Ateísmo e Religião Fé e Revolução - 1978



Ateísmo e Religião
Fé e Revolução
Natal 1978


Carta Pastoral, Natal de 1978. No contexto da revolução moçambicana marxista-leninista e militantemente ateia, reflecte sobre as condições de possibilidade de diálogo, ao nível teórico e prático, entre cristianismo e marxismo (A. B.).


1 - Vivemos na Revolução um momento novo.
Os acontecimentos processados ao longo deste terceiro ano de combater em várias frentes, levam-nos a reflectir e a tentar descobrir os caminhos 'que melhor permitam cooperar ,na na "libertação total do homem"[1]. É nesta linha que gostaríamos de falar do ateísmo, da liberdade religiosa e do diálogo entre marxistas e cristãos.
 Não se trata de defender os direitos de Deus, mas o direito do Homem a ser Homem integral, a viver dignamente, a conviver na amizade e na solidariedade. Por is­so afirmamos que a sociedade a construir por todos nós terá de ser "integral­mente edificada e organizada em benefício do Homem[2]. Por isso lembramos que a dignidade do Homem será sempre o objectivo permanente de todos os combates[3], mesmo do combate contra a alienação religiosa.

2 - A revolução moçambicana é ateia.
Convém no entanto explicar, embora ao de leve, a génese e as caracte­rísticas do ateísmo do nosso tempo, para melhor assumirmos os comportamentos que o processo em curso pode gerar, tanto nos crentes como nos ateus e nos anti­-religiosos. Será de igual modo oportuno situar a liberdade religiosa, lembrando os últimos séculos e o momento actual da Revolução, para em seguida tentarmos compreender algumas das exigências que o ateísmo põe tanto às Igrejas como á própria sociedade ateia.
No processo de criação e consolidação da nova sociedade, marxistas e cris­tãos não podem ignorar-se nem combater-se mutuamente. Deveremos então encontrar o diálogo que permita uma justa e digna cooperação. Com a presente reflexão, gostaríamos de contribuir para o avanço daquele "pressuposto indispensável para a libertação do Homem"[4] e de todo o Povo Moçambicano em luta pela edificação duma sociedade de "Homens livres, solidários e desenvolvidos"[5].

3 - Importa dizer, antes de mais, que o ateísmo não tem as suas raízes na revolução moçambicana, nem tão pouco recebe dela qualquer origina­lidade. Seguindo o Concílio Vaticano II, poderemos descrever as várias formas de ateísmo do nosso tempo. Com efeito, com a palavra ateísmo designam-se fenómenos muito diversos. Há quem negue expressamente a Deus e por isso, ao falar destes, seria mais correcto falar de anti-teístas e não propriamente de ateus. Há também quem diga que acerca de Deus nada se pode afirmar, nem positiva nem negativamente. Esta é a posição dos agnósticos. Há ainda quem pense que o pro­blema de Deus não tem sentido; que preocupar-se com tal problema é preocupar-se com uma questão inútil. Outros pretendem que tudo se explique pela razão cien­tífica. Esta foi e continua a ser a tarefa do positivismo e do cientismo.
Outros, mais preocupados em afirmar o Homem que em negar Deus, exaltam de tal forma o Homem que Deus tem de morrer. O soberano, pergunta Marx, é Deus ou o Homem? Responde, em seguida, que «o Homem é o ser supremo para o Homem"[6] . Esta é a linha do humanismo ateu que, partindo de Hegel, Feuerbach e Marx, caracteriza o humanismo moderno.

Há ainda quem não reconheça qualquer verdade absoluta, caindo assim no relativismo e no cepticismo. Não são poucos também os que, atribuindo a certos ideais humanos um ca­rácter absoluto, acabam por considerar tais ideais como se fossem Deus. Apare­cem-nos assim, na cultura moderna, ideologias e mitos, substitutos de Deus; ídolos e confissões de carácter político, social, económico e cultural.

Outros esperam a libertação do Homem da libertação económica e a esta, dizem, opõe-se, por sua natureza, a religião, na medida em que, dando ao Ho­mem a esperança duma ilusória vida futura, o afasta da construção da cidade terrena.
Os que professam tal ateísmo afirmam ainda que a autonomia do Homem é incompatível com qualquer dependência em relação a Deus, pois que o homem é o autor único e demiurgo da sua história.
Lutando pela libertação total do Homem, esta forma de ateísmo torna-se, com frequência, militante, sobretudo quando alcança o poder político[7].

4 - Encontrar as raízes do ateísmo é possuir, de algum modo, a chave para o compreender.
A humanidade de hoje vive, efectivamente, uma fase nova da sua história, marcada por rápidas, profundas e universais transformações, a todos os níveis, provocadas pela inteligência e actividade criadora do homem. Tais transforma­ções põem em causa o próprio homem, os seus juízos e desejos individuais e colectivos, os seus modos de, pensar e de agir, tanto em relação às coisas como às pessoas, instituições e modelos de vida.

Estamos de facto em presença duma verdadeira transformação social e cultural[8]. É lícito, na verdade, falar duma nova era da história humana[9], duma nova cultura, rica, sem dúvida, de grandes valores positivos, mas também de antinomias a que o homem terá de dar resposta[10]. O ateísmo aparece-nos, assim, como um fenómeno ligado a alguns dos principais rasgos da cultura moderna.

5 -Antes de mais, a Secularização.
O Concilio fala da autonomia das realidades terrestres[11], da au­tonomia da cultura[12], da autonomia do Homem[13]. Afirma ainda que a auto­nomia das realidades temporais é plenamente legítima. Na verdade, as realidades terrestres, as sociedades, têm as suas leis, os seus valores próprios e compete ao homem descobri-los, organizá-los e utilizá-los.

A secularização é, portanto, uma recusa e uma afirmação.
Recusa a aceitar que a terra não tenha consistência em si mesma, que o mundo só encontre expressão na esfera e na dependência do sagrado, que a filosofia tenha de ser escrava de teologia e que a ciência não tenha os seus métodos e as suas leis próprias.
Afirmação de que todas as coisas são dotadas de consistência, de verdade, bondade, de leis próprias e de uma ordem que o homem deve respeitar e reconhe­cer[14]. A secularização liberta as coisas da esfera e da influência do reli­gioso, alarga a esfera profana, afirma a autonomia e secularidade do mundo.
Com a secularização opera-se uma passagem importante para a compreensão do ateísmo. A passagem da consciência religiosa à consciência profana. O sentido último já não está no divino. O sagrado deixou de ser significativo. Mais do que secularização das realidades temporais poderíamos falar de secularização das consciências.

A estruturação e organização social do mundo já não têm o divino por quadro de referência. O homem moderno já não conta com o sobrenatural para a compreen­são e construção do mundo, de que ele se sente senhor e artífice. E parece tra­tar-se dum sentimento crescente.
A maior parte dos historiadores concordam em dizer que os últimos tempos conheceram uma evolução das culturas religiosas para culturas mais materialis­tas. Verifica-se, de facto, a passagem do mundo religioso ao mundo secularizado, a passagem da consciência espiritualista à consciência materialista[15].
A secularização, sendo em si mesma positiva, não deixa de constituir uma das raízes do ateísmo contemporâneo.

6 - A emancipação progressiva do Homem e da História é um outro dado importante da cultura moderna. A emancipação que toma verdadeiramente corpo a partir do Renascimento, tem vários aspectos, como vários são os aspectos da submissão.

Em primeiro lugar, a emancipação cultural. Todo o seu esforço consiste em desligar a filosofia da teologia, a ciência da religião, a investigação da Bíblia, a consistência do profano da consistência do sagrado. É o tempo da afirmação da autonomia da razão, frente, particularmente, à Igreja.

Em segundo lugar a emancipação política. Terá como objectivo desligar a organização da sociedade do mundo religioso. A Revolução Francesa foi o grande arranque. Não se tratava duma revolução ateia ou anti-religiosa, mas intencionalmen­te anti-clerical. O peso da instituição clerical-religiosa era demasiado. A emancipação da sociedade, sem a remoção desse peso, seria ilusória.

 A proclamação universal dos direitos do Homem, em 1789, põe um ponto final à ordem estabelecida por Deus, como fundamento desses direitos e do Poder. O ateísmo aparece-nos assim como um problema politico.
nos finais da Idade Média se iniciara um processo de emancipação polí­tica, cujos resultados definitivos só encontrariam expressão na Idade moderna.

A primeira etapa remonta à luta das investiduras. Uma luta prolongada entre o Papado e o Imperador e cujo significado último consistia na dessacralização do Imperador e por conseguinte, na afirmação da politica como actividade autónoma. Desde então, a política disporia de objectivos próprios, independentes dos objectivos espirituais. O tempo, contudo, não estava maduro para que o poder civil levasse a cabo todas as consequências.
Mas a primeira pedra estava lançada: a legitimação teórica da política, como actividade específica.

A segunda etapa inicia-se com as divisões religiosas. Toma corpo durante as guerras de religião e institucionaliza-se com a Revolução Francesa. A Reforma religiosa do séc. XVI levanta um grave problema de convivência social. O conflito das Igrejas não era apenas religioso. Era também político. O poder civil sente-se obrigado a lutar pela verdade contra o erro e com os argumentos que possuía: as armas. 
As guerras de religião ensanguentaram a Europa e as suas consequências foram definitivas para a emancipação política. Se, na época anterior, a Igreja manipula a política, as guerras dão aos príncipes a possibilidade de tomar consciência da própria força e superioridade sobre as igrejas. Chegam, além disso, à conclusão de que a unidade politica, bem como a convivência social, não podem cimentar-se sobre a religião, convertida em elemento de discórdia.

A paz, a unidade, a segurança nacional, só poderão conseguir-se à custa do controlo da religião pela política. A construção da paz e da unidade nacional é assunto do Príncipe, cujas decisões são leis. A emancipação política torna-se um facto.

Em terceiro lugar a emancipação social.
Os movimentos revolucionários do séc. XIX desligaram definitivamente a construção duma sociedade nova da influência do poder religioso e do poder do estado cristão.
Estes movimentos foram ateus e anti-religiosos. A supressão da religião aparece-lhes como primeira condição para o desmantelamento e liquidação das forças opressivas.

Em quarto lugar a emancipação científica e tecno1ógica.
Unida intimamente à emancipação do homem, ela pretende desligar toda a ciência e toda a técnica de qualquer referência ao religioso. A autonomia absoluta e à consistência, seguir-se-ia a moral a partir da eficácia. Esta é a revolução em curso. A mais temível e a mais decisiva, porque a técnica tornou-se um deus que ameaça  terrivelmente a Humanidade.

