A CORAGEM DA PAZ - 1º Janeiro de 1984



A CORAGEM DA PAZ


Apesar de ser uma palavra proibida pelo governo, a guerra em Moçambique, com o seu cortejo de sofrimento e luto infindáveis, era uma dura realidade, que não podia ser ignorada. Nesta Carta Pastoral, de Janeiro de 1984, o Arcebispo de Nampula reflecte sobre as suas causas e, como diz o título, sobre a Coragem da Paz. (Anselmo Borges).


1 - Reunidos, como cristãos, sentimos que é nosso dever denunciar a guerra e anunciar a Paz e, mais ainda, quando o clamor dos que sofrem se torna cada vez maior, interpelando-nos seriamente e obrigando-nos a respon­der, concretamente, à pergunta que Deus faz a todo o homem: «Onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9).

2 - A guerra é um facto.

A guerra, no interior do país, não é mais um boato ou uma simples ame­aça. A guerra, com todo o seu cortejo de sofrimento e de luto, é de facto uma dura realidade, afectando já milhares e milhares de pessoas. Muitos são já os homens armados, muitas as armas e as acções armadas, muita a intran­quilidade e a insegurança. A guerra avança, o sofrimento aumenta, o luto e o sangue gritam vingança na boca de uns, clamam reconciliação e paz na boca de outros. A guerra avança. As armas e as acções armadas afectam já nove das dez províncias do nosso país e dez dos dezoito distritos desta província. A guerra avança e parece tornar-se cada vez mais dura. A violência alastra obrigando o país a mobilizar para a sua segurança e defesa grande número de homens e o melhor dos seus recursos. A guerra avança e com ela os cri­mes e a morte.

3 - O avanço dos crimes e da morte.

De facto com o avanço da violência e das acções armadas avançam tam­bém os crimes e a morte. Teremos, porém, de gritar, mais uma vez, que os assassinatos, as execuções sumárias, a liquidação de capturados ou de sus­peitos, os espancamentos brutais, as mutilações, os maus tratos e castigos desumanos, os massacres, as represálias contra populações indefesas são cri­mes de lesa-humanidade, degradando e responsabilizando perante a história quem os ordena ou pratica.
Teremos de continuar a dizer que os ataques armados a pessoas inocen­tes, as medidas punitivas degradantes, a violação de mulheres, a destruição de bens indispensáveis à vida e subsistência das populações, o rapto de pes­soas inocentes, as prisões arbitrárias, a extorsão de confissões, a vingança contra pessoas apanhadas em zonas suspeitas, as operações de efeito não controlável, o abuso das armas destruindo a dignidade e os direitos funda­mentais das pessoas, das populações e do Povo são crimes infames, tor­nando infame quem os permite ou pratica.
Teremos de continuar a afirmar que o terror, a crueldade, a instrumenta­lização das populações, a intimidação pela ameaça, pela injúria ou pela força das armas, as emboscadas ou minas podendo atingir pessoas inocentes, as estratégias da "terra queimada» são meios imorais e criminosos.
Muitos são já os crimes desta violência armada e nenhuma das partes poderá dizer que tem as mãos limpas. Há crimes e há criminosos de ambos os lados. Mas a história dirá quem mais abusou da violência e da força das armas, pois a voz do sangue não deixará de gritar na consciência e na memória do Povo.

4 - Mesmo na guerra, os homens são sempre homens.

Diante do crime e da hipocrisia há que afirmar que os homens, mesmo na guerra, não deixam de ser homens nem deixam de estar obrigados a comportar-se como tais. Mesmo no mais duro da luta, nenhuma das forças poderá esquecer que há valores cujo atropelo será sempre um crime. As atro­cidades, os atentados sistemáticos contra a vida e a dignidade humana, as diversas violências degradantes e cruéis são actos que não se conciliam com os sentimentos mais elementares da consciência humana, nem com as exi­gências mais rudimentares da Moral e do Direito.

Mesmo no mais aceso da luta as regras costumeiras e convencionais, estabelecidas pelo Direito Internacional para humanizar os conflitos, perma­necem, em princípio, obrigatórias. O mesmo se diga dos imperativos do direito natural no que toca ao respeito pela vida e pela dignidade da pessoa humana e ao comportamento dos povos e das comunidades políticas porven­tura envolvidas em lutas ou conflitos.

A consciência humana, quando não dominada por teorias demasiado conflituosas ou quando não corrompida pela sede de vingança, pela vontade do poder ou pela tentação da força, recusa-se a aceitar, em qualquer momento, o direito ilimitado à violência ou à força das armas. Aceitar que Ka guerra santifica os meios mais terríveis» será sacralizar uma tremenda aberra­ção e abrir caminho ao império da selvajaria e da barbárie.

Mesmo na guerra, os princípios de humanidade e de moral, constitutivos do Homem, das sociedades e das nações, continuam a impor a sua validade e urgência. Os homens ou as comunidades políticas, em guerra, não são homens ou comunidades fora da lei ou de qualquer imperativo ético. Os homens, mesmo na guerra, são sempre homens. As comunidades políticas, mesmo em tempo de guerra, continuam sujeitas aos princípios éticos, pró­prios das comunidades e dos homens civilizados e cultos.

O princípio de que na guerra «a necessidade extrema não conhece a lei» não autoriza ninguém a usar, nas acções militares, ou nas acções de guerri­lha, meios intrinsecamente perversos e não permite, em tempo algum, o emprego da força, sem qualquer referência à ética e à lei; não autoriza, seja quem for, a legitimar o falso princípio de que os fins justificam os meios, quaisquer que eles sejam.

Seguir esta via, seria instaurar no interior dos homens e das sociedades a irracionalidade, a brutalidade e a lei do mais forte. A guerra é, sem dúvida, um acto de violência extrema e uma fonte de muitas e diversas violências. Contudo, nenhuma guerra, tenha a razão que tiver, poderá gozar dum direito ilimitado à violência. A guerra, as acções armadas, as operações militares, para não se tornarem intrinsecamente perversas e brutais, devem ter em conta balizas que a Moral e o Direito positivo lhes impõem. A guerra, por mais cruel ou dura que seja, não pode ignorar os imperativos morais e jurídi­cos que brotam da dignidade do Homem e dos povos.

5 - Mas donde vem esta guerra?

Na busca da paz, sincera e honesta, impõe-se, antes de mais, um inqué­rito sereno às causas da violência e da guerra. O Concílio diz-nos que «entre as causas das guerras sobressaem as diversas injustiças» (G.S. 83). Injustiças políticas, injustiças económicas, injustiças jurídicas.

