Carta às Comunidades - 25 Julho de 1975



Carta às Comunidades

                                                                                            No alvorecer da Independência, alguns conselhos  de orientação.
Nampula, 25 de Julho de 1975


1 – Celebrar a festa da Independência

Celebrámos no passado dia 25 de Junho a grande festa da Independência. E que significa celebrar a proclamação da Independência? Muitas coisas foram ditas e muitas se podem dizer. A Independência é um acontecimento demasiado grande para caber numa expressão. Ela é o momento mais alto da vida de um povo. O ponto de chegada e o ponto de partida. Ela é o encontro das gerações que sofreram e lutaram e das gerações que, ao longo dos dias, continuarão a lutar.
A inde­pendência é uma vitória, uma conquista, uma decisão. Vitória do direito sobre a força, da liberdade sobre a escravidão, da igualdade sobre a descriminação, da fraternidade sobre a ex­ploração. Vitória da paz sobre a guerra, da dignidade sobre a humilhação, da verdade sobre a mentira, da concórdia sobre o ódio, da unidade sobre a divisão. Vitória do povo mo­çambicano sobre o colonialismo português, sobre o imperia­lismo e o racismo.
A independência de Moçambique é uma vitória não só do povo moçambicano, mas de todos os povos que lutam ou lutaram contra qualquer forma de opressão. É um passo em frente na construção de um mundo mais huma­no, mais livre e mais fraterno. É a passagem da casa da escravidão à terra prometida. É a Páscoa do povo moçambicano - páscoa que actualiza a grande Páscoa feita de uma vez para sempre por Cristo Jesus.
No mais íntimo da libertação moçambicana está presente a luta da vida contra a morte, o triunfo da vida sobre a morte. Está presente o Mistério Pascal.

2 - A Independência de Moçambique é uma vitória e uma conquista

Após centenas de anos de exploração, de opressão política, económica e cultural; após a longa noite da humilhação co­lonial, o povo moçambicano conduzido pela sua vanguarda re­volucionária conquista finalmente a liberdade. Pode ser de novo ele mesmo, escrever a própria história, proclamar a pró­pria indentidade. Não é mais um povo alienado noutro povo; não é mais um povo sem história. Moçambique é um País de pleno direito, uma nação ao lado de qualquer nação, uma pátria de longas raízes e de grandes esperanças. O povo mo­çambicano, a partir da independência, retoma a sua cultura, ex­prime a sua identidade, afirma o seu valor, escreve a própria história. Embora em diálogo com outras culturas e em comu­nhão com outros povos, Moçambique independente é ele mes­mo. No contexto das Nações há mais um povo com a riqueza e a vocação que lhe são próprias.

3 - A Independência de Moçambique é uma vitória, uma conquista e uma decisão

A era colonial findou. Sendo uma injustiça estrutural, o colonialismo nunca devia ter começado. Nasceu da tentação do domínio do homem sobre o homem, nasceu des ambições imperialistas e do crime da exploração do homem pelo homem. Nada o justificava e nada o justifica. Nem o «direito de con­quista», nem a falsa teoria da superioridade duma raça sobre a outra, nem as necessidades económicas, nem a missão civi­lizadora. A força não funda, por si, qualquer direito. Funda sim a opressão, a humilhação, e a consequente luta pela liber­dade. A teoria da superioridade de uma raça é um atentado à dignidade e igualdade de todos os homens. É uma defesa do monstruoso pecado do racismo. As necessidades económicas não podem legitimar a usurpação, o roubo, a pilhagem, a ex­ploração. Podem sim provocar intercâmbios de bens, na igual­dade de direitos e deveres. A missão civilizadora parte dum su­posto falso. Porquê afirmar que a civilização do país coloni­zador é superior à civilização do país colonizado? E se uma civilização se julgasse superior, quem a autorizou a impor-se a outras civilizações? Infelizmente muito se abusou desta ra­zão. A própria guerra - negação de toda e qualquer civiliza­ção - era invocada como defesa da civilização ocidental e cristã. Nada justifica o colonialismo. Pretender justificá-lo é pretender justificar a opressão, a degradação, a exploração e a violência. A vanguarda armada do povo moçambicano derru­bou o colonialismo português. Com ele caiu também tudo quanto possa ser ou parecer colonial. A era colonial acabou.
A reconstrução nacional começou. Moçambique ao procla­mar a independência total, proclamou ao mesmo tempo a de­cisão inabalável de iniciar a própria reconstrução. É todo um povo que sai da opressão, da alienação e da morte. É todo um povo que decide libertar-se inteiramente. Libertar-se da ignorância, da miséria, da fome, da nudez, da doença, do medo; libertar-se dos vícios herdados do sistema colonial; li­bertar-se da mentalidade burguesa e egoísta; libertar-se das forças que o possam destruir e alienar.

4 - A reconstrução nacional não será possível enquanto não surgir o homem novo

Que o homem rompa com a mentalidade de objecto, e passe a viver como sujeito, como pessoa livre, responsável, solidária, revolucionária. Uma consciência nova implica neces­sariamente uma atitude nova, um comportamento novo pe­rante as diversas realidades e muito particularmente perante o outro. Se o comportamento novo luta contra a exploração, luta de igual modo pela liberdade responsável e solidária de cada um; luta pela transformação das relações de modo que desapareça a exploração e nasça uma sociedade de homens radicalmente iguais, estruturalmente solidários, e dinamica­mente orientados para a fraternidade; luta pela transformação das estruturas de modo que desapareçam as estruturas opres­sivas e alienantes e surjam estruturas libertadoras e solidárias. O homem nascido da luta pela independência é um homem re· volucionário. E revolução é viragem, ruptura, invenção, cria­tividade; é transformação do mundo selvagem em humano, de humano em mais humano, mais fraterno, mais solidário. A revolução assim entendida exige espírito de serviço, aber­tura permanente ao novo, disponibilidade, pobreza, liberdade, amor, audácia e risco.

