluem-se.
Na linha do diálogo, são os preconceitos a força que mais
desmobiliza e mais afasta uns dos outros. É que o diálogo não é uma simples
relação de forças. Quando autêntico, implica uma passagem da desconfiança à confiança; exige, por isso, uma atitude humana. Em
princípio, o diálogo é possível entre todos os homens; mas a eficácia do
diálogo só é possível num clima onde a confiança e a análise tenham vencido a
desconfiança e o preconceito.
Em terceiro lugar, a tentação de politizar o diálogo. Isto acontece quando uns e outros tendem a
avaliar o diálogo em termos exclusivamente pragmáticos e imediatos. O momento
do diálogo será, por conseguinte, um momento do progresso do poder que cada
qual julga exercer. Neste sentido, o diálogo corre o perigo de ser estéril e
contraproducente. Não faz avançar o campo das novas relações, e agrava, por
outro lado, a desconfiança e o confronto[52].
Em quarto lugar os mal-entendidos.
Uma primeira fonte de mal-entendidos é a identificação da religião com as suas múltiplas
falsificações e desvios. É de
lamentar que a crítica à religião, tanto a nível filosófico como a nível
popular, não estabeleça uma clara distinção entre a fé religiosa e autêntica e
as crenças supersticiosas, os desvios do sentimento religioso, os abusos da
religião e o obscurantismo. Distinguir para entender, é fundamental. Sem esta
distinção o diálogo cairá facilmente em reparos e em discussões apologéticas.
Uma segunda fonte de mal-entendidos reside na ambiguidade
dos conceitos de liberdade, de libertação e de seu contrário, a alienação.
Esta ambiguidade radica-se, acima de tudo, no esquecimento da estrutura multi-dimensional
da existência humana como capacidade de verdade e de liberdade.
Uma terceira fonte, e talvez a mais importante, será a
própria ambiguidade da expressão "crença em Deus", a qual terá,
forçosamente, um sentido distinto, conforme é vista por um crente ou por um ateu.
A ultrapassagem dos mal-entendidos, como necessária plataforma para um diálogo
fecundo, supõe, de ambas as partes, uma crítica correcta, científica, e impõe
aos cristãos o testemunho duma fé justificada, isto é, duma fé que responda às
exigências legítimas da humanidade, cada mais avessa às múltiplas formas de
mistificação intelectual, social e moral[53].
Em quinto lugar, o espírito de acusação mútua.
Uma coisa é a interpelação que os marxistas fazem aos
cristãos, ou mesmo a denúncia de erros e abusos que os membros da Igreja possam
cometer, outra coisa é acusar por princípio.
A própria Igreja reconhece que "muito aproveitou e
aproveita da crítica daqueles que a hostilizam e perseguem"[54].
Contudo, o espírito de acusação, pela carga de injustiça e de ressentimento que
o pode animar, longe de concorrer para o diálogo, torna-o mais difícil e
distante.
22 - O diálogo
entre cristãos e marxistas é já um facto.
Basta recordar os encontros de João XXIII e Paulo VI com
dirigentes políticos da União Soviética e outros estados marxistas; os contactos
a nível de intelectuais, os círculos de reflexão e de troca de experiências
aparecidos um pouco por toda a parte. É característico o encontro de marxistas
e cristãos, promovido pelo Conselho Mundial das Igrejas em 1968, sendo notória
a presença de representantes do chamado Terceiro Mundo.
O diálogo como um facto vem de longe. O nazismo, o
fascismo, as lutas económicas e sociais, os contactos quotidianos, a
convergência de esforços contra a exploração, obrigaram a dar os primeiros
passos.
O crescimento da consciência, do espírito crítico, do
sentido da liberdade, da participação e da solidariedade, fazem com que o
diálogo se torne uma exigência do tempo novo, tanto a nível dos cidadãos como a nível dos partidos
detentores do poder.
O diálogo entre
marxistas e cristãos aparece-nos, assim, como sinal dos tempos, um dos muitos a
que, tanto crentes como não-crentes, devem estar atentos[55]. O diálogo como sinal,
revela, particularmente, o espírito crítico, a sensibilidade personalista e
comunitária, o sentido de historicidade, o movimento da secularização, valores
estes bem presentes na consciência contemporânea e na aspiração ao aparecimento
de uma nova sociedade[56].