A justiça, nas suas várias dimensões, é sem dúvida uma das bases indis­pensáveis à construção e crescimento da paz. Qualquer povo que procure a paz deverá ter em conta a justiça, fazendo dela, juntamente com a verdade e o amor, o fundamento e a força motriz de toda a actividade social e política. Mas a justiça que funda e garante a paz não é de modo algum uma justiça mutilada ou instrumentalizada em favor de interesses partidários, ideológicos, económicos ou políticos, nem tão-pouco uma justiça privilegiada num aspecto e desprezada ou reduzida noutro. A justiça inteira e isenta deve servir o Homem inteiro. Deve abranger o todo do Homem - a sua dimensão indivi­dual e subjectiva, a sua dimensão social e objectiva, a sua dimensão histórica e a sua dimensão trans-histórica - e o todo da sociedade. Por isso, a justiça do Homem e da sociedade não poderá limitar-se à justiça social ou à justiça política. Terá de ser, ao mesmo tempo, uma e outra e terá de prever com efi­cácia a garantia e o exercício dos direitos e deveres de cada um e de todos.

Esta justiça inteira e isenta abrange por isso, como primeira referência obrigatória, a intangível dignidade da pessoa humana, e a sua vocação inte­gral, as suas liberdades fundamentais, os seus direitos sociais e jurídicos invioláveis.

E são, entre outras, liberdades fundamentais a liberdade de opinião e de expressão, a liberdade de consciência e de escolha da vocação, a liberdade de culto e de religião, a liberdade de reunião e de circulação, a liberdade de migração, a liberdade de aderir ou não aderir a ideologias, sistemas ou modelos sociais, económicos, educacionais e políticos, a liberdade de per­tencer ou não pertencer a organizações sociais ou a partidos políticos, a liberdade de assentir ou de dissentir, a liberdade de procurar a verdade do Homem, do mundo e de Deus, a liberdade de ser Homem e de agir como pessoa humana.

São, além de outros, direitos sociais e jurídicos o direito à iniciativa no terreno económico, ao trabalho, ao salário justo, à segurança social, o direito às condições de vida indispensáveis ao crescimento e à realização integral de cada um, o direito à participação equitativa nos bens económicos, sociais, educacionais e culturais da comunidade e da Nação, o direito a participar na gestão e na criação da educação e da cultura, o direito a ter mais para ser mais, o direito à segurança jurídica e a uma sábia administração da justiça.

6 - A segurança jurídica.

Desde os tempos mais remotos, a administração da justiça foi um dos sinais mais sensíveis da validade e de rectidão dum regime ou dum determi­nado sistema. «Não cometerás injustiças nos julgamentos», «julgarás o teu pró­ximo com imparcialidade» (Lev. 19, 15). «Não farás claudicar a justiça, não farás distinção de pessoas e não aceitarás presentes corruptores. Deves pro­curar a justiça e só a justiça» (Deut, 16, 19).

O próprio rei só é abençoado quando exerce correctamente a justiça e, exercendo-a, demonstra que ama efectivamente o seu Povo e que deseja seri­amente a paz e o bem-estar para todos. «Julgue ele o seu povo com justiça e a paz será firme e abundante» (Sal. 72). A administração correcta da justiça gera o bem-estar e a paz. O contrário põe em causa os sistemas e provoca a intranquilidade, o mal-estar e a guerra. Há correcta administração da justiça quando a elaboração das leis tem em conta o direito natural, a dignidade, o crescimento, o bem-estar real das pessoas, da sociedade e do Povo, quando as leis são promulgadas e aplicadas pelos órgãos competentes, e ao executa­-las continua válido o princípio de que a legalidade é para o Homem e não o Homem para a legalidade. Há correcta administração da justiça quando as pessoas e o povo estão protegidos e defendidos pelos órgãos e pelas leis em vigor e quando experimentam, frente aos abusos e às arbitrariedades, uma efectiva segurança jurídica. E esta só existe quando as pessoas, como cida­dãos livres e ao mesmo tempo comprometidos com o bem inteiro da comu­nidade e da Nação a que pertencem, podem invocar o direito à tutela jurídica dos próprios direitos, inclusive perante o Estado, e sabem que gozam do direito de não serem objecto de violação da intimidade da família e do domi­cílio, do direito de não serem condenados antes de os tribunais competentes as julgarem, de acordo com a lei, previstas as necessárias garantias de isen­ção e de defesa e excluído, no processo jurídico de instrução, todo o tipo de arbitrariedade, de estratégia política, ou métodos policiais.

7 - A injustiça é mãe da guerra.

O Papa diz-nos que «o espírito de guerra surge e amadurece onde são violados os direitos fundamentais do Homem». Onde houver desprezo pelo Homem, os direitos e os deveres que lhe são devidos, aí haverá sementes de guerra. As situações de injustiça, as arbitrariedades, os abusos, as diversas medidas opressivas ou humilhantes alimentam e alargam estes focos de guerra. Por outro lado, a «história diz-nos que o homem justo, mesmo quando a ditadura ou o totalitarismo abafam durante algum tempo as queixas das pessoas exploradas ou reprimidas, não deixa de manter a própria convic­ção de que nada poderá justificar uma tal violação dos direitos humanos. E por isso tem a coragem de defender a causa daqueles que sofrem e recusa-se a capitular perante a injustiça e a comprometer-se com ela» (João Paulo II, Mens. 1/1/84).

A violação dos direitos fundamentais da pessoa humana gera um clima propicio à guerra, cria e desperta a contestação, a rejeição e a revolta. A injustiça é mãe da guerra.

8 - A falta de condições de vida.

Uma outra causa do espírito de guerra poderá consistir na falta de condi­ções que permitam a todos e a cada um crescer e viver como pessoas huma­nas, iguais, solidárias e dignas por natureza. A criação deste conjunto de condições pertence a todos os membros da comunidade política e social, mas a primeira responsabilidade cabe naturalmente ao poder político, uma vez que o .. bem comum» constitui o seu dever fundamental. Os poderes públicos têm, efectivamente, o dever de procurar e de assumir uma linha política, económica e social que possibilite a cada um viver com dignidade e torne efectiva a participação de todos na consecução do bem comum.

Onde houver uma política alheia ao bem comum, aí haverá opressão e violência. Onde houver, por culpa da política e da desorganização social, uma falta prolongada de bens indispensáveis à vida, aí haverá espírito de guerra. A fome, a nudez, a ignorância, o atraso social e político, a presença de epidemias e de mortes prematuras são caminhos de violência e de guerra. A miséria imerecida é, de facto, uma fonte de tristeza, de humilhações e revolta. A fome de pão, de vestuário, de cultura, de liberdade e de alegria é, sem dúvida, uma das causas da violência e de guerra. A fome, como a injus­tiça, são fonte de violências e de guerras.

