Carta Pastoral de
Julho de 1985, em que se reflecte sobre o desastre de Moçambique, em todos os
domínios, e sobre as suas causas. Note-se que, quando cita o Notícias, se
refere ao jornal diário publicado em Maputo e controlado pelo governo
(A. B.).
1 - Ao dirigir-vos esta pequena
carta pastoral, tenho presente alguns deveres que considero imperiosos.
Em primeiro lugar, o dever de
anunciar «oportuna e inoportunamente» (2 Tim. 4, 2) o Evangelho da justiça, da
reconciliação e da paz, e mais ainda quando a nível da sociedade e do próprio
País, a injustiça e o abuso ocupam impunemente o lugar da justiça e do respeito
pela dignidade de todo o Homem, quando o espírito de guerra, de represália e de
vingança se substituem ao espírito de paz, de reconciliação e de perdão.
Em segundo lugar, o dever de
defender a dignidade, os direitos e as liberdades de cada Homem porque é Homem,
e o direito de todo o Homem a viver e a participar numa sociedade
verdadeiramente humana, civilizada e culta (G. S. 30).
2 - Os bispos, como diz o Concílio
(C.D. 12), devem falar da justiça e da paz. Devem falar do Homem como «imagem e
semelhança de Deus» (Gen. 1, 27) como «único sujeito, centro e fim de todas as
instituições políticas, sociais ou económicas», como «autor protagonista de um genuíno e
integral desenvolvimento político, social, económico ou cultural» (G. S. 12;
22; 25).
Compete-me, portanto, como Pastor,
também homem, estar atento às situações que possam destruir ou oprimir a pessoa
humana, atento às alegrias e tristezas de todo o Povo, aos seus apelos e
esperanças.
Compete-me estar atento ao clamor
dos que sofrem, e, bem assim, aos sinais dos tempos que vêm e que apontam já no
sentido de uma sociedade mais digna, mais próspera, mais pacífica e mais feliz
porque mais humana, mais justa, mais livre e solidária.
3 - Como os profetas antigos, também
nós temos de gritar, até que surja um tempo novo, um tempo de maior dignidade,
de maior justiça e de maior liberdade.
De facto, o tempo que vivemos não é
um tempo digno do Homem, digno de um povo que lutou e sofreu para viver em
liberdade. É, sim, um tempo de humilhação e de violência, um tempo de injustiça
sobre injustiça, desastre sobre desastre.
4 - Permiti-me que aponte alguns
destes desastres ou violências.
A violência da fome e da nudez; a
violência das endemias e das mortes prematuras; a violência das arbitrariedades
e dos abusos; a violência da ideologia e do sistema, quer social, quer
político, quer económico; a violência do autoritarismo do partido dirigente e
a violência das medidas meramente policiais e administrativas; a violência das
«aldeias comunais» e dos «campos de reeducação»; a violência do
neocolonialismo e do imperialismo provocando novas formas de humilhação e de
exploração; a violência de um «socialismo» opressivo e desumanizante; a
violência de uma política e de uma cultura que desconhecem a inteira e
inviolável dignidade da pessoa humana, os seus direitos, os seus deveres e as
suas liberdades inalienáveis; a violência de leis iníquas e de actuações
nitidamente repressivas; a violência da guerra civil e fratricida.
5 - O Homem moçambicano, tal como o
Povo, está, de facto, humilhado e oprimido. Está, de facto, cada vez mais
sujeito à humilhação e à destruição. A fome, a nudez, a doença avançam sempre
mais, humilhando, destruindo e espalhando a tristeza e a morte.
A maioria da população já não tenta
viver, mas sim sobreviver. A casca de árvore, ao preço de 300 meticais, voltou
a ser, em certas regiões, o único vestuário. A subnutrição afecta já uma grande
parte da população. A maioria das crianças não tem uma nutrição adequada,
morrendo muitas delas prematuramente, ficando outras irremediavelmente
afectadas. As doenças, por falta de tratamento, fazem sempre mais vítimas, quer
entre os adultos quer entre as crianças.
6 - Por outro lado, a violação dos
direitos humanos, o abuso e a injustiça tornaram-se, dia a dia, mais graves e inquietantes. Estamos, de facto,
diante de novas formas de injustiça e de opressão. Estamos diante de novas
formas de abuso do poder, de novas formas de arrogância e de desprezo. Estamos
diante de novas formas de exploração e de pilhagem, de dominação e de
dependência.
Estamos diante de novas formas de
agressão contra o Homem, a sua dignidade, os seus direitos e liberdades, contra
o Povo, contra a sua liberdade e a sua cultura, contra a sociedade e contra os
princípios que fazem dela uma sociedade verdadeiramente digna, humana,
solidária e fraterna.
Estamos diante de novas formas de exasperação de uma guerra cujo rosto se torna
cada vez mais duro, mais violento e sanguinário. Estamos diante de novos
crimes, de novos excessos e massacres.
