DAS MISSÕES À IGREJA LOCAL (1-11-1972)




Comunicação do Bispo de Nampula, Manuel Vieira Pinto,
na abertura do III Curso de Adaptação Missionária.
Centro Catequético do Anchilo, 1 de Novembro de 1972



É para mim motivo de alegria e de esperança dar início ao terceiro curso da adaptação missionária, tanto mais que o número dos participantes é bastante significativo.


O curso será, certamente, para todos vós, um tempo salutar de convivência fraterna, de reflexão e de estudo, principalmente da língua e dos costumes do povo a quem somos enviados, e um tempo de amadurecimento espiritual pela oração e pela celebração da Palavra e da Eucaristia. O vosso curso, de seis meses, poderá, à primeira vista, parecer um prejuízo de tempo e de energias; mas, a experiência e a convicção dizem-nos que vale a pena este esforço e que, sem ele, os missionários
recém-chegados seriam para o povo muito mais estranhos e desadaptados.

Nesta reunião de começo, gostaria de reflectir convosco sobre as grandes exigências da evangelização aqui e hoje, as interpelações que nos são feitas pelo Espírito e pela história e sobre as tendências de fundo que nos fazem rever a missão do futuro. Por falta de tempo, lembrarei apenas duas tendências de fundo e uma interpelação das muitas que são feitas aos missionários, nesta hora nova.

1ª - Parece-nos que a primeira tendência a ter em conta na actividade missionária, poderá ser enunciada deste modo: das missões a Igreja local.

Que entendemos por missões? Chamam-se comummente missões, diz o Concílio, as iniciativas peculiares com as quais os missionários realizam o múnus de evangelizar e de implantar a Igreja entre os povos ou grupos humanos que ainda não crêem em Cristo (AG 6). As missões, assim entendidas, não são fins da actividade missionária, nem instrumentos duma cultura ou duma política, nem obras de um ou de outro instituto, mas "iniciativas peculiares” ao serviço da evangelização e da edificação da Igreja local; por conseguinte, serão tanto mais autênticas, quanto mais concorrerem para implantar, ou seja, enraizar nos povos ou grupos humanos, a Igreja autóctone.

E que significa uma Igreja autóctone? 
A obra de implantação da Igreja num determinado grupo humano atinge o seu objectivo quando a comunidade dos fiéis, já radicada na vida social e adaptada à cultura local, goza duma certa estabilidade e firmeza: com recursos próprios, embora insuficientes de clero local, de religiosas e de leigos; e possui já os ministérios e instituições necessárias para exprimir e desenvolver a vida do povo de Deus sob a orientação do próprio Bispo. (AG19).

Dessa descrição conciliar, vemos que a Igreja local é uma comunidade enraizada no meio que lhe é próprio, e a caminho duma tríplice autonomia: de quadros e instituições, de recursos económicos e de expressão.

Para uma progressiva e eficaz autonomia de quadros as missões devem suscitar nas comunidades os ministérios necessários (AG 15) e entregar pouco a pouco as responsabilidades directivas aos missionários locais.
A Igreja lança, efectivamente, raízes mais vigorosas em cada agrupamento humano; quando as várias comunidades dos fiéis tiram, de entre os seus membros, os próprios ministros da salvação na ordem dos Bispos, dos Presbíteros e dos Diáconos, e, de tal sorte, que as jovens Igrejas adquiram, pouco a pouco, com o seu clero, uma atmosfera diocesana (AG 16). Por outro lado, a Igreja não está verdadeiramente fundada, não vive plenamente, nem é sinal perfeito de Cristo entre os homens, se, com a hierarquia, não existe e não trabalha um 1aicado autêntico (AG 21).

A formação de quadros a nível diocesano é, por conseguinte, uma exigência fundamental da actividade missionária e um sinal da autenticidade da Igreja local. Não podem os missionários descurar o recrutamento, a formação e o lançamento dos responsáveis - presbíteros e leigos - sob pena de traírem a Igreja e de a condenarem à morte num dado agrupamento humano. A preocupação crescente das missões pelo seminário, pelos catequistas e anciãos é, sem dúvida, um bom sintoma, e além de tudo um motivo de esperança.

Quanto às instituições - que às vezes tantos recursos absorvem - elas devem traduzir, por um lado, a vida daqueles a quem servem e, por outro, o interesse e a corresponsabilidade de todos. Doutro modo correrão o risco de serem estranhas ao povo e de aparecerem como um sinal de prestígio e do domínio dos missionários.
A autonomia das instituições, particularmente no aspecto da gestão, impõe a todas as missões uma profunda renovação de mentalidade e de métodos, e um sincero respeito pelos direitos e valores do povo a quem anunciamos a Boa Nova.