9 - Os abusos do Poder.

Outra causa do espírito de guerra será certamente o abuso do Poder. À vista da sociedade e do Povo faltarão a ordem e a fecundidade se lhe faltam homens e mulheres legitimamente investidos de autoridade e que lhe asse­guram a salvaguarda dos direitos e deveres de cada um e os leve à consecu­ção do bem comum (Conf. P. T. 46). Por isso, não pode haver uma socie­dade bem organizada e fecunda em serviços e em bens essenciais ao crescimento de todos, sem um poder legitimamente constituído.

Mas este poder, tenha a forma que tiver, deverá obedecer à finalidade que lhe é própria e à razão que o justifica. Ora, a finalidade e a razão de ser da ordem política é o Homem na sua dimensão individual, social e histórica, no seu desenvolvimento integral, na sua participação plena no crescimento da sociedade e da Nação. É o bem geral do corpo social. O bem do con­junto dos membros duma sociedade, o bem comum. E o bem comum é aquele que engloba o conjunto de bens espirituais, políticos, económicos, sociais e culturais que permitam a cada um e a todos alcançar mais plena e facilmente a vocação a que são chamados e a perfeição que lhes é própria (Cf. G. S. 74).

O bem comum é diferente e superior à soma dos bens individuais. É a vida humana em colectividade a qual pressupõe que todas as actividades económicas, sociais e culturais sejam orientadas e ordenadas em função da realização de cada pessoa e da sociedade, enquanto sociedade de homens dignos, livres, responsáveis e solidários.

Assim, bem comum é a base e o princípio de uma moral social e política, o ponto de referência que permite avaliar da justiça e da injustiça duma ordem política e duma ordem social, a razão de ser de todo o Poder legitima­mente constituído. «Hoje crê-se que o bem comum consiste sobretudo no res­peito, na defesa e promoção dos direitos e deveres das pessoas e do Povo» (Cf. P. T. 60).

O bem comum, assim considerado, obriga o poder público a examinar constantemente as suas linhas de acção, os seus projectos e modelos sociais e políticos. Na verdade, estes devem corresponder ao bem autêntico de todos, e não apenas dum grupo ou de um determinado aspecto social e polí­tico da Nação. Por isso, o poder constituído deverá saber desvincular-se de interesses particulares e parciais e não se deixar dominar por ideologias ou sistemas que de algum modo ameacem o bem integral das pessoas e do corpo social ou tentem fazer dum determinado regime, ou modelo social, um fim em si mesmo. Em qualquer circunstância ou situação social e histórica, o poder constituído deverá ter em conta que o homem todo e todos os homens serão sempre o fim, o centro, o sujeito de qualquer regime político ou de qualquer modelo social.

Deste modo, haverá abuso do poder quando as coisas, as ideologias e os regimes, em si mesmos, têm o primeiro lugar e quando a pessoa humana ou o próprio povo é de algum modo utilizado e desprezado. Haverá abuso e desvio do poder quando os direitos e os deveres fundamentais das pessoas e do povo não são claramente respeitados, quando as culturas locais não são assumidas, quando as liberdades de iniciativa, de criatividade e de participa­ção no projecto em curso não são suficientemente reconhecidas e garantidas.

Haverá abuso do poder quando se fomentam elitismos sociais e políticos e quando não se empregam todos os esforços para vencer desigualdades e situações de injustiça e de degradações a que tantos milhares de homens e mulheres estão imerecidamente sujeitos. Haverá abuso e corrupção do poder quando no posto de comando se instala como linha o poder autoritário, o poder burocrático, o poder cujos meios de contacto com o povo é a política da força mais do que a força da política. Todos sabemos, porém, que o abuso, o desvio e a corrupção do poder levam ao mal-estar social e político, causam e promovem o espírito de revolta, de violência e de guerra. O abuso do poder gera efectivamente um clima de violência e de guerra.

10 - A cultura, fundamento da Paz.

"A cultura é expressão do Homem, a confirmação da sua humanidade. O Homem cria a cultura e por ela cria-se a si próprio». E cria-se a si próprio pelo esforço interior do seu próprio espírito, do seu pensamento, da sua vontade e do seu coração.

A cultura é expressão da comunicação social, do pensamento comum, do sentir comum e da são cooperação entre os homens e os povos. A cul­tura é, por isso, um bem comum da Nação. Esta é, com efeito, a grande comunidade dos homens que se unem pelos laços mais diversos, mas sobre­tudo pelos laços da cultura. "A Nação existe pela cultura e para a cultura. É na cultura que reside ao longo dos tempos e das vicissitudes históricas a ver­dadeira soberania dum povo». Enquanto a cultura dum povo não for domi­nada, destruída ou alienada, esse povo será sempre soberano. Ao contrário, quando a cultura de um povo está em perigo, estará também em perigo a sua verdadeira e mais profunda soberania. A paz social e política estará, por isso, ameaçada a partir das suas raízes mais fundas: a» cultura do povo, das famílias, da Nação.

11 - O Homem, transmissor de cultura.

"O Homem, e só o Homem, é obreiro e actor da cultura. Só ele se exprime e se realiza através da cultura. Ele é, ao mesmo tempo, sujeito e cri­ador de cultura. E quando cria a cultura - ou seja, o conjunto de valores espirituais, materiais, sociais, políticos, morais e artísticos - o Homem torna­-se mais Homem, mais comunidade solidária, mais Nação soberana» Ooão Paulo II, Dis. Unesco, 2/6/82).

Mas quando não cria ou não pode criar a cultura, o Homem torna-se menos Homem, degrada-se e destrói-se. O mesmo acontece com a comuni­dade, a família, a Nação como sujeitos e factores de cultura. É que a verda­deira cultura não consiste em "ter mais», em aumentar cada vez mais a pro­dução, o poder económico ou o poder político, descbnhecendo e desvalorizando o "ser mais», o crescimento integral e pleno de cada pessoa, da comunidade e da Nação. É verdade que as condições concretas da exis­tência humana, fruto das relações de produção e de troca, condicionam e determinam a criação e a transmissão da cultura. As culturas humanas reflec­tem, de facto, os diversos sistemas de relações de produção. Mas, em última análise, não é este ou aquele sistema que está na origem mais íntima do acontecer cultural, mas o Homem concreto, o Homerrt que vive num deter­minado sistema e que o aceita ou procura mudar.