O espírito crítico
faz com que o homem de hoje recuse verdades à priori, recuse sobretudo uma
"fé" como herança, como imposição, ou como condição para viver,
recuse os dogmatismos ideológicos, políticos, sociais e religiosos. Consciente
da multiplicidade de culturas, ideologias e projectos económicos e políticos,
o homem de hoje não aceita abdicar da sua capacidade de pensar e de escolher. A
abertura aos outros, que se exprime no diálogo, é uma expressão positiva do
espírito crítico e um factor decisivo na construção de sociedades solidárias.
A sensibilidade personalista faz
descobrir, reconhecer e considerar os direitos invioláveis de cada homem e, no
caso concreto, o direito de pensar e de escolher. A reciprocidade própria do
diálogo brota desta sensibilidade. Ignorá-la seria desconhecer a
subjectividade, pondo assim cada homem no perigo de ser tratado como objecto,
tornando impossível, deste modo, qualquer diálogo ou encontro.
A sensibilidade comunitária faz lembrar a dimensão social do homem, a sua ralação essencial com os outros e com a sociedade. Subestimá-la, seria reduzir o diálogo ao individualismo, negando, por conseguinte, o próprio diálogo.
O sentido da
historicidade da verdade defende o homem da tentação de julgar que já possui
toda a verdade, tornando-se, deste modo, dogmático e intolerante. Com efeito,
se um dos interlocutores possui toda a verdade, o outro possuirá o erro. Neste
sentido, poderá haver monólogo, a prédica, a censura, mas não o diálogo. O
sentido da historicidade diz-nos que a verdade não se encontra, em concreto, em
estado puro.
A atitude de abertura e
de procura em comum, própria do diálogo, enriquece a verdade, liberta o homem
e as situações concretas.
O movimento de
secularização, ao mesmo tempo que afirma a autonomia dos valores políticos,
económicos, sociais e culturais relativamente à esfera religiosa, torna
possível que os homens de diferentes condições religiosas possam efectivamente
encontrar-se e dialogar[57].
Também o diálogo a nível das tarefas, iniciativas e actuações históricas, é sinal do tempo que vivemos. O carácter cada vez mais vasto e angustiante dos problemas postos à humanidade de hoje, a unificação do mundo, a consciência pluralista, tornam criminosa a discriminação, a rejeição, o não-engajamento por motivo de religião. Não se compreende que, num tempo de chamada à responsabilidade universal, porque universal é o problema que afecta o Homem, o poder constituído, em certos espaços do mundo, dificulte, rejeite ou limite a participação dos cristãos nos diversos níveis da vida política, só porque são cristãos. Esta posição além de anacrónica, é altamente prejudicial à unidade, à cooperação e amizade, valores próprios da nova sociedade. Cristãos e marxistas deveriam ultrapassar a contradição que o diminui e enfraquece e encontrar o melhor caminho para uns e outros se situarem correctamente na luta pela libertação do Homem.
Também o diálogo a nível das tarefas, iniciativas e actuações históricas, é sinal do tempo que vivemos. O carácter cada vez mais vasto e angustiante dos problemas postos à humanidade de hoje, a unificação do mundo, a consciência pluralista, tornam criminosa a discriminação, a rejeição, o não-engajamento por motivo de religião. Não se compreende que, num tempo de chamada à responsabilidade universal, porque universal é o problema que afecta o Homem, o poder constituído, em certos espaços do mundo, dificulte, rejeite ou limite a participação dos cristãos nos diversos níveis da vida política, só porque são cristãos. Esta posição além de anacrónica, é altamente prejudicial à unidade, à cooperação e amizade, valores próprios da nova sociedade. Cristãos e marxistas deveriam ultrapassar a contradição que o diminui e enfraquece e encontrar o melhor caminho para uns e outros se situarem correctamente na luta pela libertação do Homem.
Antagónica deveria ser a
contradição exploradores-explorados e não cristãos-marxistas. Cristianismo e
marxismo deveriam assumir as exigências de nosso tempo, não como táctica, mas
em virtude dum crescimento e duma ultrapassagem de posições «sagradas».
23 - Será conveniente lembrar que o diálogo, inscrito
embora "na consciência do homem contemporâneo, não se impõe de modo
nenhum, como se fora um movimento fatal. O diálogo, para não ser falseado ou
reduzido a uma táctica, necessita da lucidez, coragem e liberdade[58].
