CARTA AO PRESIDENTE SAMORA MACHEL – 25.09.1986



Tem a data de 25 de Setembro de 1986. No mês seguinte, 20.10.86, Samora morreria no ainda inexplicado acidente de M’Buzini cujos contornos são objecto das mais variadas especulações: “Quem matou Samora?”
(J. Luzia, Agosto 2015)

A confiança que Vossa Excelência nos merece, como Presidente da Frelimo e da República Popular de Moçambique, levou-nos a falar, mais uma vez, das violências que, apesar das denúncias feitas, continuam a humilhar e a destruir o nosso Povo. A guerra continua e com ela a violência arbitrária, os abusos, os exces­sos, as atrocidades e os crimes.

Permita-nos, Senhor Presidente, que lhe falemos concretamente das vio­lências que, neste momento, mais humilham e esmagam o Povo, que mais destroem o país e o enchem de vergonha e de sangue: os massacres, as exe­cuções sumárias, os assassinatos indiscriminados, as crueldades e as torturas.

Massacres
As informações de que dispomos dizem-nos que os massacres, cometi­dos por uns e por outros, não são uma pura invenção, mas sim uma triste e vergonhosa realidade. Sabemos que ao longo destes dez anos de guerra os massacres de pessoas e populações inocentes e indefesas foram muitos, con­tando-se por milhares o número de vítimas: homens, mulheres, velhos e cri­anças, jovens e adolescentes, mães lactentes e mães grávidas.
O Povo pergunta pelas razões destes crimes, destes actos execrandos e pergunta igualmente por quem os comete ou manda cometer. Julgamos que não basta responder com a desculpa de que "a guerra é guerra» ou de que "na guerra não há lei, nem há moral».
O Povo entende que na guerra há uma inelutável irracionalidade e uma brutalidade congénita, o que necessariamente dá origem a abusos e a violên­cias. O Povo entende que a irresponsabilidade, a indisciplina, o descontrolo, o espírito de represália e de vingança podem tornar, num dado momento, os homens armados em homens ferozes, homens sem lei e sem o mínimo res­peito pela vida e pela dignidade a que todo o ser humano tem direito.
Mas bastarão estas razões para explicar os numerosos massacres, cometi­dos contra pessoas indefesas, contra ,populações e o próprio Povo?
Não haverá outras causas, além da lógica diabólica da guerra, além da irresponsabilidade de quem os comete ou manda cometer?

Perguntas fundamentais
O Povo pergunta se na origem destes actos brutais não estará uma ideo­logia de violência e de desprezo absoluto pela vida e pela dignidade da pessoa humana, se não estará uma estratégia de represália e de vingança, uma estratégia de liquidação sistemática do adversário, ainda que potencial ou remota, uma estratégia de extermínio de populações suspeitas, ou possíveis de ser apanhadas por uns ou por outros, se não estará uma política de esma­gamento do adversário, a todo o custo, uma política de posições obstinadas e irredutíveis.

O Povo pergunta se na base destas atrocidades não estará o princípio imoral de que os fins justificam os meios, de que na guerra não há lei e de que a necessidade extrema tudo desculpa, se não estará na origem destes abusos a desagregação, a corrupção dos valores mais elementares da ética, da moral, do direito e da própria cultura. O Povo pergunta se os massacres e outros actos abomináveis são apenas um atentado contra a vida e a digni­dade das pessoas e das populações ou, igualmente, um atentado contra a vida, a dignidade e a alma da própria Nação.


Crueldades
Estas perguntas tornam-se mais insistentes quando tais crimes são cometi­dos com requintes de crueldade e de atraso moral. Muitos, com efeito, têm sido os massacres levados a cabo, não só com desprezo absoluto pela digni­dade e pelos direitos da pessoa humana, particularmente quando frágil e inteiramente indefesa, como são as crianças, os velhos, as mães grávidas ou a amamentar os seus filhos, mas igualmente com ódio manifesto e com requin­tes de terrorismo e de extrema crueldade.
Basta pensar nos massacres de pessoas ou de populações, convocadas e reunidas ao engano, e em seguida encurraladas pelas armas e barbaramente maltratadas e assassinadas.
Basta pensar nos massacres perpetrados a sangue-frio, nas centenas de pessoas retalhadas ou liquidadas a golpes de catana, de baioneta ou de punhal, torturadas ou degoladas, ou então queimadas vivas.