Estamos diante
de novas formas de instrumentalização ideológica e política, de novas formas de
opressão e humilhação, de novos desastres particularmente no campo político,
económico, social e cultural. Estamos diante de novas formas de alienação, de
apatia e desinteresse; de novas formas de dirigismo e autoritarismo, de
elitismo, de tribalismo e regionalismo, de novas formas de corrupção e
desagregação moral, espiritual e cultural. Estamos diante de novas formas de
medo, de ódio e de espírito de vingança.
7 - Mas não basta enumerar os
sofrimentos que esmagam e destroem o nosso Povo. Urge, na verdade, indagar das
razões que provocam, alimentam e agravam tais sofrimentos ou humilhações. Urge
encontrar novos caminhos que levem à ultrapassagem desta tristeza.
O Evangelho diz-nos que "só a
verdade nos pode libertar» e diz-nos também que "a mentira é assassina desde o
princípio» (Jo 8, 36, 44).
Devemos portanto examinar à luz da
verdade a situação em que se encontra o nosso país. Examinar o que é bom para o
assumir e potenciar, examinar o que é mau para o abandonar e destruir. É tempo
de reflexão honesta e serena, é tempo de autocrítica leal e corajosa.
8 - De facto, o Povo pergunta-se
pelas razões que determinaram a situação em que se encontra. Pelas razões que provocaram esta
humilhante e desumana situação.
Será que a fome, a nudez, a prostração
e humilhação em que se encontram milhares de pessoas no nosso país são fruto unicamente das calamidades
naturais ou da guerra que assola o país? Será que a violência, cada vez mais
dura e mais desumana, é fruto unicamente do colonialismo e das agressões
racistas e imperialistas? Não haverá, além destas causas, outras causas
possivelmente mais graves e determinantes?
Não estarão na origem e no
alastramento da guerra as ideologias e os sistemas de sua natureza violentos e
desumanos? Não estarão na sua origem as políticas de implantação de um novo
tipo de sociedade na base da alienação, da humilhação e do medo? Não estarão na sua origem
as medidas precipitadas - medidas mais
ideológicas do que políticas - na organização da sociedade e no desenvolvimento
do país? Não estará na origem destes desastres a violência própria de uma
ideologia e de um sistema materialista ou de um partido totalitário? Não estará
na sua origem a implantação forçada de uma democracia que não considera o Homem
inteiro, o Homem com a sua dignidade intangível e os seus direitos e
liberdades invioláveis?
10 - Não estará na base deste
desastre, não só político e social, como económico e cultural, a recusa de uma
democracia verdadeiramente aberta ao Homem todo e a todos os homens, aberta «ao
Homem na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e ao mesmo tempo
do seu ser comunitário e social no âmbito da própria família e da sociedade,
no âmbito da própria Nação, no âmbito, enfim, de toda a humanidade?» (R. H.
14).
11 - Não estará na base desta
irresponsabilidade generalizada a falta de uma democracia fundada sobre a
dignidade, os direitos, os deveres e as liberdades de cada cidadão, fundada
sobre o pluralismo político, o direito e o dever de cada um participar na
comunidade política e no bem comum, através sobretudo do sufrágio livre,
secreto e universal, tal como está previsto na Declaração Universal dos
Direitos Humanos?
12 - Não estarão na base deste
desastre económico e social os modelos de desenvolvimento e progresso na sua
maioria desajustados ou mesmo impostos? Na base deste desastre não estará o
neocolonialismo disfarçado de cooperação e de ajuda bilateral ou multilateral,
não estarão as novas formas de imperialismo procurando impor os seus interesses
e ignorando o bem autêntico do Povo e da Nação?
13 - Urge, portanto, examinar leal e
criticamente as ideologias e os sistemas que presidem à comunidade política, à
sociedade e ao desenvolvimento do nosso país. A experiência diz-nos que nenhuma
ideologia está isenta de ambiguidades e que nenhuma ideologia pode respeitar
inteiramente a dignidade e a vocação plena do Homem.
Todas o alienam e manipulam. Todas o
transformam em objecto ou em instrumento da comunidade política ou da
sociedade. Nenhuma ideologia, enquanto tal, é capaz de presidir a um progresso
político, social, económico e cultural verdadeiramente humano, integral,
harmonioso e solidário (O. A. 25).
14 - A ideologia marxista-leninista
com o seu materialismo radical, a sua dialética de violência, o seu ateísmo
militante, a sua maneira de absorver a liberdade individual na colectividade,
negando assim qualquer transcendência ao Homem e à sua história, é sem dúvida
uma ideologia desumana e mutilada, incapaz, portanto, de criar sociedades
verdadeiramente humanas e de inspirar
modelos políticos, económicos, sociais ou culturais que sirvam efectivamente a
inteira dignidade do Homem, a sua plena e indiscutível vocação.
15 - Por sua vez, a ideologia
liberal que julga exaltar a liberdade individual subtraindo-a a toda a limitação, estimulando-a
com a busca exclusiva do interesse, e considerando, por outro lado, as
solidariedades sociais como consequências mais ou menos automáticas das
iniciativas individuais, e não como um fim e um critério mais alto do valor e
da organização social - tal ideologia é também, à partida, uma ideologia de
perigosas reduções, incapaz, por isso, de criar sociedades verdadeiramente
humanas, solidárias e fraternas (O. A. 26).
