O Presidente Samora Machel
assinara um acordo de não-agressão e boa vizinhança com a África do Sul. Mas bastaria a coragem da celebração desse acordo, para que o
Povo real não continuasse a sentir-se longe da Frelimo?
A carta tem a data de
30 de Março de 1984 (A. B.).
Não me foi possível enviar-lhe a
tempo as minhas felicitações pelo histórico encontro de Vossa Excelência com o povo português.
Há muito que eu sonhava com esse encontro entre os dois povos irmãos,
intimamente ligados um ao outro por diversos laços e ambos capazes de se
apoiarem mutuamente, particularmente no desenvolvimento humano, social,
económico e cultural.
Acompanhei de perto o itinerário que
fez em Portugal e agradeço-lhe, sinceramente, o ter contactado tão
fraternalmente com o povo português, o ter desfeito as suspeitas que ainda
persistiam, criando assim as bases seguras duma amizade mais sincera e mais
activa entre os dois povos e duma cooperação mútua, mais vasta e mais fecunda.
Queria também felicitá-lo, bem como
à Nação moçambicana, pela coragem, lucidez e realismo que tornaram possível a
assinatura do acordo de não-agressão e boa vizinhança com a República da África
do Sul. Este acordo, tão justamente comentado em todo o mundo, abre, de facto,
perspectivas de paz e bem-estar para a região e permitirá, certamente, no
interior do nosso país, uma tranquilidade e uma segurança maiores.
Creio, porém, que este acordo não
bastará, só por si, para criar no interior do país um clima que permita silenciar as armas e
fazer avançar a paz
real e verdadeira. A lucidez e a coragem que presidiram ao
acordo com a República da África do Sul terão de continuar, preparando, assim,
como bases indispensáveis duma paz sincera, o diálogo e a reconciliação a nível nacional.
Perdoe-me, Senhor Presidente, se
falo deste modo, mas o contacto directo com o sofrimento do povo,
particularmente das populações afectadas pela guerra, obriga-me a ser sincero
com Vossa Excelência, lembrando que, neste momento histórico da vida do nosso
país, a chave principal da paz será o povo reconciliado consigo próprio, com a
sua direcção política, com modelos políticos, sociais, económicos e culturais
escolhidos e propostos como caminho de progresso e bem-estar da Pátria
moçambicana.
Há, de facto,
no seio do nosso povo, desconfianças e rupturas profundas. Sente-se, por toda a
parte, uma desilusão perigosa e uma crescente frustração que dá origem ao
espírito de revolta contra o poder político, contra os sistemas em curso e,
mais concretamente, contra aqueles que encarnam o Poder.
O povo real sente-se longe da
Frelimo e no momento presente parece viver uma atitude de expectativa não
isenta, porém, de interrogações sobre o significado e a eficácia do Acordo de N’komati
e sobre a confiança, o interesse e a adesão que este gesto do partido e do
Governo naturalmente merece.
Por esta razão e tantas outras que
todos conhecemos, entre as quais se destaca a fidelidade à linha popular da
Frelimo, o diálogo aberto e leal com o Povo
real torna-se, sem dúvida, imperioso e urgente.
Sabemos bem que este diálogo, em
vista duma reconciliação a nível nacional, exige por um lado uma corajosa e
sincera disposição de reconhecer os erros e os abusos cometidos ao longo destes
anos e de assumir, por outro lado, as justas e legítimas aspirações e queixas
do Povo. Muitos e graves são, na
verdade, os erros que se praticaram e que, apesar do perigo duma rejeição
política cada vez mais funda e do avanço da guerra, continuam a ser leviana e
impunemente cometidos. É, de facto, surpreendente que num tempo de tanto e tão
duro sofrimento e de tanta instabilidade política, muitas das medidas e dos
procedimentos continuam a ser estritamente burocráticos, violentos, quando não
ofensivos, do respeito devido às populações e ao Povo.
Permita-me, Senhor Presidente, que
me refira concretamente à mobilização forçada e desumana das populações para
as Aldeias Comunais, às rusgas e controlos violentos a propósito da vigilância
e da «Operação Produção», às acções militares nas zonas afectadas pela guerra.
Em todas estas medidas parece que a
força, a intimidação, a ameaça, a violação dos direitos fundamentais, e até da
legalidade, constituem, por via de regra, o modo comum de proceder.
Embora me custe tenho que dizer que
as forças de defesa e segurança têm cometido e continuam a cometer, contra as
populações indefesas, contra o Homem moçambicano, violências, abusos e crimes.
A voz do povo é unânime neste ponto,
referindo, sobretudo, as acções policiais e arbitrárias, a coberto da «Operação
Produção», as deslocações forçadas, a destruição de casas e bens, as aldeias
impostas e improvisadas, os castigos humilhantes, as represálias
indiscriminadas, a execução de prisioneiros ou de suspeitos de colaboração com
a Resistência.