Estas e outras possíveis e vergonhosas crueldades põem de facto em causa a ética, a moral, a civilização e a cultura e levam-nos necessariamente a concluir que tais atrocidades não seriam possíveis se, a par de irracionalidade e brutalidade próprias da guerra, não houvesse um processo de degradação e de corrupção dos valores superiores do Homem e do Povo moçambicano.

O Povo preocupa-se com a sua dignidade e com a sua identidade. E, diante destas infames manifestações de violência, não deixa de se interrogar e de perguntar se, a par das armas que massacram as pessoas, não haverá outras armas que liquidam e destroem a alma, a civilização e a cultura do país.

Execuções
As execuções sumárias constituem uma outra violência degradante e cri­minosa. Tenham a justificação que tiverem, as execuções sumárias são sempre um crime, um atentado à legalidade e uma injúria grave à dignidade e aos direitos de todo o ser humano, ao direito de todo o Homem a que, uma vez acusado, seja examinada a sua causa com equidade, e publicamente, por um tribunal independente e imparcial.

Foram várias as execuções sumárias, ocorridas nestes anos e levadas a cabo por tribunais improvisados e presididos pelas Forças de Defesa e Segurança. Alguns dos julgamentos e das execuções, mercê da crueldade que os caracterizou, transformaram-se num lamentável espectáculo de san­gue.

Seria longa e chocante a enumeração destes vergonhosos espectáculos de sangue. Limitamo-nos a lembrar, como exemplo, as execuções à baioneta, à catana ou à facada, as execuções com torturas e humilhações dos acusados e condenados, as execuções por espancamento, por estrangulamento ou esmagamento do crânio, as execuções por esquartejamento, abrindo, por vezes, a barriga aos executados, arrancando-lhes as vísceras e expondo-as ao público, as execuções com a participação das populações, manipuladas, para isso, até ao ódio e à sede de vingança, obrigadas algumas vezes a injuriar e a esbofetear os executados, obrigatoriamente insepultos e deixados, assim, à mercê dos abutres e das feras.

Estas execuções, à semelhança dos massacres, denunciam a lógica da liquidação impiedosa do inimigo, real ou suposto, a lógica da defesa e segu­rança a todo o custo, a lógica da derrota de uns pelos outros, não olhando a meios nem a imperativos morais.

Somos, por isso, obrigados a lembrar ao Povo moçambicano, e particu­larmente aos seus responsáveis e dirigentes, e às forças em presença que tais execuções corrompem e degradam a cultura e a civilização do país, põem em causa a personalidade e a alma da Nação, abrem caminhos ao crime e ao abuso contra a vida e contra a dignidade, seja de quem for.

Assassinatos
Os assassinatos, a partir sobretudo das áreas afectadas pela guerra ou simplesmente suspeitas, aumentam sempre mais, tornando-se, por isso, na consciência de quem os pratica ou manda praticar, um acontecimento banal. «Matar não é nada», assim se exprime quem comete, assim lamenta o Povo, chorando amargamente esta humilhação.

Parece, com efeito, que a vida das pessoas não é mais um valor que mereça respeito. Não é mais um direito que mereça defesa.
O assassínio tornou-se vulgar. O suicídio, como o infanticídio, parecem seguir o mesmo caminho. A vida, o valor e o sentido da vida estão postos em causa. As pessoas, como as populações, sentem-se inseguras e mais ainda quando veêm pela frente homens armados, sejam de um lado, sejam de outro. Como diz o Povo, «os homens da Renamo desprezam e matam», "os
homens da Frelimo desprezam e matam». Uns e outros não têm pejo em assassinar homens ou mulheres, velhos ou crianças. Uns e outros não sabem mais o que é o respeito pela vida e pela intangível dignidade de todo o ser humano, por isso cometem assassinatos a frio usando muitas vezes métodos cruéis.