"Não é possível pensar em cultura sem subjectividade humana e sem causalidade humana. O Homem é sempre o acontecimento primeiro, o Homem é o primeiro sujeito da criação e da transmissão cultural. (João Paulo II, Disc. Unesco, 2/6/82). Negar ou ludibriar esta verdade é matar o Homem por dentro, é materializar a força espiritual do Homem, das comuni­dades humanas e do próprio Povo. É privar o Homem das comunidades humanas e do próprio Povo. É privar o Homem da sua profunda subjectividade, tornando-o objecto de manipulações políticas, sociais e económicas. É privar o povo da sua capacidade de sujeito da história e da própria socie­dade, reduzindo-o à condição de objecto, de instrumento e de meio.

O Homem, ou o povo, que não pode criar ou transmitir a cultura que o torna original e inconfundível, é um homem ou um povo a caminho da revolta, da violência e da guerra. Se queremos a paz, defendemos a cultura do Homem e do povo.

Ninguém desconhece que as transformações sociais, económicas e políticas produzem também uma transformação dos valores culturais. Há valores que ficam para trás e há valores que surgem de novo. Há valores que se impõem e há valores que não têm mais lugar.

É nestas mudanças que os principais responsáveis pela criação e trans­missão de cultura deverão estar atentos para não permitir que a identidade ou cultura própria do Homem e do povo seja agredida, assimilada, destruída ou manipulada, para não aceitar que a "produção», o "ter mais», sacrifique o "ser mais» do Homem e do povo, ocupando o primeiro lugar na consecução do bem-estar da sociedade e da Nação.

12 - As agressões culturais.

Infelizmente, nem sempre foi grande a atenção e o cuidado em salva­guardar e em promover o conjunto de valores espirituais, morais, sociais, políticos, educacionais e artísticos que dão ao nosso povo uma fisionomia, uma expressão cultural e histórica absolutamente original e própria. Rico ou pobre, cada povo tem a sua cultura, o conjunto de valores que o tornam inconfundível. Desprezar ou destruir estes valores, ignorar ou amarfanhar o poder de os criar e alargar em contacto e diálogo com outras culturas e civilizações é cometer um erro grave, é abrir caminho a novas formas de opressão e de alienação. "Um povo que nisso consentisse perderia o melhor de si mesmo: sacrificaria, julgando encontrar a vida, a razão da sua própria vida» CP. P. 40). Ao longo dos séculos e destes últimos anos, tão marcados por diversas e profundas mudanças, muitos dos valores que constituem de facto o património espiritual e cultural do Homem moçambicano, do Povo e da Nação, tais como o sentido da justiça e da dignidade da pessoa humana, o sentido da história e da transcendência da vida, o valor da liberdade, das relações sociais, da relação com Deus, fonte de vida, o valor da festa e da alegria de viver não foram devidamente reconhecidos e acau­telados.

A precipitação de tantos, a má vontade e esquerdismo de alguns, a incompetência, a ignorância e o burocratismo de muitos tornaram possível um clima de anarquia e de subversão cultural, destruindo a fisionomia origi­nal e inconfundível do povo, amarfanhando o seu poder criativo e o seu génio cultural e abrindo caminhos a possíveis e sempre perigosos neocolonia-lismos culturais e espirituais. O resultado de toda esta agressão, precipitada e agressiva, está à vista.

Sente-se na verdade um clima de anarquia moral, cultural e espiritual. Vive-se, a diversos níveis, e particularmente a nível das camadas jovens, uma assustadora desintegração moral e cultural, uma corrupção que não se limita aos valores do corpo e da vida em sociedade, mas atinge também, e com gravidade, os valores da inteligência, do coração, da liberdade e da própria maneira de ser e estar no mundo. Mas não será a agressão cultural uma vio­lência destrutiva? E não está na base da intranquilidade esta agressão ao Homem e ao Povo? E não será a desintegração cultural, moral e espiritual um caminho aberto à violência e à guerra?

13 - O cultivo do ódio e da violência.

Nesta escalada de agressão há um tipo de violência particularmente opressiva e perigosa. Trata-se de modelos de vida, formas de sentir e de estar no mundo, alheios ou estranhos ao sentir e ao viver do Povo e do Homem africano. Cremos que o ódio e a violência como tais são formas de viver e de agir alheias e estranhas à cultura e à alma do Povo e da Nação. O Povo moçambicano é um povo que ama a vida e a paz. É um povo que aspira à amizade, à compreensão e à solidariedade. Para ele, o ódio e a vio­lência, como a vingança e o assassínio, são um mal que urge combater e superar.

O ódio e a violência não são valores para o povo africano, mas contra­valores. Não são caminhos de vida, mas caminhos de morte. Pretender, por isso, inculcar na inteligência e no coração do povo ideologias de ódio e de violência, como forças construtivas duma sociedade de homens iguais, soli­dários e livres, é cometer uma grave agressão, é provocar situações de agres­são, de desilusão e de revolta.

Por outro lado, cultivar a violência e o ódio não será cultivar o espírito de guerra, o espírito de luta no seio das famílias, da sociedade e da Nação, não será provocar a ameaça permanente contra a vida e contra a paz social e política?

Há quem diga que o ódio e a violência fazem parte da verdadeira liber­tação dos povos, que sem violência - a qual pode tornar-se num dado momento violência física, violência armada - não haverá mudança social em favor dos mais fracos. Que a guerra, em sua última instância, não é mais que «um mal necessário», um meio indispensável à revolução mundial, um dado inelutável das -leis dialéticas da História», que a guerra não é mais que -a continuação da política, embora por outros meios»; os meios físicos, os meios violentos e armados. Mas, se é assim, por que estranhar a violência, o ódio e a guerra? A razão e a consciência mais viva da humanidade e dos povos dizem-nos que a guerra é um mal. Que a guerra é a mãe da morte e do luto e jamais a mãe da vida e da alegria de viver. Os desejos e as aspira­ções mais profundos dos homens e dos povos não são de violência homicida e fratricida, mas de concórdia, de amizade e de paz.
O Homem é, por natureza, um ser social, solidário e fraterno. A guerra, como tal, não vem do Homem humanizado e sábio, não vem dos povos ou das sociedades civilizadas e cultas, não vem dos princípios e dos sistemas libertadores do Homem inteiro e de todos os homens, mas do Homem desu­manizado e corrompido, das sociedades opressoras e oprimidas e dos siste­mas desumanos e injustos. Cultivar o ódio e a violência é incutir e promover o espírito de guerra; é abrir caminhos à destruição e à morte.

14 - Ideologias e sistemas.