A autonomia financeira é também um sinal da autenticidade e da maturidade da comunidade cristã. O fruto normal duma verdadeira promoção humana e cristã, e, como tal, não deixa de pôr à actividade missionária sérias questões.
Urge, com efeito, abandonar aquele tipo de assistência que mantém o povo numa situação de menoridade e o torna incapaz de participar na edificação da Igreja comum. 
No aspecto económico, não se pode continuar a fazer tudo a partir do missionário. Tal método, além de traduzir um paternalismo ultrapassado, faria da comunidade um rebanho mais interessado nas pastagens materiais do que na Boa Nova do pastor.

Dadas as circunstâncias históricas, económicas, sociais e religiosas dos nossos cristãos, sabemos que o caminho de autonomia financeira é moroso e difícil; não podemos, no entanto, descansar, se queremos uma Igreja radicada e adulta. “A comunidade cristã deve, desde o principio, constituir-se de tal maneira que, tanto quanto possível, possa providenciar por si mesma às suas necessidades" (AG 15).

Autonomia no plano da expressão da fé é, sem dúvida, a mais delicada e a mais íntima. Trata-se de libertar as comunidades daquelas formas de pensamento que, por serem importadas, não traduzem nem a cultura do povo a quem foi anunciado o Evangelho, nem o mistério de Cristo, Senhor de todas as coisas (Ef 1, 10). 
Para além deste aspecto negativo que alguns apelidam de "descolonização ideo1ógica”, a
autonomia de expressão implica um esforço conjugado do vértice e da base das comunidades, no sentido de encontrar as formas que permitam a Igreja local exprimir-se autenticamente, tanto na teologia e na moral, como na liturgia e compromisso com o mundo.

A semente que é a Palavra de Deus germinando em terra boa, aspira a seiva, transforma-a e assimila-a para dar, finalmente, fruto. As novas Igrejas recebem dos costumes e das tradições dos seus povos, da sabedoria e da doutrina, das artes e das disciplinas, tudo aquilo que pode contribuir para confessar a glória do Criador, ilustrar a graça do Salvador e ordenar devidamente a vida cristã (AG 22).

Respeitando a unidade da fé, do culto e da obediência, a Igreja local deverá buscar a sua expressão original. Só assim lançará raízes profundas no meio ambiente e se tornará sinal de salvação integral. Isto impõe ao missionário o dever de reflectir constantemente, e sobretudo o
dever de amar seriamente o povo que o Senhor lhe confiou.

Promover amplamente esta tríplice autonomia é formar comunidades vivas e adultas na fé, na liturgia, na caridade, na actividade cívica e apostólica e nos ministérios (AG 19); é construir em
profundidade a Igreja local. Teremos de rever lealmente e sem preconceitos a nossa maneira de pensar e de agir, dispostos a aceitar o preço que for necessário para que nas missões nasça e cresça a Igreja local.

2ª - A segunda tendência está implícita na primeira e poderá ser assim enunciada: das cristandades às comunidades. 

Certamente que o tempo das cristandades passou. Já não é possível uma evangelização centrada sobre o número de baptismos e servida por fortes estruturas. Importa escutar o que o Espírito diz, hoje, às suas Igrejas (Ap 1, 11).

A actividade missionária, se é genuína, deverá fazer nascer e crescer comunidades que vivam e manifestem a comunhão activa e responsável, o espírito de serviço fraterno, o testemunho do mistério de Cristo. "0s missionários suscitem tais comunidades de fiéis, as quais, vivendo dignamente a vocação que receberam, exerçam as funções sacerdotais, profética e régia”, e possam, “desde modo, tornar-se, no meio do mundo, um sinal da presença de Deus" (AG 15).

A actividade missionária atinge, na verdade, o seu objectivo quando congrega os homens em Cristo e faz deles, pela acção do Espírito, uma comunidade capaz de exercer a profecia, celebrar o mistério pascal e de testemunhar, contra todas as formas de escravidão, a liberdade própria dos filhos de Deus.
Isto obriga, possivelmente, a um novo estilo de evangelização e a uma nova forma de presença no meio do povo.
Terá chegado o tempo das missões de pequenas estruturas, mais orientadas para o crescimento do povo, tanto a nível a promoção como da evangelização e da comunhão fraterna, e mais pensadas e queridas por todos? Terá chegado o tempo das comunidades mais fundadas na amizade, na celebração da Palavra e da Eucaristia, no compromisso apostólico e na
corresponsabilidade? O tempo dos catecumenados adultos, mais fundados no respeito pelos homens e pelas culturas, na amizade fraterna, na partilha de bens, na liberdade e na fé? Terá chegado o tempo de um maior diálogo entre os missionários e o povo, e de uma comunhão fraterna mais indiscutível e mais comprometida?