7 – O processo de emancipação vai naturalmente marcado por um tipo de pensa­mento cuja constante é a crítica à religião.
No “século das luzes" encontramos o conceito de religião numa dupla perspe­ctiva. No interior das igrejas, a perspectiva da religião positiva e revelada no mundo dos filósofos, a religião natural, que opõem criticamente à religião revelada.
A relação entre os dois conceitos vai-se aclarando pouco a pouco e por etapas.

A princípio não se quer liquidar o mundo biblico-cristão. Kepler, Bruno, Galileu, Newton, prosseguem uma purificação do cristianismo criticando toda a for­ma de superstição e de obscurantismo. Mas, à medida que os interesses eclesiais se distanciam dos interesses da racionalidade crítica, a diferença vai crescendo. As guerras de religião persuadem os filósofos da superioridade da religião natural, bem como a assimilação desta à ordem da convivência social. A actividade huma­na, o pensamento, a sociedade, não têm por medida uma ordem revelada. Derivam de pressupostos naturais, de si mesmos, universais e racionalmente controláveis.

Da distinção entre natural e revelado, à oposição, vai apenas um passo. Este dá-o a doutrina de Hobbes e o deísmo inglês. A religião há que fundamentá-la, natural e racionalmente, na consciência do homem, nunca na tradição e na autori­dade. Ao mesmo tempo, denuncia-se de ideologia a religião revelada. Toda a religião é a justificação teórica de interesses ocultos.

A crítica à religião não se detém na crítica à religião revelada mas desem­boca na crítica absoluta a toda a religião. A Ilustração francesa reduz a religião natural a um conceito racional-estético.
A denúncia da religião revelada como ideologia, leva à crítica do fenómeno religioso como ideológico. Inimigos da racionalidade são os preconceitos, particularmente os religiosos. Fontes dos preconceitos são a ignorância e o medo de que se aproveita a religião para manter o povo na servidão. A missão de uma crítica radical à religião consiste, pois, em desmascarar o fenómeno religioso, como um complexo de preconceitos. Ao mesmo tempo, há que desmontar o complexo sociocultural que os alimenta, assim como os interesses políticos que subsistem e se produzem graças à manutenção do fenómeno religioso. A crítica da religião desdo­bra-se, deste modo, em crítica da sociedade. Chegamos assim à luta de Marx contra a religião e às situações que a originam[16].
                                                                                                                              
8 - O ateísmo da civilização contemporânea é, por conseguinte, um fenómeno extremamente complexo.
Nele convergem múltiplos factores de natureza religiosa, política, social e económica. O pensamento moderno não tem sido mais que a afirmação progressiva do reino do homem a expensas da crescente perda de Deus. Por isso, o ateísmo radical definirá a positividade do ser do homem, como pertença absoluta de si mesmo. "O Homem é o ser supremo para o Homem". Tenderá, por outro lado, a identificar-se, em muitos aspectos, com a nova civilização, a ser portador, não só duma aspiração à liberdade, mas também dum projecto duma nova sociedade, mais justa e mais humana.
Poderemos então imaginar que a emergência do ateísmo poderá acontecer onde aconteçam instâncias que provoquem a emancipação do homem e a consciência duma nova maneira de organizar a vida política, social e económica dos homens.

9 - Marx não desconhece o ateísmo do seu tempo. Herda-o e parte dele como um pressuposto indiscutível.
Não se preocupará, por isso, com a negação de Deus. Na sua crítica à religião terá presente a afirmação do homem. Sentirá, além disso, a larga influência que a religião exerce sobre os seus contemporâneos, bem como a fraqueza e o débil testemunho social das Igrejas. Criticando o Estado prussiano, acusará a religião de ser conivente com a política dos poderosos, servindo de apoio ao conservantismo e à reacção e travando, no oprimido, a revolta e a luta.

A alienação religiosa determina a crítica de Marx. Alienado é o homem que se perdeu em si mesmo. Para se reencontrar, torna-se forçoso destruir as situações que o alienam. A religião é uma situação alienante."É a consistência que o homem extraviado possui de si mesmo. É a realização fantástica do ser humano. É o suspi­ro da criatura oprimida, a alma dum mundo sem coração. É o ópio do povo". “A religião não passa do sol ilusório que gravita em volta do homem, enquanto o homem não gravita em volta de si próprio".
" A abolição da religião, enquanto felicidade ilusória do povo, é uma exigência que a felicidade real formula". E se "o Estado e a sociedade produzem a religião, consciência invertida do mundo, porque eles próprios são um mundo in­vertido, lutar contra a religião é lutar contra esse mundo". "É pois, tarefa da filosofia, desmascarar a auto-alienação nas suas formas não sagradas, uma vez denunciada a forma sagrada da auto-alienação do homem. Assim a crítica do céu transforma-se em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, a crítica da teologia em crítica da política"[17].

Podemos concluir que, para Marx, a crítica da religião não é o objectivo supremo. Com efeito, se é verdade que a religião é um fenómeno social, se é efe­ctivamente um reflexo deformado, ilusório, que tem por origem as contradições da sociedade, então a luta contra a religião, para ser verdadeiramente eficaz, deverá tender a eliminar as raízes sociais que lhe dão origem.
Deste modo a luta contra a alienação religiosa deverá estar subordinada a luta dos explorados contra os exploradores. É nesta perspectiva que se inscrevem as explicações de Marx e Engels.
No entanto, o problema religioso aparece o Marx como um ponto de partida. "A crítica à religião é a condição de toda crítica". Mais ainda quando a re­ligião justifica a violência exercida pelos exploradores e a violência sofrida pelos explorados, ou quando, por conivência com o poder, trava a emancipação do homem oprimido.

É verdade que Marx apresenta a religião em duas dimensões: "A angústia re­ligiosa é, por um lado, a expressão da angústia real, e por outro, o protesto contra a angústia real"[18].
Se a dimensão de "expressão" justifica a crítica, a dimensão de"protesto" autoriza a simpatia. Engels, particularmente, sublinha ao lado dos aspectos ne­gativos, o aspecto positivo da fé cristã. Isto levou Garaudy a afirmar que a religião se nunca foi motor da história,também nem sempre foi um travão.

10 - Lenine continua a crítica de Marx e organiza, além disso, a luta contra a religião.
Para ele, a religião é não só "o ópio do povo", mas também a "matriz de impurezas, preconceitos, obscurantismos e incultura". "Órgão de reacção burguesa, a religião desempenha um papel classista e serve para consagrar a servidão!”.
"Deus é, antes de tudo, um conjunto de ideias engendradas para a destruição obtusa do homem, nas mãos da natureza ambiente e do jugo classista". "A ideia de Deus sempre adormeceu e embotou os sentimentos sociais, substi­tuindo o que é vida pelo que é morte"[19].

Por isso, "a luta contra a religião" impõe-se "como obra de todo o mate­rialismo e, por conseguinte, do marxismo"[20]. E se a religião é um assunto privado relativamente ao Estado, não o é quanto ao partido. A neutralidade do Partido, com respeito à religião, seria uma inconsequência oportunista. Com­bater a religião, por todos os meios ao alcance da propaganda e da ciência materialista, é um dever.
Todavia, é preciso saber conduzir a luta. O essencial é lançar as forças do proletariado contra o capital e fazer desaparecer as raízes sociais que dão origem à religião e a mantêm. Actuar de outra maneira, seria esquecer as leis do materialismo dialéctico e cair no esquerdismo revolucionário.

Aclarado isto, a luta ideológica do partido contra a religião será sem­pre um objectivo inevitável[21]. Esta posição leva-nos a concluir que, no leninismo, o combate à religião faz parte do processo revolucionário. E se ao Estado compete garantir a liberdade religiosa do cidadão, ao Partido compete combate-la em nome da Revolução. E como o Partido está acima do Estado, não será difícil compreender que tal combate possa gerar, sob a aparência de liberdade, novas e graves situações de opressão.

11 - A Revolução moçambicana, inspirada e guiada pelo Marxismo-Leninismo, é de sua natureza, ateia e ateizante.
No âmbito ideológico, o Partido prosseguirá a luta contra todas as manifestações negativas das sociedades tradicional-feudal e colonial-capi­talista e pela criação de uma nova mentalidade científica e portanto mate­rialista. Assim, o Partido conduzirá o combate contra todas as manifestações do idealismo tradicional-feudal, em especial o obscurantismo, a superstição e as tradições reaccionárias[22].

A 2ª Conferência do Departamento do Trabalho Ideológico, realizada na Beira em Junho deste ano, virá dizer que "a religião é um obstáculo ao avanço do processo revolucionário", que "a actividade das organizações religiosas é nociva", que a "propaganda" das Igrejas é "idealista e metafísica"[23].
Na sua "Resolução sobre questões, religiosas" afirmará que "nas actuais circunstâncias, o combate contra a alienação religiosa apresenta-se como condição necessária para o triunfo das novas ideias e como exigência para o desenvolvimento eficaz do trabalho político e ideológico no seio das massas”[24].

Não se estranhará, por isso, uma nova fase de luta contra as actividades das organizações religiosas, e contra a influência das Igrejas. Mas será necessário prevenir alguns desvios para não continuarmos, a confundir e a praticar um esquerdismo lamentável.

Em primeiro lugar, não é licito confundir alienação religiosa com reli­gião como tal. A alienação denunciada pelos clássicos da crítica à religião é uma situação de extravio e como tal deverá desaparecer. A religião como tal é um fenómeno complexo e nada de sério autoriza a identificá-la, pura e simplesmente, com a alienação religiosa. Não ter isto presente, será correr o risco de criarmos “no meio das massas” não "ideias novas" mas ideias confu­sas e opressivas.

Em segundo lugar, não é lícito atribuir, sem mais, à actividade religiosa e à influência das Igrejas, os fracassos que, possivelmente, a Revolução expe­rimente num dado momento. Identificar o inimigo através duma séria e leal auto-critica será mais positivo que atacar a religião como única culpada. Alijar a própria culpa é criar inimigos imaginários, iludir as situações e fomentar o oportunismo.