Nenhuma ideologia é inteiramente libertadora. Umas «absorvem a liber­dade individual na colectividade, negando, simultaneamente, toda e qualquer transcendência ao Homem e à sua história pessoal e colectiva. Exaltam a vocação pessoal, subjectiva, espiritual e religiosa». "Outras afirmam a liber­dade individual, subtraindo-a a toda a limitação, estimulando-a na busca exclusiva do interesse e considerando, por outro lado, as solidariedades soci­ais como consequências mais ou menos automáticas das iniciativas individu­ais e não já como um fim a atingir e como um critério mais alto do valor e da organização social. (O. A. 26). Nenhuma ideologia é inteiramente libertadora. Todas são ambíguas e, por conseguinte, limitadas e perigosas.

O primeiro perigo é a alienação do Homem pela ideologia. E há aliena­ção quando o Homem pensa, decide, age, não por conta própria, mas por conta da ideologia ou do sistema que a mesma ideologia inspira e anima. Quando o Homem não é mais sujeito, mas objecto das ideologias e dos siste­mas. Mas um homem alienado é um homem desumanizado, um homem vio­lento e oprimido. As ideologias alienantes são desumanas e opressivas. Este é o segundo perigo das ideologias: a opressão das mentalidades, das consciên­cias e da liberdade de pensar, de escolher, de aceitar ou de rejeitar.

As ideologias não são meras abstracções, sem incidência na mentalidade e nas actuações históricas. Uma ideologia viva é sempre uma força transfor­madora. Age sobre a própria pessoa, sobre a história e sobre os povos. Age, transformando para melhor ou para pior. E quando as ideologias agem dum modo indiscutível e totalitário, a opressão das mentalidades, das consciências e das liberdades não pode deixar de surgir.

As ideologias totalitárias, indiscutíveis e dogmáticas são, de sua natureza, opressivas e anti-humanas. Oprimem e destroem o homem real, tentando construir um homem ilusório e utópico.

A dignidade humana opõe-se às ideologias totalitárias e escravizantes, às ideologias que sistematicamente alienam, oprimem ou mutilam o Homem, às ideologias que, alegando a criação de uma sociedade solidária, sem desigualdade nem exploração, dividem os homens em maus e bons e os lança uns contra os outros, gerando assim um clima e um sistema económico, social e político, de violências e de luta. As ditaduras e os totalitarismos ideo­lógicos são contra a dignidade do Homem e, consequentemente, contra o aparecimento duma sociedade de relações, a caminho da solidariedade e da paz.

A fé cristã opõe-se também às ideologias totalitárias, como concepção do Homem, visão do mundo, construção e sentido da história, na medida em que essas ideologias reduzem o Homem a uma só dimensão, o «enclau­suram no materialismo e no determinismo da história e lhe negam a dimensão transcendente, a abertura do infinito de Deus vivo, o qual inter­pela historicamente cada homem e todos os homens, como liberdade res­ponsável do mundo e das potencialidades inesgotáveis da criação e da vida» (Cf O. A. 27-31).

Todas as ideologias, como os sistemas inspirados e animados por elas, são ambíguas e, como tais, podem criar opressões, mesmo onde julguem criar um homem novo, uma nova sociedade. E se toda a opressão gera o espírito de guerra, todas as ideologias ambíguas são caminhos abertos à guerra e mais ainda quando totalitárias e indiscutíveis.

O Papa diz-nos que as ideologias totalitárias, ou as ditaduras, na medida em que abafam, reduzem e instrumentalizam a pessoa humana ou violam os seus direitos fundamentais, não podem deixar de gerar as tensões, os confli­tos, o espírito de violência e de guerra (Conf. João Paulo II, Mens. 1/1/84).

15 - As tensões exasperadas e a acumulação das armas.

Estas são também um caminho para a guerra. Na verdade, as tensões entre as pessoas, entre os grupos sociais, os povos e as Nações, quando exasperadas pelas ideologias ou sistemas de corrupção das mentalidades e da consequente exploração do homem pelo homem, do Homem pelo Estado, dum povo por outro povo, não podem deixar de favorecer e provo­car a violência.

Do mesmo modo, a acumulação incontrolada de armas de morte e dos meios que a favorecem torna a guerra cada vez mais dura, mais cruel e mais brutal.

O mundo actual encontra-se como que prisioneiro duma rede de ten­sões profundas e graves: tensões entre o Leste e o Ocidente, tensões entre o Norte e o Sul, tensões entre povos do mesmo continente ou da mesma região, tensões entre os diversos componentes da Nação, tensões entre as sociedades e os estados, tensões entre a pessoa humana e a sociedade. Por outro lado, a corrida aos armamentos é cada vez maior. E, não obstante todos os esforços para a redução das armas, os países continuam a gastar em armas e em munições o melhor dos seus orçamentos.

As tensões de vária ordem, agravadas por ideologias de expansão e de domínio, de imperialismo e de neocolonialismo, ou por ideologias de subver­são e de violência, levam, sem dúvida, à hostilidade e à guerra. As armas de agressão ou as armas de defesa continuam a ser para uns e para outros não tanto uma força de dissuasão e de ultrapassagem pacífica dos conflitos, mas uma afirmação de força e um estímulo à agressividade e à guerra. O povo em armas é potencialmente um povo em guerra. A escalada das armas leva à escalada do orgulho, da agressividade e da violência. A exasperação dos con­flitos, pela instrumentalização das situações, das pessoas e do povo, leva à escalada das armas, ao militarismo e ao clima de ameaça, de medo e de guerra.

16 - As agressões imperialistas e racistas.

Outra causa de violência e de guerra será, sem dúvida, a agressão provocada e comandada por interesses, claros ou ocultos, do imperialismo e do racismo.

Há imperialismo quando um país ou regime procura expandir-se, alargar e consolidar a sua influência e os seus interesses, dominando, explorando e mantendo na dependência económica e política outros países e outros povos, considerados, por via da regra, inferiores e atrasados, sobretudo no bem-estar social. O imperialismo económico, político e também ideológico é um facto e os povos agredidos por esta forma de exploração e de domínio são já muitos.

O imperialismo económico, tendo como objectivo primário dominar e explorar as potencialidades económicas dum país, torna os povos ricos cada vez mais ricos e os povos pobres cada vez mais pobres. É uma agressão estrutural, tanto mais que os povos ricos se tornam cada vez mais fortes à custa da independência e da soberania dos povos oprimidos ainda pelo sub­desenvolvimento e pela miséria. O imperialismo gera o círculo infernal da injustiça social e da mútua agressão. Cria e promove a escalada da violência e da má vizinhança. Difunde e instaura ideologias como inspiração e suporte de regimes e modelos económicos, políticos e sociais. Por isso, o imperia­lismo ultrapassa o campo económico e invade também o campo cultural e político. Há, juntamente com o imperialismo económico, o imperialismo ide­ológico influenciando a soberania cultural e política dum povo. Há o imperi­alismo disfarçado de solidariedade, de cooperação, de apoio militar, tecnoló­gico e político, de grandes ou pequenas ajudas ao progresso e desenvolvimento do Povo.