Há assassinatos a golpes de baioneta, de faca ou de catana, a golpes de martelo, de machado, de bastão ou chicote. Há assassinatos por decapitação, por esquartejamento ou por tortura até à morte. Há assassinatos pelo fogo ou pelo enterramento das vítimas ainda vivas e obrigadas a abrir a própria cova.
Os assassinatos são um crime de delito comum e constituem, à face da história e da consciência do Povo, uma pesada hipoteca de sangue.
Estes crimes tal como o crime das execuções sumárias e dos massacres abrem caminho à violência generalizada, à degradação dos valores que defendem e promovem a vida, a dignidade e a estabilidade do próprio Povo.

Maus tratos e castigos desumanos
O clima da violência autoriza e engendra mais violência. Os maus tratos e os castigos humilhantes são actos de violência desumana e degradante e como tais não deveriam ter lugar em Moçambique. A Constituição do país, a cultura e a civilização, que lhe são próprias, não deveriam dar lugar a práti­cas desumanas e primitivas, como são as torturas e os castigos humilhantes e cruéis.

Infelizmente estas práticas estão presentes no quotidiano das populações.
Há maus tratos, há medidas político-militares e administrativas que magoam e humilham o povo. Os castigos desumanos são crimes à face da ética mais elementar. São graves atentados contra o melhor da consciência universal dos povos, tão clara e corajosamente manifestada na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção contra a tortura e contra tratamentos ou castigos cruéis, desumanos e degradantes, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de Novembro de 1984.

Hoje não falta quem, por sua conta, mande aplicar o chicote ou determine o castigo que muito bem entender. O «chamboco» tornou-se frequente e irres­ponsável, e igualmente o castigo pela aplicação da pena capital. Qualquer «Comandante» a pode decretar. Qualquer cidadão pode ser executado, não contando para nada a legalidade ou as instâncias competentes. Há mesmo quem diga que, em tempo de guerra, não há tribunais. Há a lei da guerra, a lei da repressão e de eliminação de possíveis ou reais inimigos.

Torturas
As torturas são actos imorais, são graves atentados contra os direitos de todo o homem, contra a honra e a dignidade da Nação. Nada, absolutamente nada, justifica a tortura. Uma causa ou um regime que pretendesse defender ou consolidar o seu direito e a sua justiça, a sua continuidade ou estabilidade, usando tais medidas ou tais práticas, estaria a provocar a sua própria degradação e insegurança e, por conseguinte, a sua própria ruína.
A tortura, os maus tratos, o desprezo sistemático pelo Homem não con­solidam o poder constituído, a sociedade e a Nação, antes os corrompem e põem em perigo grave. Também não concorrem para a unidade, para a reconciliação e paz nacional, antes as dificultam e destroem.

Aspirações do Povo
O Povo real sente na carne e no espírito todas estas violências: os mas­sacres, as execuções sumárias, os assassinatos, os maus tratos e as torturas. Sente a humilhação e a degradação. Sente a perda da sua própria vida e da sua própria alma: a perda da sua personalidade, identidade e cultura.

E sente com uma intensidade ainda maior o profundo desejo de um tempo melhor: um tempo de maior justiça e de maior dignidade; um tempo de um bem-estar maior a todos os níveis: o nível político, económico, admi­nistrativo e militar, o nível espiritual, moral e cultural. O Povo, esmagado por tantas violências e por tantas carências, aspira de facto um tempo de maior justiça e de mais amor. Mas parece não saber donde, efectivamente, poderá surgir esse tempo de maior justiça e de mais amor.