Em terceiro lugar, não é lícito classificar de "nova táctica" aquela actividade que é própria da Igreja como organismo vivo. O crescimento da Hierarquia e das comunidades, a renovação da doutrina, a presença dos cristãos nas tarefas, a respon­sabilização de elementos das comunidades, a luta pela justiça e direitos humanos, o testemunho social, não surgem da oportunidade de uma nova táctica, mas da própria vida da Igreja. Se, num dado momento, não se verificou esta ou aquela manifestação, é porque a Igreja, como organismo, não sentia ainda essa dimensão, ou os membros da Igreja não davam o testemunho que deviam; ou as situações concretas e históricas não o permitiam. Dizer que uma nova actividade da Igreja equivale a "uma nova táctica para manter a sua influência sobre as massas" é desconhecer a Igreja, agir sem análise prévia, aceitar o preconceito como princípio científico.

A "Resolução sobre questões religiosas" funda o combate à alienação religiosa na"acção política e ideológica". Enquadrado e planificado pelo Partido, o combate à alienação religiosa deverá ter em conta uma adaptação das orientações gerais a cada caso especifico e processar-se, fundamentalmente, através da educação ideoló­gica dos membros do Partido e da elevação do nível de consciência das massas populares"[25]. "Análise prévia", "enquadramento e planificação", "adaptação a cada caso específico", "educação ideológica", "elevação do nível de consciência", são orien­tações que nos permitem esperar a ultrapassagem definitiva da injúria aos crentes e da discriminação por motivo religioso, bem como um trabalho que contribua eficaz­mente para a libertação do Povo, não só da alienação religiosa, mas de toda e qual­quer alienação. Leva-nos a esperar também que no processo revolucionário, a "educa­ção ideológica" e a "elevação do nível de consciência das massas populares" não acabem por criar uma nova alienação e um novo integrismo. Ontem, a alienação reli­giosa e o integrismo das Igrejas, hoje, a alienação ideológica e o integrismo do Partido. A Idade Média engendrou um sistema de inter-relações humanas dentro de cujas fronteiras a confissão da fé cristã era obrigatória. Os não cristãos eram tolerados como cidadãos de segunda ou terceira classe. Hoje pode repetir-se de igual modo o fanatismo medieval. Como afirma Lombardo-Radice, hoje existe o grave perigo de exigir previamente a fé marxista - ou seja, a profissão do materialismo dialéctico ou visão do mundo que inclui o ateísmo - para alguém ser cidadão de primeira classe, num país revolucionário, ou para ser revolucionário de primeira num pro­cesso de libertação humana[26].

12 - Mas, uma coisa é o ateísmo, o combate à alienação religiosa, outra a negação das liberdades fundamentais.
A liberdade é um todo indivisível. Negar a liberdade religiosa é negar a liberdade. E sem liberdade a emancipação do Homem é ilusória, a luta de libertação uma táctica e a Revolução uma nova fonte de opressões. A liberdade, e não a força, é o dinamismo do progresso pessoal e do progresso social. Verdade e liberdade, justiça e Amor, são pedras fundamentais sobre as quais se edifica a civilização humana[27].

Dentro da Revolução, a liberdade do Povo situa-se como um fim político ao lado da justiça. Não haverá justiça social sem liberdade, nem liberdade sem justiça social.
A liberdade é também o método político pelo qual o Povo realiza o seu bem mais alto, ou seja, a sua própria unidade e solidariedade[28]. Desprezar este método é condenar ao fracasso a edificação duma sociedade fundada na unidade e na solidarie­dade de pessoas e bens.
Por isso, a sociedade nova é chamada à prática dos métodos da liberdade, se quiser de facto constituir-se em comunidade de homens solidários, fraternos e enga­jados no progresso comum e na luta pela libertação real dos oprimidos.

Quando a liberdade do Povo é limitada injustamente, a ordem social inverte-se. Porque toda a ordem social para ser humana, deverá ser uma ordem de liberdade. O contrário pertence à história dos regimes fascistas e totalitários. A ordem nascida destes regimes é necessariamente uma ordem de violência, estabelecida e mantida pelo direito da força. O Estado de direito é fatalmente substituído pelo Estado das for­ças policiais e militares.

A liberdade religiosa é uma exigência da verdade e da justiça. É um elemento integrante da liberdade do Povo. Incarna-se no direito civil e humano; pessoal e colectivo. Faz parte da civilização humana, o que quer dizer que uma civilização sem liberdade religiosa, não é humana. Caracteriza, juntamente com as demais liber­dades fundamentais, o Estado de direito. A sua ausência, num dado espaço político, social ou cultural, denuncia a presença de poderes totalitários.

13 - Que significa, na teoria e na prática, a liberdade religiosa?
Significa, em primeiro lugar, um direito radicado na dignidade da pessoa humana, reconhecido e garantido pela ordem jurídica da sociedade, de tal modo que se torne efectivamente um direito civil.
Significa, em segundo lugar, a imunidade de coacção. Isto quer dizer que, em matéria religiosa, ninguém pode ser forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder, segundo a mesma, em privado ou em público, só ou associa­do com outros.
A imunidade de coacção que compete às pessoas tomadas individualmente, também lhes deve ser reconhecida quando actuam em conjunto. Com efeito, as comunidades re­ligiosas são exigidas pela natureza social tanto do homem como da própria religião.

É, portanto, uma injustiça contra a pessoa humana, contra a ordem da liberdade, negar ao homem o livre exercício da religião na sociedade, uma vez salvaguardada a honesta paz pública[29].
Por conseguinte, são de condenar todas as formas políticas que impeçam a liberdade civil ou religiosa, desviando do bem comum a autoridade, em benefício de ideologias ou partidos, ou dos próprios governantes[30].
Tanto a liberdade de consciência, como o livre exercício de religião, fazem parte dos direitos humanos e civis, consignados nas constituições dos estados mo­dernos. Assim o revela a Declaração Universal dos Direitos do Homem, assinada pela maioria das nações. Assim o diz a acta final da Conferência de Helsínquia de 1 de Agosto de 1975, assinada por representantes de 35 países.

14 - É no seio da sociedade que se exerce o direito à liberdade em matéria religiosa. Por isso, o exercício desse direito está sujeito a certas normas reguladoras.
Assim, no uso de qualquer liberdade, deve respeitar-se o princípio moral da responsabilidade pessoal e social. Cada homem e cada grupo social estão moralmente obrigados, no exerc1cio dos próprios direitos, a ter em conta os direitos alheios e os seus próprios deveres para com os outros e o bem comum[31]. Compete, por conseguinte, ao poder civil, assegurar eficazmente, por meio de leis justas e ou­tros meios convenientes, a tutela da liberdade religiosa de todos os cidadãos e proporcionar condições favoráveis ao desenvolvimento da vida religiosa, de modo que os cidadãos possam realmente exercer os seus direitos e cumprir os seus de­veres[32].

Compete, igualmente, ao poder civil proteger a sociedade contra possíveis abu­sos que, sob pretexto de liberdade religiosa, se venham a verificar. Isto, porém, não se poderá fazer de modo arbitrário ou favorecendo injustamente uma parte, mas segundo as normas jurídicas, conformes à ordem objectiva, postuladas pela tutela eficaz dos direitos de todos os cidadãos e sua pacífica harmonia.
Em qualquer caso, dever-se-á manter o princípio de assegurar a liberdade in­tegral na sociedade, segundo o qual, há que reconhecer ao homem o maior grau possí­vel de liberdade, só restringindo esta, quando e na medida em que for necessário[33].

15 - O "cuidado da religião" tem sido, ao longo dos últimos séculos, problema aberto, dando origem a tensões e conflitos entre a Igreja e os pode­res constituídos.
Na Idade Média, o cuidado imperial da religião era limitado pelo princípio da liberdade da Igreja, ou seja, do Pontífice Romano e do povo cristão. Dum modo geral, a liberdade religiosa significava restrição para os judeus, tolerância para os pagãos, intolerância para os heréticos. O pressuposto último de tal liberdade era o princípio de que, no sacro-império, a fé cristã constituía a base da cidadania e do direito.

Depois da Reforma, o cuidado da religião era determinado pelo princípio territorial, ou pelo princípio de que o poder do Príncipe devia favorecer a causa da reli­gião e perseguir o erro. Punham-se então duas questões: que tipo de coacção era, ou não, compatível com a liberdade de consciência? Que poder confere ao Príncipe o cui­dado da religião para suprimir a expressão pública duma fé errónea?
É neste momento que aparece a separação entre liberdade de consciência e livre exercício de religião.
Ao mesmo tempo, cresce a convicção de que a liberdade de consciência não tem sentido se a expressão pública da fé é interdita.

Estavam lançadas as bases dos equívocos entre religião e poder político.
Três concepções de soberania política impediram uma solução justa: a concepção da nação como família e do príncipe como pai, o que facilmente conduzia, dum lado, ao absolutismo paternalista, do outro lado, à submissão infantil; a concepção do príncipe como membro qualificado da Igreja, o que levava a considerar o poder civil como um poder de algum modo eclesiástico, e a unidade religiosa como essencial à unidade poli­tica; a concepção da soberania como um todo individual e do mesmo modo o poder, o que obrigava a concluir que a prerrogativa religiosa do príncipe era um atributo es­sencial à sua soberania política e o cuidado da religião um direito e um dever.

Estas concepções, apesar de esbatidas pelo tempo e pelo desenvolvimento da consciência individual e social, continuam, em certos espaços políticos, embora com outros nomes.
Dum modo geral, continua a haver "príncipes" que se consideram pais da nação, transformando, deste modo, os cidadãos em "filhos obedientes" e determinando o que lhes convém, tanto no aspecto político, económico e social, como no religioso. Conti­nua a haver chefes que, por motivos de consciência, defendem a religião, não como um bem em si mesmo, mas como um factor importante na unidade nacional. Continua a haver políticos que, praticando a indivisibilidade do poder, consideram o cuidado da religião como um direito e um dever, mesmo que por hipótese se declarem membros dum estado ­laico.

16 - O racionalismo instaura um dogma fundamental: a autonomia absoluta da razão humana. A transcrição política deste dogma será a teoria da omnipotência e da omnicompetência do Estado.