Mas o imperialismo, tenha a face que tiver, use os meios que usar, será sempre um crime contra a dignidade e direitos dos povos. De facto, todos os povos são iguais em dignidade e em direitos. Nenhum povo é, por natureza, inferior a outro povo e os povos que se julgam e se afirmam superiores e elei­tos, injuriam os outros povos e desonram-se a si próprios. Todos os povos são iguais na dignidade que lhes é inerente e nos direitos que lhe são próprios.

Entre os direitos fundamentais figuram o direito à soberania e à indepen­dência total e completa, o direito ao desenvolvimento integral e autêntico, o direito ao bem-estar social e político, o direito à própria cultura e identidade, o direito a organizar e a gerir, por si mesmos, o regime económico e político livremente escolhido, o direito a ser respeitados e a viver com os outros a solidariedade e mútuo apoio e os justos combates por um mundo mais humano e mais fraterno.

Por isso, nenhum povo, por mais desenvolvido ou avançado que seja, tem o direito de violar a dignidade e o direito dos outros povos ou países, explorando-os, mantendo-os na submissão e na dependência, substituindo­-os na responsabilidade política ou económica, ou impondo-lhes, dum modo claro ou simulado, ideologias ou modelos económicos e políticos estranhos.

O imperialismo, tenha ele a cor que tiver, actue dum modo claro, ou dum modo altamente disfarçado, como pode acontecer com os apoios inte­ressados e com a cooperação orientada, é sempre uma grave injustiça e um fermento permanente de violência e de guerra. A cooperação, se deseja de facto combater o imperialismo e dar ao povo inteiro a possibilidade de se tornar cada vez mais responsável e mais livre, não poderá consentir com a ânsia desmedida de lucros, com ambições nacionais e desejo de domínio político, com cálculos e estratégias militares ou com tentativas de espalhar ou impor ideologias e modelos de vida (Conf. G. S. 85).

A cooperação colonialista e interessada é sem dúvida uma forma de imperialismo. E, como todos os imperialismos, gera e espalha o mal-estar, a violência, os conflitos e a guerra. Os povos que actualmente apoiam e aju­dam Moçambique, na consolidação da independência e na luta contra o sub­desenvolvimento, devem estar atentos para não caírem na tentação do impe­rialismo político, económico ou ideológico, criando assim um mal-estar que possibilite a violência, o ódio e a guerra.

17 - As agressões racistas.

O racismo é simultaneamente uma teoria e uma prática, fundadas na crença da superioridade de uma raça, determinando uma política relativa­mente a outras raças, consideradas inferiores.
Como teoria e como prática, o racismo é uma aberração e uma injustiça estrutural e a política que dele nasce não pode deixar de ser anacrónica e opressiva e de provocar relações de violência e até de extermínio. O racismo é, por conseguinte, agressivo, anti-social e anti-humano por natureza.
E mais agressivo se torna quando, por razões estratégicas ou políticas, decide afirmar-se ou consolidar-se, e quando, combatido de fora ou de den­tro, passa a defender-se e a contra-atacar. Os regimes racistas não conhecem o caminho do diálogo humano e político com as raças ou os povos julgados inferiores ou inimigos. A resposta às questões que o possam pôr em causa serão sempre as medidas violentas ou então as manobras sociais e políticas. A guerra, que nos oprime e aflige, tem certamente nestas medidas uma das suas causas reais, não porém a sua causa primeira e menos ainda a sua causa única.

18 - A sensibilidade do povo.

A desilusão e o desencanto do povo são também uma das causas do avanço e do alargamento desta guerra. Na verdade, a guerra avança não só porque as armas avançam, mas porque há também condições favoráveis. E uma das condições favoráveis é a sensibilidade das populações, a ânsia do Povo por um mundo mais justo. O Povo, dum modo geral, sente na carne e no sangue, no coração e na alma a desilusão e o desencanto, o cansaço e a tristeza.

Espera um mundo diferente, um tempo melhor. Espera quem o liberte das tristezas e duras situações que o destroem e oprimem. E neste desejo abre caminhos àqueles que chegam e lhes anunciam um mundo diferente.

19 - Pensar a guerra com uma consciência nova.

Mas não basta procurar as causas da guerra se queremos deveras cons­truir a paz. Há que descobrir e tomar nas mãos e nos corações os caminhos da paz que neste contexto se mostrem mais dignos e mais eficazes.

O Concílio manda-nos repensar a guerra «com uma mentalidade inteira­mente nova» G. S. 80).
Isto exige, em primeiro lugar, o abandono da mentalidade que vê na guerra uma forma obrigatória de luta pela vida, uma lei da natureza e da his­tória, uma consequência inevitável das más relações de produção e de explo­ração de uma classe por outra. Que vê na guerra o resultado fatal das ambi­ções nacionalistas e da vontade desmedida do poder. Que vê na violência «a parteira da história», e na força a solução mais honrosa dos conflitos e das vio­lências da justiça. A mentalidade nova exige que abandonemos as teorias das guerras santas, e se as houve, e se ainda aparecem, não são de aprovar, mas de condenar. Não há guerras por decreto divino, nem por exigências de fé.

As guerras, mesmo à sombra da religião, são sempre violências cruéis e assassinas. E mais violentas e sanguinárias se tornam quando o fanatismo religioso, ideológico ou político as engendra e sustenta. Não há mais guerras santas, nem gloriosas. As lutas violentas, as armas homicidas não honram nem glorificam seja quem for e haja a razão que houver. As armas mancham de sangue e de crimes os homens e os povos que as usam. Há que deixar a mentalidade das guerras heróicas, cobertas de honras e de glória. Todas as guerras desonram e humilham e deixam na história memórias de sangue. Há que abandonar as velhas teorias das guerras permitidas e justas. Hoje é difícil afirmar e defender a justiça duma guerra, mesmo que se trate duma guerra de legítima defesa, ou duma guerra contra a perversão do poder ou contra situações prolongadas de opressão e de injustiça. É que, por um lado, não há mais proporção entre os fins que se buscam e os meios que se usam, entre o bem que se espera e o mal que se causa. Desde que as guerras se tornaram a continuação da política, embora por outros meios, ou se transfor­maram em actos de vingança, toda a violência e toda a crueldade são possí­veis.