Sei que tudo isto poderá ser fruto
de desvios e de abusos. Mas sei também
que neste momento de crise de unidade nacional e de confiança popular, o povo
dificilmente consegue distinguir entre a Frelimo como tal e os erros e abusos desta ou
daquela estrutura do partido e do Governo e muito menos chegará a entender o
alcance de certas medidas, como é o caso da «Operação Produção». O povo, tendo
diante dos olhos sobretudo as violências e arbitrariedades que se cometeram, a
situação desumana em que se encontram milhares de deslocados e a
ameaça permanente das rusgas, interroga-se sobre a razão de ser desta operação
e não deixa de responsabilizar os dirigentes da Nação por muitas das injustiças praticadas.
Por tudo isto, o diálogo e a reconciliação
com o povo terão de passar pelo reconhecimento sincero dos erros e abusos
cometidos, pela reposição da justiça e da legalidade, pelas medidas que permitam a libertação
imediata daqueles que se encontram injustamente detidos, deslocados ou castigados,
pela consideração leal das queixas e sofrimentos imerecidos de tantos milhares de pessoas, pela atenção
que as justas e legítimas aspirações do povo naturalmente merecem. Creio que só
deste modo se ultrapassarão as contradições - cada dia mais graves - entre o
povo e a sua direcção política, entre as populações e os seus responsáveis e
entre os diversos membros da mesma famí1ia moçambicana.
Este é um passo que, a meu ver, se
impõe, dando assim ao gesto histórico de Nkomati um alcance maior em favor da paz que
todos os moçambicanos esperam.
Gostaria, por isso, de pedir a Vossa
Excelência, como Presidente do Partido Frelimo e da República Popular de Moçambique e como Comandante-Chefe das FAM-FPLM,
uma vinda a Nampula,
com o fim de se encontrar com esta população e de iniciar esse diálogo e essa
reconciliação de mútua confiança e de mútua reconstrução da unidade e da paz.
Outros focos de tensão e de
violência terão de ser igualmente enfrentados, com a mesma lucidez e coragem do Acordo de
Nkomati.
Refiro-me particularmente às
perturbações armadas e às populações afectadas pelas forças em presença.
Esta província está já bastante
atingida. Onze dos dezoito distritos sentem já os efeitos das perturbações e
das acções armadas, milhares de pessoas sofrem, de uns e de outros, a violência
e o medo. Muitos são já os crimes,
muitas as desconfianças, as incertezas, as ameaças e as sombras da morte.
Todos sabemos que não é fácil um
encontro de paz com as forças que actualmente provocam a luta em diversas
províncias do nosso país. Mas
sabemos também que a Frelimo
dispõe de uma experiência e de um conjunto de mecanismos políticos que a tornam capaz de
promover e de realizar esse encontro. Não me parece que estes focos de
perturbação e de guerra, presentes e actuantes em vastas áreas do território
nacional e afectando já, gravemente, a vida de milhares de homens e mulheres
moçambicanos, de centenas e centenas de jovens e adultos mobilizados para a
defesa e segurança do país, possam ser resolvidos por meio das armas ou pela
estratégia da violência ou da «liquidação física».
Talvez que a paz por todos nós desejada,
atendendo à natureza de guerra em aberto, tenha de surgir de iniciativas
políticas e não de soluções militares. Estou certo de que a Frelimo saberá encontrar,
pronta e eficazmente, estas iniciativas de paz, abrindo assim efectivamente
caminhos à tranquilidade civil, ao bem-estar social, ao avanço do progresso
económico, ao desenvolvimento humano e integral do povo, à construção solidária
da Pátria moçambicana.
Há ainda o problema das populações
que, momentaneamente, se encontram sob a influência da Resistência ou puseram,
por razões de sofrimento e medo, a sua esperança numa possível mudança. Creio
que o futuro da Paz e da prosperidade no país não será possível sem a confiança
das populações. E esta, certamente, não passará pela política militar da
violência e da represália, mas pela política da compreensão e da clemência,
como é timbre da Frelimo.
De facto, se queremos a paz e o bem-estar no país há
que assumir uma efectiva política de compreensão e de clemência, rechaçando de
vez a política de vingança, mesmo que, porventura, as populações, movidas por
tantos factores, entre os quais funcionam o sofrimento e o medo, tenham porventura
cedido à presença e determinação da Resistência. Na verdade, uma coisa será o projecto da Resistência (se
o tem), outra a luta de sobrevivência do Povo. É este que é preciso recuperar
realmente.
Sei que é melindroso vir junto de
Vossa Excelência com estas questões. Mas
se o faço é porque tenho confiança em Vossa Excelência e porque a isso me anima
o amor que dedico a Moçambique e ao
Povo.
Perdoe-me, Senhor Presidente,
qualquer palavra menos exacta. Estou certo de que verá em toda esta carta o meu
desejo de contribuir para a paz e
engrandecimento do Povo e para o bem-estar integral da Pátria moçambicana.
Aceite, Senhor Presidente, os meus
respeitosos e cordiais cumprimentos e os meus sinceros agradecimentos por tudo
o que vem fazendo em favor da paz e da vida do Povo moçambicano e dos povos
desta região da África Austral.
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