Em conclusão: não haverá distinção entre sociedade e Estado, e a totalidade da vida social será subordinada ao poder do Estado. Este conceberá a sua prerrogati­va religiosa, nos termos da sua própria omnipotência, e como personificação política da razão individual autónoma, tornar-se-á supremo árbitro da verdade religiosa e do regime eclesiástico. Fundado sobre o principio racionalista, dirá que todas as reli­giões são igualmente verdadeiras, como expressões iguais da consciência individual liberta da lei. Partindo do princípio da indivisibilidade da soberania, não permitirá a nenhuma outra autoridade pública existir na sociedade.
Assim, a Igreja será incorporada na ordem jurídica do Estado, deixando de ter existência pública. A religião passará a ser uma questão puramente priva­da[34].
 É curioso verificar como da afirmação soberana da razão humana nasce o Estado soberanamente omnipotente. 
Apesar do avanço da democracia e da consciência da dignidade do homem, esta posição ainda não passou. Encontramo-la incarnadas em tipos diversos de estados e regimes. Todos, porém, com a mesma tónica: o absolutismo do poder. Deste modo, a liberdade religiosa, como aliás outras liberdades, serão concessões e jamais reconhecimento de direitos inalienáveis e anteriores ao po­der político. Será o Estado a definir o estatuto da liberdade religiosa, bem como a regulá-lo ou a suprimi-lo, conforme as conveniências políticas. A negação duma liberdade não será uma injustiça, mas uma exigência do bem do Estado.

17 - Com o advento das ideologias totalitárias, os direitos fundamentais do Homem entraram em perigo.
Lenine dirá que "a ideologia não é mistificação ou impotência, mas um conjunto de ideias-forças, susceptíveis, não só de justificar um ponto de vista, mas também de animar um movimento”[35].
Uma ideologia ê totalitária se engloba e define a existência e a vocação do homem todo e da sociedade tode. Neste sentido, qualquer liberdade terá de possuir um conteúdo conforme à ideologia dominante. A liberdade será vista a partir duma perspectiva ideológica; mais ainda se a religião se apresenta como ideologia. Teremos então o perigo do confronto. A abolição de uma será condição para o triunfo da outra.

O combate à ideologia religiosa poderá fazer nascer a religião da ideo­logia. Isto acontecerá todas as vezes que a "ideologia se converter em fé".
A ideologia, quando cede à tentação de se converter em religião, su­bstitui a análise pelo credo, os princípios pela mensagem, o projecto pela vocação, a impersonalidede do método pelo culto da personalidade[36] .
Ideologias  totalitárias, ideologias convertidas em religião, terão necessariamente que negar à religião um espaço próprio na sociedade. O homem terá de ser mutilado, apesar dos esforços para o criarem totalmente novo.

18 - A história da liberdade religiosa mostra que a relação entre poder civil e poder religioso está marcada por avanços e retrocessos, vitórias e fracassos, tensões e conflitos.
A Igreja, manifestando um sério interesse pela liberdade religiosa, espera que o Estado a respeite, como é seu dever respeitar e promover as demais liberdades dos cidadãos.

O diálogo da Igreja com o mundo moderno implica, neste ponto, posições sem ambiguidade. Em primeiro lugar a autonomia própria das instituições re­ligiosas. "No domínio próprio de cada uma, comunidade política e Igreja são autónomas e independentes, servindo embora, a títulos diversos, a vocação pessoal e social dos mesmos homens"[37].

Em segundo lugar, o respeito pela fé de cada crente, o que significa, em definitivo, o respeito pela dignidade do homem. É grave e injusto defen­der por um lado a dignidade do Homem, e por outro, atacá-lo e ofendê-lo nas suas convicções mais profundas.

Em terceiro lugar, a aplicação do principio de igualdade de direitos e deveres. A Igreja renuncia, de bom grado, aos privilégios que porventura passam fazer parte dos processos históricos e culturais[38], mas não pode renunciar ao bem da liberdade que lhe é própria. Ao fazê-lo, estaria contra o Homem, contra a justa organização da sociedade. Por isso, a Igreja, ao de­nunciar as restrições da liberdade religiosa, as injúrias aos crentes, a supressão de certas actividades próprias da religião, tem em vista, prima­riamente, a defesa dos direitos do homem. Se num dado espaço existe opressão, ela será contra o Homem e, em última análise, contra o Povo.

Em quarto lugar, o diálogo como instrumento de procura em comum, como expressão do compromisso com o Homem cidadão e crente, como serviço à cons­trução duma sociedade fundada sobre a justiça, a liberdade e a solidariedade, como arma contra a discriminação, a intolerância, a acusação e a morte social ou política.

Por sua vez, a liberdade religiosa implica, na Igreja, em cada crente, um sério apelo a uma fé mais crítica, mais pessoal e mais livre; implica uma rejeição total de atavismos que, porventura, possam transformar a religião em ritos ou práticas sem linguagem nem referências sociais, ou em supersti­ções alienantes; implica o respeito pelo poder legitimamente constituído, pelas leis justas, pela honesta paz; implica o compromisso com a terra, com os homens e com a História, pois a transformação do mundo é um imperativo que a todos abrange.

19 - O ateísmo, bem como o combate  à alienação religiosa, mais do que levantar discussões, desconfianças e medo, deverá suscitar nos crentes e nos responsáveis da sociedade em construção, uma constante e leal interrogação que poderíamos formular deste modo:

- Estamos a caminho da libertação da alienação religiosa, em proveito da fé em Jesus Cristo morto e ressuscitado, e do compromisso histórico que, na prática, essa mesma fé implica?
- Estamos a caminho duma sociedade para todos, sem exploração nem discriminação, sem autoritarismo nem infantilismo, sem ideologias nem mecanismos de perversão do homem individual e social?
- Não estaremos a caminho duma sociedade ameaçada de ídolos e de si­tuações degradantes, à medida que aumenta a negação do Deus vivo?

Como crentes, entendemos que a função crítica do ateísmo e do com­bate à alienação religiosa poderá, prestar, tanto à religião como à Igreja, um serviço positivo.
O tempo dos anátemas, das cruzadas, das polémicas, passou, não só para a religião e as igrejas, como para os poderes públicos. O tempo novo exige uma atitude nova de ambas as partes.
"O remédio para o ateísmo há-de vir, antes de mais, da conveniente exposição da doutrina e da vida íntegra da Igreja e dos seus membros. Pois a Igreja deve tornar presente e como que visível, o autêntico rosto de Deus, renovando-se e purificando-se continuamente sob a acção do Espírito. Isto há-de alcançar-se, primeiro que tudo, com o testemunho duma fé viva e adulta"[39].

Renovação, doutrina, testemunho, são os pólos de reflexão que o Concílio propõe como resposta à interpelação do ateísmo.
Primeiro, a doutrina. O aparecimento do teísmo na teologia católica é um fenómeno cujas últimas raízes se prendem com variados interesses políticos.
De facto, não é difícil encontrar ao longo dos tempos, o Deus da fé cristã convertido em ideologia, em suporte dum dado interesse religio­so, político e social. Vemos assim o nome de Deus legitimar políticas au­toritárias, organizações sociais exploradoras, guerras de religião ou de expansão da civilização cristã.
Abandonar definitivamente a doutrina que nos dá a imagem de um deus racionalizado e utilizado, conforme os interesses; abandonar a ideologia religiosa para fazer aparecer o Deus da fé, transcendente e gratuito, é condição fundamental para interiorizar a crítica do ateísmo e ultrapassar o reparo da ideologia que o mundo atira ao rosto da Igreja.

Segundo, a vida. O Concílio aponta claramente três aspectos da vida cristã: o religioso, o moral e o social. A experiencia histórica diz-nos como é fácil reduzir o social ao moral, e este ao religioso, que por sua vez, se degra­da ao ponto de alienar. O moralismo e o espiritualismo não são esporádi­cos na vida dos cristãos. Quando estes desvios se instalam, a prática re­ligiosa corrompe-se, o compromisso social não existe, a justiça dá lugar á injustiça. Já no tempo dos profetas existiam estes perigos. Isaías, a propósito da prática religiosa, dizia aos seus contemporâneos: "não jejueis como tendes feito até hoje se quereis que a vossa voz seja ouvida. Acaso o jejum que agrada ao Deus vivo consiste em o homem se mortificar por um dia, curvar a cabeça como um junco, deitar-se sobre saco de cinza? Rom­per com as ligaduras da iniquidade, desatar os nós do jugo, deixar ir livres os oprimidos, quebrar toda a espécie de jugo, repartir o pão com o esfomeado, dar abrigo aos infelizes, vestir o nu, não desprezar o irmão, este é o jejum que fará surgir a tua luz como aurora, e caminhos de jus­tiça à tua frente”[40].

Marx tinha razão ao acusar a religião de ópio, quando via, dum lado, as situações humilhantes dos trabalhadores, o progresso das máquinas e do capital, e, de outro lado, o absentismo social das igrejas e a prática burguesa dos cristãos. Aceitar a crítica do ateísmo é buscar aqueles mo­dos de testemunho que melhor reduzem a vida que a fé em Jesus Cristo exige em cada crente.

Paulo VI, recolhendo as experiências dos cristãos dispersos, par­ticularmente pelo mundo subdesenvolvido e oprimido de muitas e variadas maneiras, diz-nos que o testemunho cristão deverá obedecer, hoje, a três exigências fundamentais: presença, participação e solidariedade[41]. Estar presente na história, na vida de cada homem, participar nas di­versas tarefas, tornar-se solidário com o homem todo e com todos os homens, com as lutas pela justiça e pela paz, com as vitórias sobre a humilhação e a morte, com as alegrias e as tristezas, parece ser tam­bém o convite que o mundo, em transformação, faz aos crentes.

Terceiro, a renovação. Isto supõe uma sincera aceitação da culpabilidade que possa ter havido na génese e avanço do ateísmo. O Concí1io diz-nos que os crentes podem ter tido uma parte, não pequena, na origem do ateísmo[42]. Aceitar a culpa é já caminhar na conversão; é, além disso, reconhecer a justiça que possa haver na luta que o ateísmo trava contra a religião. O ateísmo não pode compreender-se senão a partir da imagem da religião à qual se refere e que considera como inaceitável, ou, ao menos, como estéril e carente de significados. Sendo assim, o ateísmo remete-nos à religião, à Igreja, tal como se apresentam nas suas realizações históricas, psicológicas, sociológicas, nas suas instituições, testemunho e repercussões políticas, sociais e económicas, na sua atitude global frente à cultura e à civilização.

A crítica do ateísmo pode suscitar no crente um instinto de defesa, pon­to de partida, muitas vezes duma apologética agressiva, ou duma reacção magoada. Todavia, uma análise mais objectiva pode levar tanto as institui­ções religiosas como cada um dos crentes a conclusões que permitam o crescimento da fé, da esperança, do amor fraterno, que purifiquem e tornem a Igreja mais presente e aceite nas sociedades que lutam contra a exploração do homem pelo homem. E na medida em que o ateísmo é expressão de uma situação de humanidade e realiza instâncias típicas da nossa época, a atitude que a igreja e os crentes tomarem definirá as relações entre cristianismo e mundo moderno.