A desilusão é muito grande, e, como dizem os velhos, «o Povo não sabe onde pôr o coração». Nenhuma das forças em presença lhe merece inteira confiança. Uns e outros, mercê das arbitrariedades e injustiças cometidas, humilharam-no, esmagaram-no e desiludiram-no. Mesmo assim, continua a sonhar com um tempo de justiça, de amor e de paz, continua a esperar que alguém o tome a sério e lhe devolva inteiramente a dignidade e a liberdade a que tem indiscutível direito.

Impõe-se portanto o aparecimento de homens que façam uma verda­deira e clara opção pelo Povo, pela sua vida e os seus direitos, pelo seu desenvolvimento e bem-estar, pela sua personalidade e cultura, pela sua autonomia, independência e soberania. Homens que façam sinceramente e corajosamente uma opção pela paz, contra a guerra e contra todas as armas de guerra, uma opção pela vida e contra todas as formas de corrupção, de degradação e destruição, uma opção pelos valores que podem efectivamente salvar o Homem, o Povo, a Nação moçambicana.

Opção por uma política de maior verdade
 Em primeiro lugar, a opção pela verdade.
Urge, de facto, uma política de maior verdade a todos os níveis. A men­tira tão infiltrada nas instituições, no aparelho do Estado e do partido, nos diversos sectores da vida nacional, terá que dar lugar à verdade. A hipocrisia, as meias-verdades, os discursos alienantes, a informação orientada, as diver­sas formas de manipulação e de instrumentalização terão que dar lugar à sin­ceridade, à honestidade, à lealdade, ao respeito pelas consciências, pela inte­ligência, pela liberdade e co-responsabilidade de todos e de cada um dos cidadãos do nosso país. Só pelo cultivo da verdade poderá haver nos diver­sos sectores da vida da Nação, na comunidade política e nas instituições par­tidárias, políticas, sociais, económicas, jurídicas, educacionais e culturais, consciências vivas, inteligências criadoras, liberdades solidárias e responsabi­lizadas, participação generosa e consciente.

A mentira, tenha ela a face que tiver, corrompe e aliena. Uma sociedade, um povo, governado ou orientado por mentiras organizadas ou por ideolo­gias mutiladas ou sedutoras; um povo ameaçado pela corrupção daquilo que ele tem de melhor - a sua consciência, a sua liberdade, a sua dignidade e criatividade -, corre riscos de desintegração.
Impõe-se, portanto, uma política de maior verdade e de maior sinceri­dade, uma política de maior serviço à dignidade, à liberdade, à criatividade e responsabilidade de todo o Povo.

Opção por sistemas e modelos mais ajustados
Impõe-se também uma opção por sistemas e modelos que tenham mais em conta o Homem concreto, o Povo inteiro, com a totalidade dos seus legí­timos direitos e deveres, e das suas justas e irreprimíveis aspirações. Que tenham mais em conta a inteira personalidade da Nação moçambicana. Por conseguinte, parece oportuno que se revejam os sistemas e modelos em curso, abandonando o que neles possa haver de redução e opressão, e assu­mindo com um espírito mais crítico e mais aberto o que neles houver de ver­dadeiro e autêntico crescimento do Homem e do Povo.

Verificamos com tristeza que, apesar dos esforços levados a cabo, o Povo moçambicano, na sua maioria, continua a ser objecto e não sujeito do seu próprio crescimento e da sua própria história. Continua, sobretudo, a servir, com grave prejuízo para a sua personalidade e liberdade, ideologias e culturas estranhas.

Impõe-se, na verdade, uma lúcida análise dos modelos, dos sistemas e ideologias que, tendo sido julgados num dado momento os melhores para servir a libertação e o crescimento do Povo, hoje se revelam como ideologias, sistemas ou modelos menos condizentes e menos ajustados. Não se trata de contrapor uma ideologia a outra ideologia, um sistema a outro sistema ou modelo, mas de proporcionar a todo o Povo possibilidades reais de ser ele próprio o sujeito indiscutível do seu desenvolvimento e da sua história, o pri­meiro responsável da sua independência e do seu destino.