Lucidez para distinguir, claramente,
o diálogo doutrinal do diálogo operativo. Uma coisa é um encontro para discutir
a doutrina, outra é o encontro para estudar as melhores formas de participação
e engajamento.
É evidente que o segundo não
oferece dificuldades de maior. Os cristãos sentem como exigência da própria fé
a prática do engajamento nas diversas tarefas da reconstrução nacional. E
muitos são os cristãos que não duvidam engajar-se a nível de estruturas
sempre que o serviço do Povo o exige. Este facto prova, por si mesmo, o
carácter revolucionário da fé. A mensagem cristã não afasta os homens das
tarefas para a construção do mundo, antes os obriga ainda mais[59].
O diálogo doutrinal
oferece, com certeza, não pequenas dificuldades. Girardi enuncia três perigos a que
chama "pragmatismo", "ideologismo" e
"comparativismo"[60].
Por pragmatismo
entende a subordinação do diálogo às exigências imediatas da acção,
sacrificando assim a autonomia da cultura no seu valor e nos seus métodos. Um
tal pragmatismo converte o diálogo em instrumento da política, do poder. Uma
preocupação pragmática acentuada diminui a liberdade e contribui para a
extinção da verdade.
O ideologismo está
presente quando, na discussão dos problemas, o primado pertence à ideologia e
não à análise científica. Uma tal discussão
leva necessariamente a conclusões onde aparece reforçada a posição ideológica e
não a análise científica.
Este perigo dificulta radicalmente o diálogo entre
cristãos e marxistas. Porque, se é fácil
encontrarem-se na análise científica, não o é no que toca a posições ideológicas. A verdade do diálogo exige que o
marxista seja integralmente marxista e o cristão integralmente cristão.
Engajado na política, o cristão não pode, sem se contradizer a si mesmo, aderir
a sistemas ideológicos ou políticos que se oponham radicalmente, ou então nos
pontos essenciais, à sua fé e à sua
concepção do homem[61].
Mas o ser integral não é o mesmo
que ser integrista e praticar um monolitismo que torne impossível qualquer
aproximação.
O diálogo implica uma confrontação de
posições em ordem a uma compreensão mútua, mais profunda e mais rica. Será,
portanto, a descoberta e a criação o objectivo da confrontação e não
propriamente a comparação de posições adquiridas. Quando o diálogo não ultrapassa este primeiro momento o comparativismo surge como
um factor desmobilizador, e com ele o dogmatismo e a esterilidade.
24 - Na situação concreta, própria de Moçambique, há caminhos
que parecem viáveis, e até oportunos e necessários.
A revolução não se inspira apenas no marxismo-leninismo
mas nas condições concretas em que se desenvolve a luta de classes no país e na
experiencia revolucionária do Povo moçambicano[62].
Também os caminhos do diálogo terão de partir do marxismo
e do cristianismo, e das condições concretas do Povo em luta pela construção
duma nova sociedade.
Um primeiro caminho seria tornar cada vez mais clara a
opção pelos oprimidos. Poderemos dizer que esta opção está feita, tanto pelos
marxistas como pelos crentes, se de facto uns e outros assumiram a libertação
integral do homem como dever permanente e tarefa inadiável. Certamente que um
breve exame sobre as situações criadas pele colonialismo nos obriga a descobrir
um Povo carregado de opressões, que por sua vez geram outras, mesmo que o tempo
seja diferente. Apesar da Independência e do esforço desenvolvido ao longo
destes anos de Revolução, o Povo continua a sofrer de graves e desumanas
opressões. Fazer a escolha pelos oprimidos é fazer escolha pelo Povo contra a
exploração que o oprime. É reconhecer a mão de Deus nos acontecimentos que
periodicamente «depõem dos tronos os poderosos e elevam os humildes, que
expulsam os ricos de mãos vazias e saciam de bens os famintos» (Luc.1,52). Num
diálogo justo e correcto, esta escolha poderá tornar-se mais clara e mais
aceite, evitando, por um lado, preconceitos e acusações inúteis, e provocando,
por outro, atitudes e comportamentos verdadeiramente libertadores.