Os contactos com as equipas missionárias, com os conselhos de missão, e com os anciãos das comunidades, dizem-me que vivemos uma hora nova na missionação. Conscientes de força de Deus e do esforço já realizado pelos missionários, ensaiemos os novos caminhos que o Espírito
nos oferece.

3. Lembremos, por fim, uma das interpelações feitas à nossa actividade missionária.
Como ensina o Concilio, "o Povo de Deus esforça-se por descobrir nos acontecimentos, nas exigências, nas aspirações do nosso tempo, quais sejam os verdadeiros sinais da presença ou dos desígnios de Deus" (GS 11). Hoje a missão como instrumento de salvação integral do homem é
interpelada particularmente pelas forças que pretendem libertar os oprimidos.

O crescimento integral do homem e dos povos é um direito e um dever, e corresponde à vontade de Deus. Segundo o Evangelho que proclamamos, não há, segundo Deus, raças eleitas e raças condenadas; não pode haver povos oprimidos e povos opressores. Todos os homens de
qualquer raça ou cultura, são chamados a viver dignamente como homens - a vida é uma vocação - e a conviver como filhos de Deus e irmãos entre si; todos os povos têm direito a partilhar, equitativamente, nos bens da terra, e a participar, ordenadamente, na construção da história. Por isso, o desenvolvimento integral corresponde ao amor de Deus por todos os homens e é fonte de alegria e convivência fraterna entre os povos. Mas, se no passado decénio., "desenvolvimento" era sinónimo de "ter mais", hoje aparece como sinónimo de libertação. Interessa, sobretudo, libertar-se e libertar para "ser mais".

Deste fenómeno resulta, para as missões, um duplo imperativo: anunciar o Evangelho, sem omitir ou calar a sua força libertadora, e edificar uma Igreja que apareça, indiscutivelmente, como sinal e causa da liberdade em Cristo. Qualquer actividade missionária que, de algum modo, alienasse o povo - e não é tão difícil como parece se pensarmos na alienação cultural e psicológica tão frequentes entre nós - seria um pecado contra a justiça e contra o amor; provocaria na alma do povo a rejeição do Evangelho e aumentaria, sem dúvida, as situações de violência. 

Por sua vez, uma Igreja alienada ou alienante seria um escândalo e fonte de escândalos. Posta por Deus no meio dos homens como "instrumento de redenção universal” e como sinal da liberdade que o Cristo Senhor nos mereceu, a Igreja, se de algum modo alienasse, atrairia, necessariamente, sobre si a ira de Deus e dos homens.

Ao pensar em tantos dos nossos cristãos dominados ainda pelo medo e não raras vezes com uma fé alheia à teologia, e sem uma consciência capaz de optar e de assumir responsabilidade, pergunto-me se, na verdade, todos os métodos missionários estão correctos, se todas as estruturas promovem humana e cristamente, se o Evangelho ensinado é "fermento de liberdade e de progresso" (AG 8), ou instrumento de opressão.

Perante os movimentos que fermentam no mais intimo da alma dos povos e que tarde ou cedo modificarão o comportamento dos nossos cristãos; perante o influxo do Espírito que purifica e impele a Igreja a manifestar-se cada vez mais claramente como um sinal eficaz da verdadeira liberdade do homem e como instrumento da comunhão dos homens com Deus e entre si, as missões devem reflectir, escutar atentamente as interpelações que lhe são feitas, e descobrir, à luz da Palavra de Deus e no diálogo com as comunidades, os métodos e as estruturas mais aptas para anunciar o Evangelho da libertação em Jesus Cristo e para formar homens livres e unidos na justiça, no amor e na paz.

Parece-me que estas tendências, brevissimamente enunciadas, merecem de todos os missionários uma ampla reflexão. Espero que durante o curso as tomeis como tema de estudo e de diálogo. Não queremos julgar seja quem for, nem minimizar o imenso trabalho realizado na diocese pelos missionários de ontem e de hoje. Desejo apenas reflectir em voz alta, procurando encontrar os sinais do Espírito, afim de, todos unidos, edificarmos a Igreja que Deus quer e os homens esperam.

Centro Catequético, 1 de Novembro de 1972

+ Manuel, Bispo de Nampula

Sem comentários:

Enviar um comentário