Apresentando-se o ateísmo como estilo de vida e de civilização, a fé de cada crente, a fé da Igreja, não poderá ser mais a fidelidade a um património cultural; terá de ser uma opção pessoal, comunitária e comprometida. 
Em conclusão, o ateísmo não é para o crente apenas um fenómeno que urge estudar, mas uma interpelação  profunda e positiva.

20 - O ateísmo interpela também  as sociedades que desconhecem, negam ou atacam a Deus.
Construir uma sociedade sem Deus, será construir uma sociedade à medida do homem, ou uma sociedade contra o homem. São, na verdade, sintomáticas, tanto as aspirações como as opressões do mundo actual.

Primeiramente que tudo as aspirações à felicidade. O desejo de "ser” ultrapassa, nas consciências mais vivas, o desejo de “ ter mais”. O homem quer ser feliz, luta pela felicidade real, histórica, pessoal e comunitária. Uma felicidade que supõe a liberdade e a emancipação. Que exclui os esquemas de qualquer modo repressivos e toma a sério a consciência privada, dentro do maior sentido de colectividade. Uma felicidade que rejeita a redução arbitrária das liberdades, o absolutismo do Estado e das ideologias, a privação da liberdade política por razão de discordância. Uma felicidade que busca a solidariedade social, ao mesmo tempo que luta contra o burocratismo das organizações sociais, contra os fenómenos de manipulação e irracionalidade dos sistemas.

Com a aspiração à felicidade vem a aspiração a uma sociedade nova, de homens solidários, iguais na dignidade, nos direitos e deveres, capazes de participar directamente no processo de construção do tecido social.
Esta aspiração denuncia, em primeiro lugar, a desconfiança das palavras, dos mitos, das ideologias, o domínio da violência pela violência, a mentalidade produtivista, a liberdade vazia de sentido; a luta pelo poder, o dogmatismo, o culto da personalidade e dos partidos.
Em segundo lugar, esta aspiração revela que a democracia representa um progresso real e favorece a promoção humana na medida em que nela todos participam como homens livres e solidários.

Uma terceira aspiração deriva das hipóteses científicas mais recentes. Todas elas são unânimes em afirmar que a única esperança do futuro - tão in­certo e discutido - não consiste no aperfeiçoamento indefinido da técnica, na conquista orgulhosa do cosmos, no incremento politizado da produção, no simples nivelamento económico, na eliminação mecânica das classes, mas unicamente no aparecimento e maturação dum homem mais moral e de uma sociedade mais moral. Por seu lado, Helsínquia afirmou que a segurança e a coopera­ção não podem realizar-se sem o fundamento da moral. Está em causa, por consequência, a qualidade da vida, a qualidade da sociedade[43]. Está em causa o homem e a sua relação com os demais, com a sociedade, com a natureza e com as últimas questões. Como afirma Garaudy, na questão da qualidade de vida podemos distinguir três períodos fundamentais: aquele em que o poder da natureza ultrapassava o poder do homem; aquele onde o poder do homem ultrapassou o da natureza; aquele em que o poder do homem ultrapassa o po­der do homem. Estamos numa civilização que não sabe dominar os meios, nem organizar os verdadeiros fins. Uma tal civilização - conclui Garaudy - está equipada para o suicídio[44]. Aqui se radicam as novas opressões.

Para Luís Althusser, "a história não passa dum imenso processo, sem sujeito, reduzida a funções económicas, políticas e ideológicas". "A ques­tão de saber como é que o homem faz a história desaparece completamente[45]. Em resumo, o homem não conta. O humanismo absoluto dá origem ao anti-hu­manismo absoluto”.

Por sua vez, a sociedade da abundância, com a sua ideologia tecnocrá­tica, a sociedade do homem que domina a natureza e os poderes esclavagistas das sociedades políticas, económicas e religiosas, pode também gerar o anti­-humanismo. O estruturalismo, o neo-freudismo, o neo-positivismo, o produti­vismo reduzem a humanidade a uma doentia máquina de desejos, passando, deste modo, a certidão de óbito ao homem histórico, ao homem livre, solidário e feliz[46]. Teria Nietzche dado conta que ao proclamar a "morte de Deus", estaria proclamando igualmente a "morte do Homem"? O Concílio, traduzindo uma experiência histórica secular, diz-nos que faltando efectivamente o "fundamento último", a dignidade do homem pode ser gravissimamente lesada, como acontece nos nossos dias; as questões últimas poderão ficar sem respos­ta, criando-se, deste modo, um mundo cada vez mais propenso ao desespero e ao suicídio[47].

O ateísmo faz, por conseguinte, sérias perguntas, tanto às Igrejas como às sociedades que o difundem ou praticam. Sabendo que a revolução pretende a libertação do homem todo é-nos lícito pensar se a "morte -de Deus" faz nascer o "homem livre", ou o homem oprimido por novos deuses.

21 - A revolução moçambicana inspira-se e rege-se pelos princípios universais do marxismo-leninismo, tendo embora em conta as condições concretas em que se desenvolve a luta de classes no País[48]. A revolução é, portanto, marxista-leninista. E será nela que os cristãos terão de viver e testemunhar a fé. Será, por conseguinte, oportuno perguntar: que atitude devem viver os cristãos frente à Revolução?

Comecemos por dizer que a confrontação não será o melhor caminho. As condenações doutrinais não poderão servir inteiramente de norma, atendendo aos sinais dos tempos, ao próprio Concílio Vaticano II, ao imperativo de pre­sença, participação e solidariedade que o testemunho cristão, hoje, implica[49].
Por outro lado, invocar a doutrina pronunciada em tempos e circuns­tâncias passadas é desconhecer o dinamismo do Espírito na Igreja e no Mundo; é ignorar os novos problemas, as novas descobertas e atitudes que a consciência da humanidade, e também a Igreja, foram assumindo ao longo dos últimos quarenta anos[50].

Impõe-se, por conseguinte, uma nova atitude. Os cristãos de hoje devem saber olhar a situação de hoje com olhos novos e com espírito criador. Do mesmo modo os marxistas. Uns e outros, cristalizados em fórmulas e atitudes passadas, correrão o perigo de se tornarem dogmáticos, impedindo o crescimen­to da verdade, da justiça e da liberdade.
Encontrar, corajosa e lealmente, uma atitude de diálogo, será responder às exigências dos tempos novos.
Isto implica, antes de mais, e como prévia condição, o abandono, de parte a parte, de tudo aquilo que bloqueia, desmobiliza e torna estéril o diálogo.

Em primeiro lugar, o integrismo. Apesar do avanço do pluralismo na cultura moderna, o integrismo subsis­te, e, nalguns casos, tende a endurecer-se.
O integrismo "cristão" entende que todos os valores deverão ser pen­sados como essencialmente relativos aos valores religiosos; neste sentido, todo o encontro na esfera profana deverá ter em conta a convergência religiosa.
Por sua vez, o integrismo marxista considera todos os valores como essencialmente relativos à esfera sócio-económica, mais precisamente, à acção revolucionária, conduzida pela classe proletária. Assim, nenhum encontro será possível, se não se adopta a praxis como critério de verdade e de valor.

No centro da visão integrista subsiste uma interpretação do indivíduo como sendo totalmente relativo, não tendo, por isso, valor em si mesmo e por si mesmo. O integrismo religioso fará depender a consistência do homem da sua relação com Deus. O integrismo marxista fá-lo-á depender da sua re­lação com a natureza, a sociedade, a classe, o partido. O diálogo será possível quando uns e outros ultrapassarem a posição integrista para assumir uma posição humanista. Uma atitude humanista permitirá o diálogo, porque o humanismo, tanto para os cristãos como para os marxistas, constitui um ponto essencial de referência[51].

Em segundo lugar, os preconceitos.
Marx era contra os preconceitos porque na medida em que estes funcionam as análises não serão científicas. Preconceito e ciência, excluem-se.
Na linha do diálogo, são os preconceitos a força que mais desmobiliza e mais afasta uns dos outros. É que o diálogo não é uma simples relação de forças. Quando autêntico, implica uma passagem da desconfiança à confiança; exige, por isso, uma atitude humana. Em princípio, o diálogo é possível entre todos os homens; mas a eficácia do diálogo só é possível num clima onde a confiança e a análise tenham vencido a desconfiança e o preconceito.

Em terceiro lugar, a tentação de politizar o diálogo.  Isto acontece quando uns e outros tendem a avaliar o diálogo em termos exclusivamente pragmáticos e imediatos. O momento do diálogo será, por conseguinte, um momento do progresso do poder que cada qual julga exercer. Neste sentido, o diálogo corre o perigo de ser estéril e contraproducente. Não faz avançar o campo das novas relações, e agrava, por outro lado, a desconfiança e o confronto[52].

Em quarto lugar os mal-entendidos.
Uma primeira fonte de mal-entendidos é a identificação da religião com as suas múltiplas falsificações e desvios. É de lamentar que a crítica à religião, tanto a nível filosófico como a nível popular, não estabele­ça uma clara distinção entre a fé religiosa e autêntica e as crenças supers­ticiosas, os desvios do sentimento religioso, os abusos da religião e o obscurantismo. Distinguir para entender, é fundamental. Sem esta distinção o diálogo cairá facilmente em reparos e em discussões apologéticas.

Uma segunda fonte de mal-entendidos reside na ambiguidade dos concei­tos de liberdade, de libertação e de seu contrário, a alienação. Esta ambiguidade radica-se, acima de tudo, no esquecimento da estrutura multi­-dimensional da existência humana como capacidade de verdade e de liberdade.

Uma terceira fonte, e talvez a mais importante, será a própria am­biguidade da expressão "crença em Deus", a qual terá, forçosamente, um sen­tido distinto, conforme é vista por um crente ou por um ateu. A ultrapas­sagem dos mal-entendidos, como necessária plataforma para um diálogo fecun­do, supõe, de ambas as partes, uma crítica correcta, científica, e impõe aos cristãos o testemunho duma fé justificada, isto é, duma fé que respon­da às exigências legítimas da humanidade, cada mais avessa às múltiplas formas de mistificação intelectual, social e moral[53].