25 - Um segundo caminho, poderia inscrever-se no reconhecimento mútuo dos
valores que animam tanto a revolução como a religião.
Negar à revolução qualquer valor
é continuar a tese do «satanismo». Segundo os conservadores da era da
Restauração, a revolução é, ao mesmo tempo, satânica e providencial. Satânica
enquanto nega a ordem estabelecida por Deus; providencial enquanto abre,
messianicamente, uma nova etapa em nome das lições aprendidas. Desde o ângulo
da responsabilidade do homem, a revolução é sempre um mal, pois que
significa, antes de tudo, uma rebelião contra a ordem divina[63].
É possível que, no tempo novo, ainda haja alguém com esta sensibilidade
doentia. Contudo, o contrário também pode existir. A revolução não seria apenas
um valor, mas um valor absoluto. Falar, por conseguinte, de ambiguidades, de
limites, de fracassos ou desvios da revolução, seria adoptar uma atitude
reaccionária e ofensiva. Excluímos o pessimismo doentio e o optimismo ingénuo,
para afirmar que na revolução há valores e, ao mesmo tempo, ambiguidades.
São valores, o sentido da dignidade do homem, da
participação e da solidariedade; o sentido da igualdade, da socialização, do
poder popular; o sentido do trabalho, da produção, do bem-estar colectivo; o
sentido da unidade, da personalidade cultural, do internacionalismo; o sentido
da justiça social, da colectividade, da cooperação; o sentido da luta contra a
exploração, a humilhação e a corrupção; o sentido da emancipação do homem
moçambicano, da mulher, do Povo.
As ambiguidades nascem da ambiguidade do próprio homem,
das estruturas, dos métodos e objectivos. A pior de todas é transformar, num
dado momento, o homem concreto em instrumento do poder, da ideologia ou da
própria revolução. E sempre que o homem histórico - digo histórico por
oposição ao abstracto - passa de sujeito a objecto, a revolução tornou-se, não
só dramaticamente ambígua, mas desumana e contraditória.
Um dos sintomas claros das ambiguidades da revolução,
será verificar que o processo avança à base da força, mais
que à base da persuasão e do direito. O reconhecimento dos valores não impede o
conhecimento das ambiguidades. Num clima de diálogo, os valores poderão crescer
e as ambiguidades diminuir. Mas o reconhecimento terá que ser mútuo. Só assim o
diálogo exprimirá a reciprocidade que lhe é própria. Negar, por
conseguinte, à religião, qualquer valor, é não
querer o diálogo; é, sobretudo, continuar a tese que considera a religião
unicamente como alienação e suporte da classe burguesa. É verdade
que, no tempo de Marx, a prática e a teoria apresentavam um tipo de religião
cuja funcionalidade quase se esgotava nos apoios à ordem estabelecida. Desse modo, era fácil encontrar
a religião do lado do poder, naquela altura nas mãos da burguesia, e por isso,
do lado do conservantismo e da reacção, contra os movimentos revolucionários[64].
Todavia, continuar alguém a julgar a religião, concretamente o cristianismo,
com os critérios de ontem, desconhecendo as transformações operadas ao longo
dos tempos, os acontecimentos decisivos para a vida das Igrejas, como são o
Concílio Vaticano II, os Sínodos, o movimento ecuménico, a renovação teológica
e pastoral, as atitudes novas tanto dos últimos Papas como dos cristãos,
isolados ou em grupos, a acção do Conselho Mundial das Igrejas, é colocar-se
numa atitude negativa manifestamente reaccionária e, além disso, desonesta.
Pretender, por outro lado, tornar útil a fé cristã,
exigindo dela respostas concretas aos problemas da sociedade, é afirmar aquilo
que pretendemos combater: o clericalismo, a fé como ideologia e como sistema
de pensamento. É certo que a tentação de utilizar a fé para justificar as
ordens estabelecidas é grande. Mas utilizá-la é pervertê-la, é criar posições
religiosas depravadas. Reconhecendo as ambiguidades de ontem e de hoje, forçoso
se torna reconhecer igualmente os valores, se queremos um diálogo honesto. O
Concílio afirma que, na história humana, o Evangelho foi fermento de liberdade
e de progresso, de fraternidade, de unidade e de paz[65].
A liberdade e o progresso, a fraternidade e a paz que a revolução de hoje
defende, são valores de raiz evangélica.