16 - A sociedade que estamos a
edificar e a construir, se a queremos efectivamente desenvolvida, civilizada,
culta e pacífica, devemos edificá-la e construí-la no inteiro respeito pelos
direitos e liberdades de todo o Homem e do Homem todo.
Na verdade, todos os programas, se
desejam promover e construir uma sociedade verdadeiramente humana, terão de ter
em conta, como critério essencial e permanente, o bem integral do Homem - do
Homem todo e de todos os homens (R. H. 17); - terão de ter em conta o respeito
pelos direitos e liberdades invioláveis de todo o homem, terão de considerar
que não é o Homem para a comunidade política ou para a sociedade, mas sim o
contrário. Terão
de ter em conta que os sistemas ou as ideologias que instrumentalizam ou
manipulam o Homem não constroem comunidades políticas ou sociedades
verdadeiramente pacíficas, mas sim comunidades e sociedades violentas, abertas
portanto à guerra e aos conflitos entre os diversos grupos ou cidadãos.
Com efeito, onde não haja uma
sincera e contínua solicitude pelo bem comum e pelos direitos e liberdades
fundamentais de cada um e de todos, onde houver qualquer forma de totalitarismo
ou de autoritarismo, aí haverá oposição dos cidadãos contra a autoridade
constituída, aí haverá violência contra o poder estabelecido e mesmo violência
armada (R. H. 17).
Onde não haja uma genuína e efectiva
democracia, dificilmente poderá surgir e desenvolver-se uma sociedade em paz e
em liberdade (O. A. 24).
17 - Chegamos assim, a outro ponto
que julgamos fundamental nesta carta pastoral: a origem da guerra que assola e
devasta o nosso país. Donde vem afinal esta guerra? Será que a sua origem se
situa unicamente na cobiça do neocolonialismo e do imperialismo, «nas agressões
racistas por parte do regime da África do Sul», «no terrorismo que nos é
imposto pelos inimigos da independência», «no banditismo armado», «nos
interesses daqueles que sempre se opuseram à nossa independência e que pretendem fazer retroceder, a todo o custo, a roda da história e recolonizar
Moçambique?» (Notícias, 6/7/85).
Não estará igualmente, na origem
desta guerra, o grito dos humilhados e maltratados pela ideologia ou pelo
sistema? De facto, toda a ideologia ou todo o sistema fechado à inteira e total
dimensão do Homem, aos seus direitos e liberdades fundamentais, à sua vocação
histórica e trans-histórica, acabam por gerar a violência e mesmo a guerra.
«Sem o respeito pelos direitos objectivos e invioláveis do Homem, sem o
respeito por aquele bem comum que a autoridade no Estado deve servir, é fácil
chegar-se ao descalabro da sociedade, à oposição dos cidadãos contra a
autoridade, ou, então, a situações de opressão, de intimidação, de violência ou
de terrorismo de que nos fornecem numerosos exemplos os totalitarismos do
nosso século» (R. H. 17).
A ideologia ou sistema marxista-leninista,
o seu desprezo pelos direitos e liberdades A ideologia ou sistema
marxista-leninista, o seu desprezo pelos e liberdades essenciais a rodo o ser humano,
pela dignidade intangível de cada homem e pela vocação histórica e
trans-histórica a que todo o homem está chamado não terá causado a oposição de
tantos cidadãos ou mesmo a violência armada?
Por isso, a paz que desejamos - a
paz na justiça, na liberdade - não será possível sem a coragem de uma mudança
que signifique, efectivamente, o fim de uma ideologia ou de um sistema menos
humano, de um sistema materialista e totalitário, e que signifique o início do
estabelecimento de uma indiscutível legitimidade democrática e de uma sociedade
em liberdade.
18 - A vitória sobre a fome, a
doença, a guerra e tantos outros flagelos que afligem e dizimam o nosso Povo
não será apenas o resultado de um entendimento entre as diversas forças em
presença, mas, sobretudo, o resultado de uma sincera e corajosa mudança da
formulação de políticas a nível de todos os sectores da vida nacional, a nível
da edificação da sociedade e do desenvolvimento do nosso país.
Mais justiça social, mais verdade na
política, mais respeito pela dignidade, direitos e liberdades de todo o homem
e de todo o cidadão; mais liberdade dentro das liberdades fundamentais de todo
o homem; mais participação de todos e de cada um na comunidade política e no
bem comum; mais democracia pelo reconhecimento dos direitos e liberdades de
todo o cidadão e pelo pluralismo político; mais igualdade e solidariedade - eis
alguns dos caminhos que poderão ajudar-nos a construir um tempo novo no nosso
país, um tempo de paz, um tempo de um desenvolvimento verdadeiramente humano,
integral e solidário.
Que a política do Homem todo e de
todos os homens, que os direitos e liberdades essenciais a todo o Homem reinem
cada vez mais no nosso país fazendo crescer em favor de todos e de cada um a
abundância da vida e da paz.
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