Em quinto lugar, o espírito de acusação mútua.
Uma coisa é a interpelação que os marxistas fazem aos cristãos, ou mesmo a denúncia de erros e abusos que os membros da Igreja possam come­ter, outra coisa é acusar por princípio.
A própria Igreja reconhece que "muito aproveitou e aproveita da crí­tica daqueles que a hostilizam e perseguem"[54]. Contudo, o espírito de acusação, pela carga de injustiça e de ressentimento que o pode animar, longe de concorrer para o diálogo, torna-o mais difícil e distante.

22 - O diálogo entre cristãos e marxistas é já um facto.
Basta recordar os encontros de João XXIII e Paulo VI com diri­gentes políticos da União Soviética e outros estados marxistas; os conta­ctos a nível de intelectuais, os círculos de reflexão e de troca de expe­riências aparecidos um pouco por toda a parte. É característico o encontro de marxistas e cristãos, promovido pelo Conselho Mundial das Igrejas em 1968, sendo notória a presença de representantes do chamado Terceiro Mundo.

O diálogo como um facto vem de longe. O nazismo, o fascismo, as lutas económicas e sociais, os contactos quotidianos, a convergência de esforços contra a exploração, obrigaram a dar os primeiros passos.
O crescimento da consciência, do espírito crítico, do sentido da liberdade, da participação e da solidariedade, fazem com que o diálogo se torne uma exigência do tempo novo, tanto a nível dos cidadãos como a nível dos partidos detentores do poder.

O diálogo entre marxistas e cristãos aparece-nos, assim, como sinal dos tempos, um dos muitos a que, tanto crentes como não-crentes, devem estar atentos[55]. O diálogo como sinal, revela, particularmente, o espírito crítico, a sensibilidade personalista e comunitária, o sentido de historicidade, o movimento da secularização, valores estes bem presentes na consciência contemporânea e na aspiração ao aparecimento de uma nova sociedade[56].

O espírito crítico faz com que o homem de hoje recuse verdades à priori, recuse sobretudo uma "fé" como herança, como imposição, ou como condição para viver, recuse os dogmatismos ideológicos, políticos, sociais e religiosos. Consciente da multiplicidade de culturas, ideologias e pro­jectos económicos e políticos, o homem de hoje não aceita abdicar da sua capacidade de pensar e de escolher. A abertura aos outros, que se expri­me no diálogo, é uma expressão positiva do espírito crítico e um factor decisivo na construção de sociedades solidárias.

A sensibilidade personalista faz descobrir, reconhecer e considerar os direitos invioláveis de cada homem e, no caso concreto, o direito de pensar e de escolher. A reciprocidade própria do diálogo brota desta sensibilidade. Ignorá-la seria desconhecer a subjectividade, pondo assim cada homem no perigo de ser tratado como objecto, tornando impossível, deste modo, qualquer diálogo ou encontro.

A sensibilidade comunitária faz lembrar a dimensão social do homem, a sua ralação essencial com os outros e com a sociedade. Subestimá-la, seria reduzir o diálogo ao individualismo, negando, por conseguinte, o próprio diálogo.
O sentido da historicidade da verdade defende o homem da tentação de julgar que já possui toda a verdade, tornando-se, deste modo, dogmático e intolerante. Com efeito, se um dos interlocutores possui toda a verdade, o outro possuirá o erro. Neste sentido, poderá haver monólogo, a prédica, a censura, mas não o diálogo. O sentido da historicidade diz-nos que a verdade não se encontra, em concreto, em estado puro.
A atitude de abertura e de procura em comum, própria do diálogo, en­riquece a verdade, liberta o homem e as situações concretas.
O movimento de secularização, ao mesmo tempo que afirma a autonomia dos valores políticos, económicos, sociais e culturais relativamente à esfera religiosa, torna possível que os homens de diferentes condições religiosas possam efectivamente encontrar-se e dialogar[57]
  
Também o diálogo a nível das tarefas, iniciativas e actuações históricas, é sinal do tempo que vivemos. O carácter cada vez mais vasto e angustiante dos problemas postos à humanidade de hoje, a unificação do mundo, a consciência pluralista, tornam criminosa a discriminação, a rejeição, o não-engaja­mento por motivo de religião. Não se compreende que, num tempo de chamada à responsabilidade universal, porque universal é o problema que afecta o Homem, o poder constituído, em certos espaços do mundo, dificulte, rejeite ou limite a participação dos cristãos nos diversos níveis da vida política, só porque são cristãos. Esta posição além de anacrónica, é altamente prejudicial à unidade, à cooperação e amizade, valores próprios da nova sociedade. Cristãos e marxistas deveriam ultrapassar a contradição que o diminui e enfraquece e encontrar o melhor caminho para uns e outros se situarem correctamente na luta pela libertação do Homem.
Antagónica deveria ser a contradição exploradores-explorados e não cristãos-marxistas. Cristianismo e marxismo deveriam assumir as exigências de nosso tempo, não como táctica, mas em virtude dum crescimento e duma ul­trapassagem de posições «sagradas».

23 - Será conveniente lembrar que o diálogo, inscrito embora "na consciência do homem contemporâneo, não se impõe de modo nenhum, como se fora um movimento fatal. O diálogo, para não ser falseado ou reduzido a uma táctica, necessita da lucidez, coragem e liberdade[58].

Lucidez para distinguir, claramente, o diálogo doutrinal do diálogo operativo. Uma coisa é um encontro para discutir a doutrina, outra é o encontro para estudar as melhores formas de participação e engajamento.

É evidente que o segundo não oferece dificuldades de maior. Os cristãos sentem como exigência da própria fé a prática do engajamento nas diversas ta­refas da reconstrução nacional. E muitos são os cristãos que não duvidam en­gajar-se a nível de estruturas sempre que o serviço do Povo o exige. Este facto prova, por si mesmo, o carácter revolucionário da fé. A mensagem cristã não afasta os homens das tarefas para a construção do mundo, antes os obriga ainda mais[59].

O diálogo doutrinal oferece, com certeza, não pequenas dificuldades. Girardi enuncia três perigos a que chama "pragmatismo", "ideologismo" e "comparativismo"[60].

Por pragmatismo entende a subordinação do diálogo às exigências imedia­tas da acção, sacrificando assim a autonomia da cultura no seu valor e nos seus métodos. Um tal pragmatismo converte o diálogo em instrumento da política, do poder. Uma preocupação pragmática acentuada diminui a liberdade e contribui para a extinção da verdade.

O ideologismo está presente quando, na discussão dos problemas, o pri­mado pertence à ideologia e não à análise científica. Uma tal discussão leva necessariamente a conclusões onde aparece reforçada a posição ideológica e não a análise científica.

Este perigo dificulta radicalmente o diálogo entre cristãos e marxistas. Porque, se é fácil encontrarem-se na análise científica, não o é no que toca a posições ideológicas. A verdade do diálogo exige que o marxista seja inte­gralmente marxista e o cristão integralmente cristão. Engajado na política, o cristão não pode, sem se contradizer a si mesmo, aderir a sistemas ideoló­gicos ou políticos que se oponham radicalmente, ou então nos pontos essen­ciais, à sua fé e à sua concepção do homem[61]. Mas o ser integral não é o mesmo que ser integrista e praticar um monolitismo que torne impossível qualquer aproximação.

O diálogo implica uma confrontação de posições em ordem a uma compreen­são mútua, mais profunda e mais rica. Será, portanto, a descoberta e a cria­ção o objectivo da confrontação e não propriamente a comparação de posições adquiridas. Quando o diálogo não ultrapassa este primeiro momento o compa­rativismo surge como um factor desmobilizador, e com ele o dogmatismo e a esterilidade.

24 - Na situação concreta, própria de Moçambique, há caminhos que parecem viáveis, e até oportunos e necessários.
A revolução não se inspira apenas no marxismo-leninismo mas nas condições concretas em que se desenvolve a luta de classes no país e na experiencia revolucionária do Povo moçambicano[62].
Também os caminhos do diálogo terão de partir do marxismo e do cristia­nismo, e das condições concretas do Povo em luta pela construção duma nova sociedade.

Um primeiro caminho seria tornar cada vez mais clara a opção pelos oprimidos. Poderemos dizer que esta opção está feita, tanto pelos marxistas como pelos crentes, se de facto uns e outros assumiram a libertação integral do homem como dever permanente e tarefa inadiável. Certamente que um breve exame sobre as situações criadas pele colonialismo nos obriga a descobrir um Povo carregado de opressões, que por sua vez geram outras, mesmo que o tempo seja diferente. Apesar da Independência e do esforço desenvolvido ao longo destes anos de Revolução, o Povo continua a sofrer de graves e desumanas opressões. Fazer a escolha pelos oprimidos é fazer escolha pelo Povo contra a exploração que o oprime. É reconhecer a mão de Deus nos acontecimentos que periodicamente «depõem dos tronos os poderosos e elevam os humildes, que expulsam os ricos de mãos vazias e saciam de bens os famintos» (Luc.1,52). Num diálogo justo e correcto, esta escolha poderá tornar-se mais clara e mais aceite, evitando, por um lado, preconceitos e acusações inúteis, e provocando, por outro, atitudes e comportamentos verdadeiramente libertadores.

25 - Um segundo caminho, poderia inscrever-se no reconhecimento mútuo dos valores que animam tanto a revolução como a religião.
Negar à revolução qualquer valor é continuar a tese do «satanismo». Segundo os con­servadores da era da Restauração, a revolução é, ao mesmo tempo, satânica e providencial. Satânica enquanto nega a ordem estabelecida por Deus; providencial enquanto abre, messianicamente, uma nova etapa em nome das lições aprendidas. Desde o ângulo da responsabilidade do homem, a revolução é sem­pre um mal, pois que significa, antes de tudo, uma rebelião contra a ordem divina[63]. É possível que, no tempo novo, ainda haja alguém com esta sen­sibilidade doentia. Contudo, o contrário também pode existir. A revolução não seria apenas um valor, mas um valor absoluto. Falar, por conseguinte, de ambiguidades, de limites, de fracassos ou desvios da revolução, seria adoptar uma atitude reaccionária e ofensiva. Excluímos o pessimismo doentio e o optimismo ingénuo, para afirmar que na revolução há valores e, ao mesmo tempo, ambiguidades.

São valores, o sentido da dignidade do homem, da participação e da so­lidariedade; o sentido da igualdade, da socialização, do poder popular; o sentido do trabalho, da produção, do bem-estar colectivo; o sentido da uni­dade, da personalidade cultural, do internacionalismo; o sentido da justiça social, da colectividade, da cooperação; o sentido da luta contra a explora­ção, a humilhação e a corrupção; o sentido da emancipação do homem moçambi­cano, da mulher, do Povo.