Ao proclamar, num mundo de homens-objectos, a dignidade
da pessoa humana, o Evangelho proclama, ao mesmo tempo, os valores que lhe são
inerentes. Como diz Garaudy, a fé cristã trouxe à civilização o sentimento de que o homem é plenamente responsável pela sua
história e que não tem de obedecer a nenhuma fatalidade. Através desta
concepção de liberdade, entendida como participação na criação contínua do
Homem pelo Homem, o cristianismo rompeu com a concepção grega do Homem[66]
e abriu caminho à civilização da
liberdade.
Uma análise correcta não permitiria afirmar que a
religião é apenas o "reflexo da miséria" e por conseguinte,
alienação. Afirmaria também que é "protesto contra a miséria" e como
tal, força mobilizadora. Se Lenine acentuou o primeiro aspecto e desprezou o
segundo, fê-lo dentro das condições em que viveu. Não se pode esquecer que a
Igreja Ortodoxa, do tempo de Lenine, era herdeira da Igreja bizantina, isto é, de
uma Igreja em que o poder temporal e o poder espiritual estavam demasiadamente
unidos nas vésperas da Revolução de Outubro (1917), a Igreja Ortodoxa aparecia como parte do Estado, e como tal, instrumento da
política. Lenine tinha, por conseguinte, diante de si, uma
realidade sociológica muito forte. Não admira que venha a escolher o caminho
do combate em vez do diálogo.
Mas os tempos e as circunstâncias mudaram. Muitos são hoje os marxistas que
vêem na religião o seu aspecto de protesto. Por outro lado as revoluções não
se repetem e tentar repeti-las é esquerdismo infantil.
Togliati afirmava em 63: "Não é verdade que a
consciência religiosa seja obstáculo à compreensão e ao cumprimento dos deveres
e das perspectivas da construção do socialismo. Penso, pelo contrário, que a
aspiração de uma sociedade socialista, não só pode abrir caminho no coração de
homens dotados de fé religiosa, mas que uma tal aspiração pode encontrar na
própria consciência religiosa, um estimulante, quando essa consciência posta
frente a frente com os problemas dramáticos do mundo contemporâneo. A
consciência religiosa não é necessariamente um obstáculo à edificação do socialismo, isto é, duma sociedade que
torne possível a realização do homem total[67].
E conclui Garaudy: "o que interessa a um marxista é
o que está em vias de nascer e de se desenvolver; ora o que está em vias de crescer não são os
integristas, mas, pelo contrário, os que vêem na religião, não um princípio de
ordem mas um princípio de liberdade, os que vivem a sua fé como revolta e não
como resignação"[68].
De facto, o Deus da Bíblia revela-se através da História e aparece como força
que liberta. O Deus de Jesus Cristo está presente na revolução, mais do que na
ordem estabelecida quando esta é opressiva.
26 - Um terceiro
caminho estaria na mútua interpelação.
A revolução poderia interpelar a fé e esta, por sua vez,
a revolução. Haveria assim, uma fecundação mútua em ordem à autenticidade. A revolução com o seu mordente de
historicidade e de imanência, lembraria à fé o perigo do espiritualismo
vazio de sentido humano e o consequente absentismo histórico. A fé, com a sua
exigência de ultrapassagem, na busca permanente do novo céu e da nova terra
(2Ped 3,13), faria ver à revolução o
perigo do imanentismo desmobilizador e reaccionário, da organização
estabilizadora, do poder constituído com base na força política, social,
económica e militar.
A revolução, com o seu princípio da
praxis, diria à fé que a prática é essencial à vida cristã e que praticar é, em
definitivo, amar o homem à semelhança de Jesus Cristo; diria ainda que a fé sem
obras é morta[69] e,
além de tudo, motivo de escândalo para os homens que sofrem. A fé, com o
sentido que possui da vocação plena do homem, avisaria a revolução da ilegitimidade
de todo e qualquer processo que, porventura, transformasse o Homem em objecto, ou fizesse da eficácia o critério
último da acção. A revolução, com o seu projecto de sociedade sem exploradores
nem explorados, lembraria à fé o dever de produzir na história homens
solidários, unidos na igualdade de direitos e deveres, e na participação
equitativa dos bens, na esperança dum mundo mais humano e fraterno.