Aqui se situa o dinamismo do Evangelho. Como força transformadora, não está fora, está dentro. Libertar o homem do pecado da idolatria, do predomínio, da exploração é avançar na libertação da sociedade. Criar o homem novo é criar a sociedade nova.

E Jesus de Nazaré Ressuscitado é, por excelência, o homem novo. Acreditar nele é acreditar na vida, na radical novidade de todas as coisas. (Ap 21, 5) na libertação de toda a iniqui­dade, na comunhão fraterna definitiva. Não é Ele o Caminho, a Verdade e a Vida? (Jo 14, 5). Não veio Ele para que todos os homens, todas as sociedades tenham vida e vida em abun­dância? (Jo 10,10). Não anunciou Ele que vinha para anunciar a boa nova da libertação? (Lc 4, 18). Não afirmou Paulo que foi para a liberdade que Cristo nos libertou (Gl 5, 1) e que por isso mesmo, devemos caminhar em todo o tempo co­mo homens livres? E não diz o Apóstolo aos primeiros cristãos imersos numa sociedade de classes mutuamente segrega­das, que em Cristo não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher (Gl 5, 28)? Que em Cristo todas as discriminações caíram e que n'Ele todos os homens, todos os povos estão chamados a formar uma família e a vi­ver como irmãos? Acreditar em Jesus Cristo é acreditar na possibilidade de uma nova terra de uma sociedade nova, onde o homem não seja mais explorado pelo homem, onde todos sintam a dignidade que lhes é própria e vivam na liberdade a solidariedade fraterna.

A fé em Jesus Cristo não é um refúgio, nem uma abstrac­ção. Não se reduz a um conjunto de práticas religiosas, nem desconhece os dinamismos profundos da história. A fé verda­deira não aliena. Insere o crente na história como fermento na massa e como sal na terra. (Mt 5, 13). A fé é uma vida que dinamiza toda a vida, desde o quotidiano ao extraordinário, às grandes tarefas da revolução. O divórcio entre a fé e a vida é anti-evangélico. É um pecado que muitos cometeram. A fé não está fora da história. Está dentro pela acção que suscita e desenvolve. Com efeito, não é possível dizer a fé sem ao mes­mo tempo manifestar o amor. A fé sem amor é morta (Tg 2, 26). E o amor que se pretende tem a dimensão da vida; tem a profundidade da história. Nisto conhecerão que sois cristãos: se amardes até ao dom da vida. (Jo 10, 13-15).

Não será portanto a prática religiosa o sinal do homem revestido de Jesus Cristo e animado pelo Espírito (Rm 13, 14 e Cl 3). Será sem dúvida o amor. E um amor comprometido até ao fim. No contexto novo de Moçambique o amor tem um nome: chama-se compromisso político, chama-se luta pela construção de uma sociedade livre e solidária. Quando o homem moçam­bicano anuncia a sua fé na liturgia, na família, na sociedade, anuncia ao mesmo tempo o seu compromisso de serviço.

Em­penhado nas diversas tarefas da reconstrução nacional, ele tem como luz e força não apenas a capacidade própria e o potencial da revolução, mas também a fé que vive em cada mo­mento e que o tornará mais capaz de discernir, de denunciar, de criticar e de se auto-criticar. A fé verdadeira é dinâmica. Leva à acção. O Evangelho exige do cristão, mais do que um conhecimento, uma práxis. Ao contar a parábola do samarita­no o Senhor não queria ensinar um conjunto de princípios abs­tractos. Queria provocar a acção. «Vai e faz o mesmo». Não bas­ta sabermos que é um dever do homem libertar o homem das mãos dos ladrões. É necessário que o libertemos de facto (Lc 10,37). Encontramos a mesma insistência na descrição do Juízo final. Não basta que o homem se encontre com o homem opri­mido pela fome, pela sede, pela nudez, pela doença e pela segre­gação social. É necessário que o homem liberte o homem de fac­to. E o cristão sabe que, libertar o oprimido, é libertar o pró­prio Cristo que com ele se identifica. (Ml 26, 40). Cristo en­trou na história e assumiu de uma vez para sempre as ale­grias, as esperanças, os sofrimentos, as angústias, as opressões de todo o homem. Assumiu de igual modo a luta pela dignidade, pela liberdade, pela vocação integral de todos os homens.

E vocação integral significa abertura aos apelos e aos bens que libertam e realizam o homem em todas as suas dimensões. Abertura aos bens políticos, económicos, sociais e culturais; abertura aos bens da fé, da esperança e da comunhão defini­tiva. A revolução moçambicana não pretende destruir a em Jesus Cristo. Criticando e combatendo os fracassos das Igre­jas, a religião sociológica, a superstição, o obscurantismo, lança a cada moçambicano que aceitou a fé num desafio: viver a fé dum modo novo no contexto novo de Moçambique.

O vosso irmão
Bispo Manuel


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