As ambiguidades nascem da ambiguidade do próprio homem, das estruturas, dos métodos e objectivos. A pior de todas é transfor­mar, num dado momento, o homem concreto em instrumento do poder, da ideolo­gia ou da própria revolução. E sempre que o homem histórico - digo históri­co por oposição ao abstracto - passa de sujeito a objecto, a revolução tor­nou-se, não só dramaticamente ambígua, mas desumana e contraditória.

Um dos sintomas claros das ambiguidades da revolução, será verificar que o pro­cesso avança à base da força, mais que à base da persuasão e do direito. O reconhecimento dos valores não impede o conhecimento das ambiguidades. Num clima de diálogo, os valores poderão crescer e as ambiguidades diminuir. Mas o reconhecimento terá que ser mútuo. Só assim o diálogo exprimirá a recipro­cidade que lhe é própria. Negar, por conseguinte, à religião, qualquer valor, é não querer o diálogo; é, sobretudo, continuar a tese que considera a re­ligião unicamente como alienação e suporte da classe burguesa. É verdade que, no tempo de Marx, a prática e a teoria apresentavam um tipo de religião cuja funcionalidade quase se esgotava nos apoios à ordem estabelecida. Desse modo, era fácil encontrar a religião do lado do poder, naquela altura nas mãos da burguesia, e por isso, do lado do conservantismo e da reacção, contra os movimentos revolucionários[64]. Todavia, continuar alguém a julgar a religião, concretamente o cristianismo, com os critérios de ontem, desconhecendo as transformações operadas ao longo dos tempos, os aconteci­mentos decisivos para a vida das Igrejas, como são o Concílio Vaticano II, os Sínodos, o movimento ecuménico, a renovação teológica e pastoral, as atitudes novas tanto dos últimos Papas como dos cristãos, isolados ou em grupos, a acção do Conselho Mundial das Igrejas, é colocar-se numa atitude negativa manifestamente reaccionária e, além disso, desonesta.

Pretender, por outro lado, tornar útil a fé cristã, exigindo dela respostas concretas aos problemas da sociedade, é afirmar aquilo que pre­tendemos combater: o clericalismo, a fé como ideologia e como sistema de pensamento. É certo que a tentação de utilizar a fé para justificar as ordens estabelecidas é grande. Mas utilizá-la é pervertê-la, é criar posições religiosas depravadas. Reconhecendo as ambiguidades de ontem e de hoje, forçoso se torna reconhecer igualmente os valores, se queremos um diálogo honesto. O Concílio afirma que, na história humana, o Evangelho foi fermento de liberdade e de progresso, de fraternidade, de unidade e de paz[65]. A liberdade e o progresso, a fraternidade e a paz que a revolução de hoje defende, são valores de raiz evangélica.

Ao proclamar, num mundo de homens-objectos, a dignidade da pessoa humana, o Evangelho proclama, ao mesmo tempo, os valores que lhe são ine­rentes. Como diz Garaudy, a fé cristã trouxe à civilização o sentimento de que o homem é plenamente responsável pela sua história e que não tem de obedecer a nenhuma fatalidade. Através desta concepção de liberdade, entendida como participação na criação contínua do Homem pelo Homem, o cristianismo rompeu com a concepção grega do Homem[66] e abriu caminho à civilização da liberdade.

Uma análise correcta não permitiria afirmar que a religião é apenas o "reflexo da miséria" e por conseguinte, alienação. Afirmaria também que é "protesto contra a miséria" e como tal, força mobilizadora. Se Lenine ­acentuou o primeiro aspecto e desprezou o segundo, fê-lo dentro das con­dições em que viveu. Não se pode esquecer que a Igreja Ortodoxa, do tempo de Lenine, era herdeira da Igreja bizantina, isto é, de uma Igreja em que o poder temporal e o poder espiritual estavam demasiadamente unidos nas vésperas da Revolução de Outubro (1917), a Igreja Ortodoxa aparecia como parte do Estado, e como tal, instrumento da política. Lenine tinha, por ­conseguinte, diante de si, uma realidade sociológica muito forte. Não admi­ra que venha a escolher o caminho do combate em vez do diálogo.

Mas os tempos e as circunstâncias mudaram. Muitos são hoje os marxistas que vêem na religião o seu aspecto de protesto. Por outro lado as revo­luções não se repetem e tentar repeti-las é esquerdismo infantil.

Togliati afirmava em 63: "Não é verdade que a consciência religiosa seja obstáculo à compreensão e ao cumprimento dos deveres e das perspectivas da construção do socialismo. Penso, pelo contrário, que a aspiração de uma sociedade socialista, não só pode abrir caminho no coração de homens dotados de fé religiosa, mas que uma tal aspiração pode encontrar na própria consciência religiosa, um estimulante, quando essa consciência posta frente a frente com os problemas dramáticos do mundo contemporâneo. A consciência re­ligiosa não é necessariamente um obstáculo à edificação do socialismo, isto é, duma sociedade que torne possível a realização do homem total[67].

E conclui Garaudy: "o que interessa a um marxista é o que está em vias de nascer e de se desenvolver; ora o que  está em vias de crescer não são os integristas, mas, pelo contrário, os que vêem na religião, não um princípio de ordem mas um princípio de liberdade, os que vivem a sua fé como revolta e não como resignação"[68]. De facto, o Deus da Bíblia revela-se através da História e aparece como força que liberta. O Deus de Jesus Cristo está presente na revolução, mais do que na ordem estabelecida quando esta é opressiva.

26 - Um terceiro caminho estaria na mútua interpelação.
A revolução poderia interpelar a fé e esta, por sua vez, a revo­lução. Haveria assim, uma fecundação mútua em ordem à autenticidade. A revolução com o seu mordente de historicidade e de imanência, lem­braria à fé o perigo do espiritualismo vazio de sentido humano e o conse­quente absentismo histórico. A fé, com a sua exigência de ultrapassagem, na busca permanente do novo céu e da nova terra (2Ped 3,13), faria ver à revo­lução o perigo do imanentismo desmobilizador e reaccionário, da organização estabilizadora, do poder constituído com base na força política, social, económica e militar.

A revolução, com o seu princípio da praxis, diria à fé que a prática é essencial à vida cristã e que praticar é, em definitivo, amar o homem à semelhança de Jesus Cristo; diria ainda que a fé sem obras é morta[69] e, além de tudo, motivo de escândalo para os homens que sofrem. A fé, com o sentido que possui da vocação plena do homem, avisaria a revolução da ilegi­timidade de todo e qualquer processo que, porventura, transformasse o Homem  em objecto, ou fizesse da eficácia o critério último da acção. A revolução, com o seu projecto de sociedade sem exploradores nem explorados, lembraria à fé o dever de produzir na história homens solidários, unidos na igualda­de de direitos e deveres, e na participação equitativa dos bens, na esperança dum mundo mais humano e fraterno.

A fé, como pergunta e resposta, diria à revolução que não é lícito ma­nipular a consciência do homem, gerando assim novos alienados, incapazes, por isso, de aceitar uma pergunta ou de dar uma resposta.
A revolução diria, por sua vez, à fé cristã, que não é difícil fazer da religião um poder, uma ideologia, criando, deste modo, homens submissos, e por conseguinte, incapazes de perguntar ou responder.
A fé tornaria presente na linguagem da revolução modos de dizer que possam concorrer para a eficaz libertação e crescimento do homem.
A revolução obrigaria a fé a purificar-se de linguagens e culturas anacrónicas, susceptíveis de alienar, em vez de criar espaços de liberdade.

27 - Um quarto caminho estaria no compromisso de cristãos e marxistas no projecto de construção duma sociedade verdadeiramente liberta da exploração do homem pelo homem.

A Igreja, rejeitando embora o ateísmo, afirma que todos os homens, crentes e não crentes, devem colaborar na edificação deste mundo, no qual vivem em comum, o que, evidentemente, não é possível sem diálogo leal e prudente[70].

Na revolução em curso, cristãos e marxistas, crentes e não crentes, cooperam já a diversos níveis. Engajar-se nas tarefas da reconstrução nacio­nal, como sejam as tarefas da educação e cultura, saúde, produção, admi­nistração pública, defesa e segurança, não parece constituir problema. Enga­jar-se, porém, nas estruturas do Partido, poderá levantar, no que toca à liberdade de consciência, interrogações e dificuldades.

Neste sentido, será oportuno formular algumas observações:
- ao poder público não é lícito antepor os seus próprios interesses (políticos, ideológicos) ao bem comum (GS 75);
- no partido não é lícito usar de certos meios de pressão para impor uma ideologia ou o ateísmo (GS 20);
- os crentes, ao entrarem num partido, deverão fazê-lo com plena lucidez, conhecendo bem os valores e contravalores que o animam, e sabendo, além disso, distinguir os movimentos históricos - como é a revolução - das ideologias que os inspiram (OA 30);
- os crentes ao aceitarem um partido como força dirigente, nem por isso aderem à ideologia que lhe está subjacente, sobretudo quando esta negue qualquer transcendência ao Homem e à sua história pessoal e colectiva, quando absorva a liberdade individual na colectividade, ou quando, ao contrário,  julgando exaltar a liberdade, a subtrai a toda a limitação, estimulando-a com a busca exclusiva do interesse e do poder, e considerando as solidariedades sociais como consequências, mais ou menos automáticas, das iniciativas individuais e não como um fim e um critério mais alto do valor e da organização social (OA 26);

- no cristão, o direito a participar na reconstrução nacional, na defesa do país e da revolução (art.30º), implica, certamente, o direito ao ris­co. Isto quer dizer que nenhum cristão poderá dispensar-se dos seus deveres de cidadão, invocando os riscos que possivelmente a sua fé possa vir a cor­rer. O risco é algo inerente à vida humana, mais ainda quando se trata de construir um projecto social, sujeito a impurezas e desvios, como todos os projectos humanos. O risco é um direito e um dever. Cada um deverá, no en­tanto, assumi-lo de um modo responsável, tendo em conta algumas condições elementares como são a consciência clara dos perigos mais inerente e ao ca­minho que se escolhe e a capacidade efectiva que se tem para serenamente os superar.

28 - Um quinto caminho poderia surgir da unidade na luta contra a  exploração do homem pelo homem, contra o colonialismo, o im­perialismo e o racismo, contra as estruturas, sistemas e regimes que negam ou oprimem o direito dos povos à própria autonomia e independência.