A fé, como pergunta e resposta,
diria à revolução que não é lícito manipular a consciência do homem, gerando
assim novos alienados, incapazes, por isso, de aceitar uma pergunta ou de dar
uma resposta.
A revolução diria, por sua vez, à
fé cristã, que não é difícil fazer da religião um poder, uma ideologia,
criando, deste modo, homens submissos, e por conseguinte, incapazes de
perguntar ou responder.
A fé tornaria presente na linguagem
da revolução modos de dizer que possam concorrer para a eficaz libertação e
crescimento do homem.
A revolução obrigaria a fé a
purificar-se de linguagens e culturas anacrónicas, susceptíveis de alienar, em
vez de criar espaços de liberdade.
27
- Um quarto caminho estaria no
compromisso de cristãos e marxistas no projecto de construção duma sociedade
verdadeiramente liberta da exploração do homem pelo homem.
A Igreja, rejeitando embora o
ateísmo, afirma que todos os homens, crentes e não crentes, devem colaborar na
edificação deste mundo, no qual vivem em comum, o que, evidentemente, não é
possível sem diálogo leal e prudente[70].
Na revolução em curso, cristãos e
marxistas, crentes e não crentes, cooperam já a diversos níveis. Engajar-se nas
tarefas da reconstrução nacional, como sejam as tarefas da educação e cultura,
saúde, produção, administração pública, defesa e segurança, não parece
constituir problema. Engajar-se, porém, nas estruturas do Partido, poderá
levantar, no que toca à liberdade de consciência, interrogações e dificuldades.
Neste sentido, será oportuno
formular algumas observações:
- ao poder público não é lícito
antepor os seus próprios interesses (políticos, ideológicos) ao bem comum (GS
75);
- no partido não é lícito usar de
certos meios de pressão para impor uma ideologia ou o ateísmo (GS 20);
- os crentes, ao entrarem num
partido, deverão fazê-lo com plena lucidez, conhecendo bem os valores e contravalores
que o animam, e sabendo, além disso, distinguir os movimentos históricos - como
é a revolução - das ideologias que os inspiram (OA 30);
- os crentes ao aceitarem um partido como força
dirigente, nem por isso aderem à ideologia que lhe está subjacente, sobretudo
quando esta negue qualquer transcendência ao Homem e à sua história pessoal e colectiva, quando absorva a
liberdade individual na colectividade, ou quando, ao contrário, julgando exaltar a liberdade, a subtrai a
toda a limitação, estimulando-a com a busca exclusiva do interesse e do poder,
e considerando as solidariedades sociais como consequências, mais ou menos
automáticas, das iniciativas individuais e não já como um fim e um critério mais
alto do valor e da organização social (OA 26);
- no cristão, o direito a participar na reconstrução
nacional, na defesa do país e da revolução (art.30º), implica, certamente, o
direito ao risco. Isto quer dizer que nenhum cristão poderá dispensar-se dos
seus deveres de cidadão, invocando os riscos que possivelmente a sua fé possa
vir a correr. O risco é algo inerente à vida humana,
mais ainda quando se trata de construir um projecto social, sujeito a impurezas
e desvios, como todos os projectos humanos. O risco é um direito e um dever.
Cada um deverá, no entanto, assumi-lo de um modo responsável, tendo em conta
algumas condições elementares como são a consciência clara dos perigos mais
inerente e ao caminho que se escolhe e a capacidade efectiva que se tem para
serenamente os superar.
28 - Um quinto caminho poderia surgir da unidade na luta contra a exploração do homem pelo homem, contra o
colonialismo, o imperialismo e o racismo, contra as estruturas, sistemas e
regimes que negam ou oprimem o direito dos povos à própria autonomia e independência.
A República Popular de Moçambique apoia e é solidária com a luta dos povos pela sua libertação
nacional (art.21). Crentes e não crentes, em razão da justiça, não podem
seguir uma linha diferente. Com efeito, o direito dos povos à sua
autonomia e independência, brota da justiça e da inata dignidade, própria de
cada povo, e não de concessões ou de acordos políticos. Os governos dominantes
não fundam o direito dum povo à sua
autonomia e independência total.