Por outro lado, as armas de que os homens e os povos dispõem ou podem dispor para se defenderem ou para agredirem, para derrubarem as situações opressivas ou fazerem valer a justiça e o direito são tão violentas e têm um tal poder destrutivo que ninguém com mínimo de ética e de respeito pela vida os pode' aceitar como meio legítimo na solução dos diferendos ou dos conflitos em aberto. As armas modernas são meios massivos de destrui­ção e de morte. Mesmo em caso de necessidade, julgado limite ou extremo, o recurso às armas terá de ser pensado, tendo presente que a guerra é sem­pre um mal atroz e desumano. É sempre uma dura e cruel violência cujo poder de destruição e de morte dificilmente se pode prever.

Repensar a guerra com uma consciência nova é desmitizar a guerra, as forças armadas, o poder dissuasivo das armas. É denunciar, como grave injú­ria à dignidade dos povos, o negócio das armas, a corrida aos armamentos, o militarismo, a linguagem da violência e da guerra.
É denunciar, com decisão e coragem, os meios violentos como solução das tensões e conflitos ou como resposta às diversas agressões económicas, ideológicas, políticas, ou como primeiro recurso contra as situações de injus­tiça, ou contra os abusos do poder.
Repensar a guerra com uma mentalidade nova é educar a consciência das pessoas, das sociedades e dos povos na descoberta e na prática dos grandes valores da Paz.

20 - A paz principia no interior do Homem.

A paz frente às situações de injustiça e ao avanço da morte não é paci­fismo, nem cobardia ou conformismo. "A paz não é fraqueza: é força, é potência. É a ordem do amor e da justiça. É vitória constante do amor sobre as paixões e os desejos contrastantes instalados no coração do Homem» (Paulo VI, 10/6/69).

A paz não é uma ideologia soporífera e alienante. A paz é um combate, cuja frente primeira é o espírito do Homem. O combate pela paz terá de começar no mais íntimo do Homem. É que a paz antes de ser uma política é uma vida, um modo de pensar, de querer, de amar e de criar sistemas sociais e económicos. Antes de se exprimir nas contingências históricas, nas rela­ções sociais, a paz afirma-se nas consciências, nas mentalidades e nos cora­ções. Antes de crescer na história dos homens e dos povos, ela toma corpo no mais íntimo do Homem.

A paz é um combate e é uma vitória. Uma vitória contra o egoísmo e o orgulho, contra a vontade de poder e de domínio, contra os instintos de ambição e de vingança, contra os impulsos do ódio e do medo, contra as ideologias da violência e da guerra.

A paz é o Homem aberto ao Homem. O Homem que busca entender esta verdade profunda: os homens nasceram, não para se armarem uns con­tra os outros, não para se odiarem e para se matarem uns aos outros, mas para se amarem e para se entenderem uns aos outros.

A paz é o Homem convertido ao Homem. Por isso, o combate pela paz terá de começar no mais íntimo do Homem. Antes de ser mudança de insti­tuições ou de sistemas terá de ser conversão sincera e constante do Homem.

21 - A conversão à paz.

O Homem não é só dimensão social, produção económica ou acção polí­tica. O Homem é interioridade, é consciência, é coração. Mas falar do cora­ção do Homem é falar da sua consciência, das suas relações com Deus e com os outros, das suas aspirações e desejos, das suas paixões, da sua intimidade profunda, da sua abertura ou da sua recusa aos valores da justiça, do amor e da paz (Conf. João Paulo II, 1/1/84). A paz verdadeira terá de passar pela conversão contínua do coração do Homem. E conversão do coração é o mesmo que dizer conversão das consciências, das mentalidades, das manei­ras de viver e de conviver.

Conversão quer dizer novidade, mudança radical, transformação do Homem pela ruptura com «o Homem velho» e pelo nascimento do Homem da sinceridade, do amor sem fronteiras, da fraternidade, da confiança mútua, da solidariedade, do entendimento e da reconciliação.
Este é o Homem novo, criado na justiça e na santidade verdadeiras. Este é o Homem que vive e transmite não só a novidade do coração, mas do mesmo modo a liberdade de espírito.

22 - A paz é fruto da liberdade de espírito.

Coração novo e liberdade de espírito caminham a par e, tal como na conquista da paz, a justiça e a verdade dão as mãos (Salmo 84). Sem "liber­dade de espírito» não será possível "tomar consciência das atitudes estéreis de ontem e de hoje, do carácter fechado e parcial dos sistemas filosóficos e soci­ais que partem de pressupostos discutíveis e que reduzem o Homem e a his­tória a um campo restrito de forças materialistas», dos sistemas "que não con­tam senão com o potencial das armas e da economia e que juntam os homens em categorias extremadas, pondo-os uns contra os outros»; dos siste­mas "que apregoam soluções de sentido único e que não têm em conta as realidades complexas da vida e dos povos, impedindo-os de tratar das suas coisas livremente» (João Paulo II, Mens. 1/1/84).

Sem esta liberdade de espírito não é possível examinar lealmente "os sistemas que exasperam as tensões e os conflitos, tornando impossível a con­córdia e a paz» e que "levam manifestamente a situações de confusão e de força, congelando o diálogo político entre o povo e os seus dirigentes, entre as forças e os grupos em luta e aumentando a desconfiança, as ameaças e os perigos» (João Paulo II, Mens. 1/1/84).

Sem esta liberdade de espírito, não é possível assumir, sem cálculos nem preconceitos, o sentido da justiça, o respeito pelo Homem e pelo Povo, o sentido do Poder e das instâncias legais, o sentido da unidade a nível das famílias, da sociedade e da Nação. A paz exige um coração novo, um modo de olhar os outros, de pôr em causa as situações e os sistemas. Um modo de organizar e de construir, na justiça e no amor, a comunidade social, econó­mica e política.

23 - A paz exige a justiça e o direito.

A paz, como fruto duma ordem social organizada no respeito pelo Homem e pela sua dignidade inviolável, tem por fundamento a verdade, por norma de conduta a justiça e o direito, por força motriz o amor solidário e por clima normal a comum liberdade, responsavelmente assumida e exer­cida. A paz verdadeira não dispensa a verdade nas diversas tarefas da educa­ção e da política e nos diversos modelos sociais e económicos.