Opção pelo Homem concreto
Esta opção por ideologias, sistemas ou modelos mais conaturais e mais ajustados, mais indicados para a realização e crescimento da Nação, implica naturalmente a opção pelo Homem concreto, pelo Povo concreto e pelos valores que lhe são inerentes e imprescindíveis. Isto quer dizer que no cen­tro de toda a actividade política, económica, social, jurídica, cultural, deverá estar presente o Homem concreto, histórico, real, o Homem na sua inteira verdade, com a sua dimensão individual e social, com a sua eminência e transcendência, com a sua vocação histórica e trans-histórica. O Homem concreto e inteiro e não o Homem utópico, abstracto, reduzido ou parce­lado. Deverá estar presente o Homem todo e o Povo todo. O Povo real, con­creto, histórico e não o Povo abstracto ou utópico.

Opção pelos valores superiores do Homem e do povo
A opção pelo Homem e pelo Povo, como tais, exige, simultaneamente, a opção pelos valores que os caracterizam e lhes dão, no conjunto dos povos, uma fisionomia inconfundível. Exige também uma opção pelos direitos e pelas liberdades que lhes são inerentes.
 Urge de facto uma política de maior respeito e de maior empenho pelos valores essenciais ao Homem e à sociedade, e pela cultura própria do Povo e da Nação moçambicana. A experiência diz-nos que não basta empe­nharmo-nos em alcançar mais valores científicos, tecnológicos, económicos e sociais, mais valores ideológicos, jurídicos e políticos.

Urge, efectivamente, um empenho que permita dar aos valores espiritu­ais, éticos, morais, religiosos, culturais e humanos o lugar que lhes compete na libertação e crescimento de cada um e de todos, na construção da socie­dade, na edificação da nossa Pátria. Urge um empenho mais sério e mais autêntico no sentido de defendermos e de promovermos os valores próprios do Povo e cuja perda ou destruição constituiria um grave atentado à perso­nalidade e à identidade da Nação moçambicana e um prejuízo irreparável para o património espiritual da humanidade.

Não basta crescer ideológica, política, económica ou socialmente. Não bastam os valores que fazem o bem-estar material. Impõe-se a opção clara e decidida pelos valores do espírito, pelos valores superiores do Homem e da sociedade. Caso contrário, poderemos assistir a um certo crescimento cientí­fico, tecnológico, político, económico-social e constatarmos, ao mesmo tempo, uma visível e imparável degradação moral, ética, espiritual e cultural do Homem, da sociedade e da própria Nação.

O clima de violência, de arbitrariedade, de abuso e de egoísmo, os diversos crimes contra a vida, contra a dignidade humana e contra os valores mais sagrados do Povo - como são os valores espirituais, morais e religiosos -, as mentalidades e comportamentos imorais mostram bem que a degradação e a corrupção do homem, da mulher, da família e da sociedade moçambicana não são uma simples hipótese mas uma triste e indiscutível realidade.

Urge, portanto, a par dos valores da ciência, da tecnologia, da política e do progresso económico-social, uma ampla e corajosa promoção e defesa dos valores humanos, dos valores espirituais, éticos, morais e religiosos. Urge um exame mais atento aos sistemas de ensino, de educação e cultura. A edu­cação pelos valores espirituais, éticos, morais, jurídicos, culturais e religiosos, isto é, pelos valores superiores do Homem e da sociedade é, de facto, impe­riosa e urgente.