Não há qualquer razão que justifique o domínio dum povo
sobre outro povo. Não há qualquer competência que permita a um povo dar, ou não
dar a independência a outro povo. Não há comunidade nacional alguma que deseje
estar submetida ao domínio de outro. A convicção de que os homens são, por
dignidade natural, iguais entre si, faz parte da consciência universal. Por
isso, as discriminações sociais, a submissão dum povo a outro, o domínio
colonial, não encontram hoje qualquer justificação. Todos os povos adquiriram
já a sua liberdade, ou estão em vias de a adquirir. Não poderá continuar a
haver, no contexto das nações, povos dominados e povos dominadores (PP 42-44).
E se nos povos dominados surge a consciência dos próprios direitos, surge
igualmente a obrigação de os exigir (PP 44).
Dai a justiça da luta pela autonomia e independência.
Todos os povos que sofrem ainda a dominação colonial, a opressão racista, têm o direito e o dever de lutar
para se libertarem e se constituírem senhores do próprio destino. Todavia, se a
luta pela libertação é justa, podem não ser justos os meios que eventualmente
venham a ser usados. O recurso às armas só é permitido como última
possibilidade. Enquanto houver uma possibilidade de solução pacífica, as armas
não poderão ser usadas porque as armas põem em causa a vida e a vida é um valor
fundamental e sagrado. Desonram, além disso, a consciência dos homens. Já Maquiavel
dizia que os homens deverão lutar com as leis e não com a força, como fazem os
animais[71].
O crescimento da dignidade do homem e da solidariedade
entre os povos recusa cada vez mais o uso das armas, exigindo o uso da
política, na solução dos diversos diferendos. Por outro lado, forçoso é
reconhecer que a depravação no crescimento da humanidade fez das armas uma
fonte de lucro. Infelizmente, a corrida aos armamentos é, em definitivo, uma
corrida ao lucro e ao domínio sobre o mundo. Assim se explica a provocação e
manutenção de certas guerras, aqui e além. Os direitos legítimos dos povos não
contam efectivamente. Servem apenas para iludir a opinião 'pública e camuflar
interesses ocultos e quase sempre
criminosos. É sintomático que as ajudas dos povos opulentos aos povos
oprimidos, se traduzam mais em armas que em pão e liberdade.
Por isso, uma coisa é utilizar a
força militar para defender e impor a justiça, outra coisa é querer o triunfo
de interesses invocando, tacticamente, o bem do Povo. Neste caso, a guerra
seria uma nova forma de domínio e a opressão tornar-se-ia mais cruel e
criminosa.
Crentes e não-crentes dão as mãos na luta justa pela
libertação dos Povos oprimidos. Mas não será legítimo cooperar quando os
objectivos da luta apareçam intrinsecamente viciados por interesses desonestos
e ocultos, ou quando na luta se usem meios ou métodos perversos ou desumanos.
Os massacres, os bombardeamentos indiscriminados, as retaliações contra
populações indefesas ou refugiados, a sujeição do povo através de métodos
terroristas, as torturas e sevicias, a violência psicológica criando situações
de pânico, são actos que a consciência da humanidade condena como crimes e,
como tais, nenhum poder e nenhuma causa, por mais justa que seja, os podem usar. Na
guerra, como acção conduzida por homens, há princ1pdcs universais de direito e
de moral que ninguém poderá violar sob pena de regresso ~ barbárie e à crueldade
selvagem.
29 - O tempo, que
vivemos ê tempo verdadeiramente novo. Exige de todos e de cada um uma mentalidade e
atitudes novas.
É tempo de purificação. Impõe a todos e a cada uma critica e
a auto-critica numa linha de honestidade e numa busca
sincera de libertação.
É
tempo de interpelação. O ateísmo provoca de um modo profundo e decisivo os crentes, particularmente os cristãos. Por sua vez, os crentes,
quando crentes de verdade, podem e devem provocar o ateísmo e a revolução que o
difunde. Esta provocação mútua é salutar e, bem
assumida, fará avançar a vida, a liberdade, a alegria de ser homem.
É
tempo de revolução, e revolução quer dizer transformação das estruturas, do estilo de vida, dos modelos sociais; transformação do Homem e da sua relação
com o mundo.