A República Popular de Moçambique apoia e é solidária com a luta dos povos pela sua libertação nacional (art.21). Crentes e não crentes, em ra­zão da justiça, não podem seguir uma linha diferente. Com efeito, o direito dos povos à sua autonomia e independência, brota da justiça e da inata dignidade, própria de cada povo, e não de concessões ou de acordos políticos. Os governos dominantes não fundam o direito dum povo à sua autonomia e independência total.

Não há qualquer razão que justifique o domínio dum povo sobre outro povo. Não há qualquer competência que permita a um povo dar, ou não dar a independência a outro povo. Não há comunidade nacional alguma que deseje estar submetida ao domínio de outro. A convicção de que os homens são, por dignidade natural, iguais entre si, faz parte da consciência universal. Por isso, as discriminações sociais, a submissão dum povo a outro, o domínio colonial, não encontram hoje qualquer justificação. Todos os povos adquiriram já a sua liberdade, ou estão em vias de a adquirir. Não poderá continuar a haver, no contexto das nações, povos dominados e povos domi­nadores (PP 42-44). E se nos povos dominados surge a consciência dos pró­prios direitos, surge igualmente a obrigação de os exigir (PP 44).

Dai a justiça da luta pela autonomia e independência. Todos os povos que sofrem ainda a dominação colonial, a opressão racista, têm o direito e o dever de lutar para se libertarem e se constituírem senhores do próprio destino. Todavia, se a luta pela libertação é justa, podem não ser justos os meios que eventualmente venham a ser usados. O recurso às armas só é permitido como última possibilidade. Enquanto houver uma possibilidade de solução pacífica, as armas não poderão ser usadas porque as armas põem em causa a vida e a vida é um valor fundamental e sagrado. Desonram, além disso, a consciência dos homens. Já Ma­quiavel dizia que os homens deverão lutar com as leis e não com a força, como fazem os animais[71].

O crescimento da dignidade do homem e da solidariedade entre os povos recusa cada vez mais o uso das armas, exigindo o uso da política, na solução dos diversos diferendos. Por outro lado, forçoso é reconhecer que a depravação no crescimento da humanidade fez das armas uma fonte de lucro. Infelizmente, a corrida aos armamentos é, em definitivo, uma corrida ao lucro e ao domínio sobre o mundo. Assim se explica a provocação e manutenção de certas guerras, aqui e além. Os direitos legítimos dos povos não contam efectivamente. Servem apenas para iludir a opinião 'pública e camuflar interesses ocultos e quase sempre criminosos. É sintomático que as ajudas dos povos opulentos aos povos oprimidos, se traduzam mais em armas que em pão e liberdade.

Por isso, uma coisa é utilizar a força militar para defender e impor a justiça, outra coisa é querer o triunfo de interesses invocando, tacti­camente, o bem do Povo. Neste caso, a guerra seria uma nova forma de domínio e a opressão tornar-se-ia mais cruel e criminosa.

Crentes e não-crentes dão as mãos na luta justa pela libertação dos Povos oprimidos. Mas não será legítimo cooperar quando os objectivos da luta apareçam intrinsecamente viciados por interesses desonestos e ocultos, ou quando na luta se usem meios ou métodos perversos ou desumanos. Os massacres, os bombardeamentos indiscriminados, as retaliações contra populações indefe­sas ou refugiados, a sujeição do povo através de métodos terroristas, as tor­turas e sevicias, a violência psicológica criando situações de pânico, são actos que a consciência da humanidade condena como crimes e, como tais, nenhum poder e nenhuma causa, por mais justa que seja, os podem usar. Na guerra, como acção conduzida por homens, há princ1pdcs universais de direito e de moral que ninguém poderá violar sob pena de regresso ~ barbárie e à crueldade selvagem.

29 - O tempo, que vivemos ê tempo verdadeiramente novo. Exige de to­dos e de cada um uma mentalidade e atitudes novas.
É tempo de purificação. Impõe a todos e a cada uma critica e a au­to-critica numa linha de honestidade e numa busca sincera de libertação.
É tempo de interpelação. O ateísmo provoca de um modo profundo e de­cisivo os crentes, particularmente os cristãos. Por sua vez, os crentes, quando crentes de verdade, podem e devem provocar o ateísmo e a revolução que o difunde. Esta provocação mútua é salutar e, bem assumida, fará avan­çar a vida, a liberdade, a alegria de ser homem.
É tempo de revolução, e revolução quer dizer transformação das estru­turas, do estilo de vida, dos modelos sociais; transformação do Homem e da sua relação com o mundo.

O Evangelho, onde quer que seja anunciado, traz dentro de si uma exigência profunda de conversão, de Páscoa, de Mundo Novo. A conversão não se limita às boas intenções ou às simples emendas de vida. Conversão é mu­dança, é vida nova. Mudança que atinge não só o coração, mas as relações humanas e as estruturas onde a vida acontece, como dom e como exigência individual e colectiva.

A Páscoa não é apenas um acontecimento histórico de ontem. É aconte­cimento de hoje. É passagem da morte à vida; da injustiça à justiça; da mentira à verdade, da opressão à liberdade. Páscoa é vitória do Homem novo e da nova humanidade; Páscoa é caminho para o triunfo definitivo do vida sobre a morte.

O Mundo Novo não é apenas uma esperança. É já uma presença e uma certeza. Esperar um novo céu e uma nova terra, é já construí-los, é já travar uma luta entre o novo e o velho. O novo que tem o nome de justiça, de comunhão, de liber­dade, de paz, de alegria e dignidade humana (G.S. 39); o velho que tem o nome de mentira, de ambição, de prepotência e opressão.

Assim, a novidade de Cristo é um acontecimento contínuo, uma recriação jamais terminada. O Evangelho é um apelo e uma exigência de revolução. Transformar o mundo para que os homens sejam mais homens, mais irmãos, mais solidários, mais vivos na vida que se faz Dom para que todos e cada um tenham vida em abundância (Jo 10,19).

Tempo de revolução, é tempo de Evangelho!

NATAL DE 1978
MANUEL, BISPO DE NAMPULA




[1] Relatório do Comité Central ao 32 Congresso da FRELIMO, Doc.3º Cong. p.161.
[2] Ibidem, cap. II, pag.77.
[3] Idem
[4] Curso básico de comunismo científico, I Vol., Ed. Avante, Lisboa 1975, p. 27.
[5] Ibidem, p. 91s.
[6] Plácido Diez e Ricardo Herrero-velar­de, Revolução marxista e progresso cris­tão, Porto, p. 63.
[7] Vaticano II, GS 20.
[8] Vaticano II, GS  4.
[9] Vaticano II, GS  54.
[10] Vaticano II, GS 56.
[11] Vaticano II, GS 36.
[12] Vaticano II, GS 41.
[13] Vaticano II, GS 56.
[14] Vaticano II, GS 36.
[15] Anselmo Borges in Igreja e Missão, revista missionária de cultura e actualidades, Cucujães, Julho 1978, p. 178
[16] Reyes Mate, El ateísmo, un problema politico, Ed. Sigueme, Salamanca, 1973, pp. 91s.
[17] Karl Marx, Friedrich Engels, Sobre a Religião, Ed.70, Lisboa, 1976, p.46.
[18] Ibidem, p. 46.
[19] El ateísmo contemporaneo, Vol.III, vários autores, Ed.Cristandade, Madrid, 1971, p. 546.
[20] Ibidem, p. 547.
[21] Idem.
[22] Doc. 3º Cong.Frelimo, Programa e Estatu­tos, p.13.
[23] 2ª Conf. Nacional do Trabalho Ideológico, Beira, 5-10 de Julho 1978, pp. 102s.
[24] Ibidem, p. 65.
[25] Ibidem, p.68.
[26] Cit. em Gonzalez Ruiz, Marxismo e Cris­tianismo frente aI Hombre Nuevo, Ed.Ma­rova, Madrid, 1972, p. 20.
[27] João XXIII, Pacem in Terris, 79.
[28] Ibidem, 35.
[29] Vaticano II, Dignitatis Humanae,  3 e 4.
[30] Ibidem, 4.
[31] Ibidem, 5, 6 e 7.
[32] Idem.
[33] Idem.
[34]J.C.Murray e outros, La liberté religieuse, Ed.Centurion, Paris, p. 58s.
[35] R.Hechel-A.Manaranche, Politica y Fé, Ed. Sigueme, Salamanca 1973, p. 59.
[36]  Ibidem, p.62
[37] Vaticano II, GS 76, 19 e 21.
[38] Idem.
[39] Vaticano II, GS 76, 19, 21.
[40] Is 58, 5-8.
[41] Paulo VI, Evangelii Nuntiandi, 21.
[42] Vaticano II, GS 19.
[43] Revista Il Regno, 13/77- Doc., Ano XXII.
[44] R. Garudy, Para um diálogo das civilizações, o Ocidente é um incidente, Pub. Dom Quixote, Lisboa 1977, p. 37.
[45]  L. Althusser, Réponse à John Lewis, Paris, 1973, p. 37.
[46] Jean M. Domenach, Le sauvage et l’or­dinateur, Paris, 1976.
[47] Vaticano II, GS 21.
[48] Relatório Com. Central Frelimo ao 3Q Congresso, cap. III, pág. 93.
[49] Paulo VI, Evangelii Nuntiandi,  21
[50] Joseph Comblin, Thêologie de la révo­lution, Ed.Universitaires, 1970, p. 270.
[51] Giulio Girardi, Dialogue et Révolution, Ed. Cerf, Paris, 1969.
[52]  Ibidem, p. 227.
[53] El ateísmo contemporaneo, Vol.III, oc. p. 271.
[54] Vaticano II, GS  44.
[55] Vaticano II, GS  4; 11.
[56] G. Girardi, oc, p. 220.
[57] Ibidem, p. 222.
[58] Ibidem, p. 245.
[59] Vaticano II, GS 34.
[60] Girardi, oc, p.259.
[61] Paulo VI, Octagesima Advenians,  26.
[62] ReIatório do Comité Central da Frelimo ao 3Q Congresso, cap.III, p. 92.
[63] Reys Mate, oc.
[64] Reys Mate, oc.
[65] Vaticano II, Ad Gentes 8.
[66] R.Gararudy, Fala, Ed Inova, Porto, 1970, p.133.
[67] Ibidem, p.146.
[68] Ibidem, p.147.
[69] Cf Isaías, Oseias, Amós e Apóstolo Tiago.
[70] Vaticano II, GS 21.
[71] N. Maquiavel, O Principe, Ed Europa-América, p.93.

Sem comentários:

Enviar um comentário