Opção pela não-violência
Esta opção arrasta consigo uma outra opção inadiável: a opção pela não-violência. Talvez esta opção possa parecer a alguns um pouco ingénua ou irrealista. Contudo, ninguém ignora que a violência gera violência e que o cultivo da violência jamais levará à construção de uma sociedade ou Nação não-violenta. O avanço e a generalização da violência obrigam-nos, de facto, a propor a prática imediata de não-violência. Só deste modo conseguiremos verdadeiramente uma sociedade e uma Nação de homens não-violentos e, ao mesmo tempo, pacificados e pacificadores.
A unidade nacional, a paz civil, a concórdia, a solidariedade, a amizade entre as diversas tribos, línguas e culturas que integram e caracterizam o nosso país não virão pela violência das armas nem pelo cultivo do ódio, da "luta» e do espírito de represália e de vingança. Não virão pelas estratégias ou políticas de liquidação e destruição de adversário.
A paz digna, humana e duradoura será fruto da justiça, da reconciliação, do entendimento, das conversações, da magnanimidade e da sinceridade de uns e de outros. Será fruto dos meios não-violentos, dos meios racionais, éti­cos, morais, políticos, diplomáticos e jurídicos.
A opção pela não-violência torna-se de facto imperiosa e inadiável. Esta opção implica, por um lado, que se encontrem as medidas adequadas no sentido de se pôr termo imediato às crueldades organizadas e premeditadas ­como são os massacres, as execuções sumárias, os assassinatos, os castigos degradantes e as torturas, - no sentido de se acabar com as represálias indis­criminadas, com as detenções arbitrárias, com os julgamentos a partir de polí­cias ou das forças militares, com a captura e deslocação compulsiva de popu­lações, o abuso das armas e com a arrogância do Poder.
Impõe-se, de facto, uma ordem que proíba, terminantemente, esta prática hedionda da violência assassina. Uma ordem que exorcize de vez o espírito de vingança, de represália, de humilhação e liquidação física do inimigo, ou das pessoas e populações, ainda que suspeitas ou eventualmente sob influên­cia do adversário.
Uma ordem que proíba as arbitrariedades, que proíba os roubos às populações indefesas, a destruição de casas e de bens, a violação de mulhe­res, o desprezo sistemático pelos direitos da pessoa humana e do próprio Povo. Que proíba às tropas, em operação de reconhecimento, de controlo ou de «limpeza», liquidar homens que encontram e levar consigo as mulhe­res, situando-as em zonas obrigatórias ou estratégicas. Uma ordem que proíba os abusos contra a Constituição, a legalidade, a ética, a moral e a cul­tura da Nação.
A opção pela não-violência implica, por outro lado, que se promova e favoreça, a nível das consciências, da sociedade e da Nação um clima de maior respeito e de maior concórdia. Um clima que permita, a nível das for­ças em presença, reduzir as posições extremadas, ultrapassar os ódios e o espírito de vingança e que faça nascer, pelo concurso de ambos os lados, aqule conjunto de meios políticos que tornem possível a reconciliação e a paz.
Isto exigirá, à partida, uma confiança maior na força moral e espiritual do Homem e do próprio Povo, uma busca sincera dos meios não-violentos, uma vontade maior de entendimento e de reconciliação, uma aceitação mais corajosa da política de diálogo e das conversações, como política decisiva para a paz nacional. Exigirá também que se abandone a linguagem da vio­lência, o discurso das armas de morte como armas de paz, e que se pro­mova a nível das consciências, da sociedade, das instituições políticas, jurídi­cas, económicas e administrativas, a nível da própria Nação uma linguagem de não-violência, uma mentalidade e comportamentos de não-violência. Que se promova e assuma, com maior sinceridade, a prática da clemência, do amor solidário e da justiça. Como todos sabemos a paz nacional, a reconci­liação e a unidade, a nível de cada um, a nível da sociedade e do país, não virão da violência das armas, nem da violência do Povo armado, mas da força dos meios humanos, políticos e éticos, da força da justiça e do amor.