O
Evangelho, onde quer que seja anunciado, traz dentro de si uma exigência
profunda de conversão, de Páscoa, de Mundo Novo. A conversão não se limita às
boas intenções ou às simples emendas de vida. Conversão é mudança, é vida nova. Mudança que atinge não só o
coração, mas as relações humanas e as estruturas onde a vida acontece, como dom
e como exigência individual e colectiva.
A
Páscoa não é apenas um acontecimento histórico de ontem. É acontecimento de hoje. É passagem da morte à vida; da injustiça à justiça; da mentira à verdade, da opressão à liberdade.
Páscoa é vitória do Homem novo e da nova
humanidade; Páscoa é caminho para o triunfo definitivo do vida sobre a morte.
O
Mundo Novo não é apenas uma esperança. É já uma presença e uma certeza. Esperar
um novo céu e uma nova terra, é já construí-los, é já travar uma luta entre o novo e o
velho. O novo que tem o nome de justiça, de comunhão, de liberdade, de paz, de alegria e dignidade humana (G.S. 39); o velho que tem o
nome de mentira, de ambição, de prepotência e opressão.
Assim,
a novidade de Cristo é um acontecimento contínuo, uma recriação jamais terminada.
O Evangelho é um apelo e uma exigência de revolução. Transformar o mundo para que
os homens sejam mais homens, mais irmãos, mais solidários, mais vivos na vida
que se faz Dom para que todos e cada um tenham vida em abundância (Jo 10,19).
Tempo
de revolução, é tempo de Evangelho!
NATAL
DE 1978
MANUEL,
BISPO DE NAMPULA
[1]
Relatório do Comité Central ao 32 Congresso da FRELIMO,
Doc.3º Cong. p.161.
[3] Idem
[5] Ibidem, p. 91s.
[7] Vaticano II, GS 20.
[8] Vaticano II, GS 4.
[9] Vaticano II, GS 54.
[10] Vaticano II, GS 56.
[11] Vaticano II, GS 36.
[12] Vaticano II, GS 41.
[13] Vaticano II, GS 56.
[14] Vaticano II, GS 36.
[15] Anselmo Borges in Igreja e Missão, revista missionária de cultura e actualidades, Cucujães, Julho 1978, p.
178
[18] Ibidem, p. 46.
[20]
Ibidem, p. 547.
[21]
Idem.
[24] Ibidem, p. 65.
[25] Ibidem, p.68.
[26] Cit. em Gonzalez
Ruiz, Marxismo e Cristianismo frente aI
Hombre Nuevo, Ed.Marova, Madrid, 1972, p. 20.
[27] João XXIII, Pacem in Terris, 79.
[28] Ibidem, 35.
[29] Vaticano II, Dignitatis
Humanae, 3 e 4.
[30] Ibidem, 4.
[31] Ibidem, 5, 6 e 7.
[32] Idem.
[33] Idem.
[34]J.C.Murray e outros, La liberté religieuse, Ed.Centurion,
Paris, p. 58s.
[36]
Ibidem, p.62
[37] Vaticano II, GS 76, 19 e 21.
[38] Idem.
[39] Vaticano II, GS 76, 19, 21.
[40] Is 58, 5-8.
[41] Paulo VI, Evangelii Nuntiandi, 21.
[42] Vaticano II, GS 19.
[44] R. Garudy, Para um
diálogo das civilizações, o Ocidente é um incidente, Pub. Dom Quixote, Lisboa 1977, p. 37.
[47] Vaticano II, GS 21.
[49] Paulo VI, Evangelii Nuntiandi, 21
[52]
Ibidem, p. 227.
[54] Vaticano II, GS 44.
[55] Vaticano II, GS 4; 11.
[56] G. Girardi, oc, p. 220.
[57] Ibidem, p. 222.
[58] Ibidem, p. 245.
[59] Vaticano II, GS 34.
[60] Girardi, oc, p.259.
[61] Paulo VI, Octagesima
Advenians, 26.
[63]
Reys Mate, oc.
[64]
Reys Mate, oc.
[65] Vaticano II, Ad Gentes 8.
[66] R.Gararudy, Fala, Ed Inova, Porto,
1970, p.133.
[67] Ibidem, p.146.
[68] Ibidem, p.147.
[69] Cf Isaías, Oseias, Amós e Apóstolo
Tiago.
[70] Vaticano II, GS 21.
[71] N. Maquiavel, O Principe, Ed Europa-América, p.93.
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