Opção pela justiça
Urge de facto uma política de maior justiça e de maior respeito pela dig­nidade, pelos direitos e pelas liberdades de cada um e de todos. Uma polí­tica que se concretize, por um lado, numa eficaz ultrapassagem de situações de injustiça e de medidas ou programas que segreguem de algum modo a discriminação, que não garantam suficientemente o conjunto dos direitos humanos ou que favoreçam de qualquer maneira o aparecimento de novas formas de opressão e de alienação; uma política que, por outro lado, abra caminho à prática da justiça e ao livre exercício dos direitos e liberdades de cada cidadão, particularmente no campo dos direitos políticos e do direito à participação combativa no bem comum, no campo dos direitos de livre esco­lha da vocação, do estado de vida e da profissão.
Não basta efectivamente a preocupação pela justiça social, desconhe­cendo outros aspectos essenciais da justiça.
A opção pela justiça, garantia e guardiã da inteira dignidade humana, e bem assim da unidade nacional e da paz civil, obriga a ter em conta aquela justiça que sirva o Homem todo, isto é, o Homem com os seus direitos indi­viduais e sociais, os seus direitos económicos e políticos, os seus direitos culturais e espirituais, os seus direitos morais e religiosos, as suas liberdades universais e intangíveis, as suas liberdades objectivas e subjectivas. Aquela justiça que sirva o Povo inteiro, isto é, o Povo com as suas legítimas e irreprimíveis aspirações, com as liberdades indissociáveis da sua dignidade, da sua criatividade e independência, com o direito indiscutível de ser, ele mesmo, o sujeito do seu próprio desenvolvimento, da sua libertação e independência, da sua história e da sua cultura.
Não é necessário lembrar a degradação da justiça neste ponto. Sente-se por toda a parte uma grave e injuriosa forma de injustiça: o desprezo pela pessoa humana e simultaneamente uma crescente e irresponsável violação dos direitos humanos. As próprias instituições, criadas e organizadas para defender e garantir a justiça, o direito, a dignidade de cada um e do próprio Povo, parecem claudicar agravando este desprezo pelo Homem concreto e esta violação sistemática dos direitos humanos.
Impõe-se na verdade uma política de maior justiça em todos os campos, de maior defesa dos direitos invioláveis de cada um e de cada uma, de maior respeito pela dignidade e pela vocação da pessoa humana.

Opção pelo amor
A opção pela justiça anda junta com a opção pelo amor. Não se trata de um amor abstracto, platónico, sentimental e inoperante. Trata-se de um amor que, na prática social, se manifesta no reconhecimento e defesa do Homem e do Povo, no compromisso com a vida, as alegrias e tristezas, as aspirações e as frustrações, as vitórias e os fracassos do outro, nos combates pela digni­dade, a libertação, o desenvolvimento de todo o Povo, na partilha e na soli­dariedade, no diálogo e na mútua ajuda, na amizade e na fraternidade.
Trata-se de um amor que, em última análise, é «a lei fundamental da per­feição humana e, portanto, da transformação do mundo» eG. S. 38), de um amor que pela sua força de libertação e de dignificação do Homem, de reconciliação e de entendimento entre os homens e as diversas línguas e cul­turas, gera, alimenta e consolida a paz social, a paz civil, a paz nacional.
Não será o ódio o motor da história dos homens novos, das sociedades novas e dos povos novos, mas a justiça e o amor. Não será a civilização do ódio, da violência e da morte a civilização da paz e do progresso dos homens e dos povos, mas sim a civilização da justiça e do amor.
Na realização e efectivação destas opções, que consideramos imperiosas e urgentes, Vossa Excelência pode contar com o apoio que de nós depende como bispos, e dentro da nossa missão específica como pastores da justiça, da verdade, da liberdade, do amor, da reconciliação, da concórdia e da paz, como pastores do Homem, da sua dignidade, da sua vocação e direitos.
Terminamos, pedindo a Vossa Excelência nos releve qualquer palavra ou afirmação menos exactas e que não veja nesta nossa exposição outra inten­ção a não ser a de querermos ajudar seriamente o nosso Povo a libertar-se da tristeza e da morte que mais o esmaga e destrói.
Aceite, Senhor Presidente, as nossas respeitosas e cordiais saudações e os nossos votos sinceros de muitas prosperidades, sobretudo no trabalho pela paz, pela unidade e reconciliação nacional.
Que o Ano Internacional da Paz nos traga a paz.

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