A paz é a verdade do Homem, da história e do mundo. Mas se a paz é a verdade do Homem e da sua vocação na história e no mundo, é também a justiça e o direito. A "paz humana» - como disse Paulo VI à Organização das Nações Unidas - não pode dispensar a justiça e o direito. A paz e a justiça andam juntas. Onde falte o reconhecimento e a defesa dos direitos e das liberdades fundamentais das pessoas e dos povos, aí faltará a justiça e a paz. Onde haja desinteresse e desprezo pelo Homem e pelas suas liberdades intocáveis, onde haja violência contra o Homem e contra os seus intangíveis direitos e deveres, aí faltará a justiça e a paz. Onde se pratique a discrimina­ção, a intolerância, a perseguição por motivo político, ideológico ou reli­gioso, onde se degrade a cultura, a personalidade, a identidade do Homem e do povo, onde se pratiquem manipulações da inteligência e das consciên­cias, onde se cometam violações dos direitos e dos deveres das pessoas e das comunidades sociais, aí não haverá paz verdadeira.

A história diz-nos que não há paz sem justiça, que não há paz sem direito. Uma sociedade de justiça é uma sociedade de direito e uma socie­dade de direito é uma sociedade preocupada com a paz. Justiça e paz andam juntas. "Paz e direito são reciprocamente causas e efeito, um do outro. A paz leva ao direito, o direito leva à paz» (Mens. Paulo VI, 1/1/69).

24 - A paz é a ordem da justiça, do direito e do amor.

Não se trata duma ordem egoísta e desumana, duma ordem fundada e mantida pela força e pelo medo, duma ordem na desordem do direito e da justiça. Trata-se duma ordem cuja base é o respeito pela vida e pelo inteiro crescimento das pessoas e do povo e cujo último fundamento é o Homem, considerado e assumido na sua total e inviolável dignidade.

A paz não é uma ordem social contra o Homem ou contra a comunidade dos homens. A ordem verdadeira não se define pela tranquilidade aparente, nem pela disciplina exterior, nem, menos ainda, pela força física das estrutu­ras sociais e políticas. Mas define-se pelos valores que promovem e libertam o Homem, no seu todo - corpo e espírito, imanência e transcendência, indi­vidualidade e solidariedade, tempo e eternidade - promovem e libertam todos os homens e o povo inteiro. A ordem verdadeira é uma ordem cujos sólidos alicerces são os grandes valores morais, religiosos, económicos, soci­ais e culturais indispensáveis ao crescimento harmonioso e integral de cada um e de todos.

Por isso, não há ordem jurídico-política verdadeira onde haja violência organizada, situações de miséria e de medo, dominação de uns pelos outros, imposição de sistemas ou de ideias, medidas desumanas e arbitrárias, desres­peito pelo Homem e pelo Povo, desleixo e incúria do poder constituído, imoralidade e tolerância de costumes degradantes e corruptos, insegurança jurídica e abusos do poder, apatia e desordem social.

A paz verdadeira é fruto duma ordem moral, jurídica e política verdadei­ramente humana, a caminho de maior humanidade entre os homens e entre os povos. A ordem humana torna viável a paz, a paz humana torna mais sólida a ordem, fundada no Homem. Ordem moral, jurídica e política e Homem digno e livre andam a par. "Homem e paz são termos correlativos. São realidades que se exigem e se integram reciprocamente» (Mens. Paulo VI, 1/1/69).

25 - A paz é fruto do amor.

Mas se a paz é fruto da justiça e da ordem da justiça é também fruto do amor solidário. Amor sem justiça pode tornar-se humilhante. Justiça sem amor pode tornar-se desumana e agressiva. O amor que parte da verdade do Homem, como ser fraternal chamado a criar um mundo solidário, o amor que acompanha a justiça e lhe dá nos momentos mais duros uma face onde brilha o respeito pelo Homem, a reconciliação e o perdão, esse amor criador do Homem novo e de novas relações entre os homens é intrínseco à paz.

A paz é fruto do amor. A paz pressupõe uma escolha. A escolha pelo Homem. A escolha pelo amor solidário, pela mútua confiança e pela amizade fraterna. A amizade e a paz são valores correlativos. Praticar a amizade social e fraterna é praticar a paz social e fraterna. Por outro lado, promover seria­mente a paz entre os homens, a paz entre os povos, ou entre grupos em luta, é promover a amizade leal e sincera.

«A verdadeira paz deve ser fundada sobre a justiça, sobre o sentido da intangível dignidade humana, sobre o reconhecimento de uma inalienável e feliz igualdade entre os homens, sobre o dogma fundamental da fraternidade humana, isto é, do respeito, do amor devido a cada homem, porque é homem, porque é irmão» (Mensg. Paulo VI, 1/1/71). A amizade e a paz são irmãs. A fraternidade e a paz andam juntas. Esta consciência da fraternidade humana universal, como base indispensável da paz, deve tornar-se cada vez mais viva, cada vez mais capaz de transformar a sociedade dos homens em luta, de inimigos uns dos outros, numa sociedade de homens-irmãos.

"Quem ajuda a descobrir em cada homem, além dos caracteres somáti­cos, étnicos e sociais, além das opções ideológicas ou partidárias, um homem-irmão, transforma a terra, de um epicentro de divisões, de antagonis­mos, de insídias e de vinganças, num campo de trabalho solidário e fraterno. Porque onde a fraternidade entre os homens for desconhecida na raiz, a paz também o será” (Mensg. Paulo VI, 1/1/71).

Porque onde não chega a civilização que a Declaração dos Direitos do Homem exprime quando diz: "Todos os homens nascem livres e iguais na dignidade e nos direitos; são dotados da razão e de consciência e devem comportar-se, uns para com os outros, como irmãos”, aí não chegará a civili­zação da paz.

Impõe-se, por isso, uma consciência cada vez mais vasta desta verdade capaz de transformar o mundo: todos os homens são irmãos. «Vós sois todos irmãos» (Mat. 23, 8). Esta é a paz na verdade, na justiça, na solidariedade e na busca leal do mundo mais humano e mais fraterno. Esta é a paz a assu­mir e a construir. Esta é "a civilização do amor”, a civilização dos homens livres, iguais, solidários e fraternos, a civilização dos meios morais, dos meios políticos, diplomáticos e jurídicos, nos momentos de tensão, de con­flito, de ameaça, de medo e de ruptura.

26 - Caminhos da paz.

A paz verdadeira, a paz humana, civilizada, digna e justa não passará pelas forças das armas, mas pela força da razão, da justiça, do direito, pela força das conversações corajosas e dignas, das mediações honrosas e justas, da arbitragem sincera e honesta, dos acordos políticos e jurídicos, firmados e assumidos, por uns e por outros, na base da sinceridade, da lealdade, do mútuo respeito, do mútuo desejo de conciliação e de paz.

O Homem de coração novo, de consciência nova, saberá compreender que a guerra, em si mesma, é algo de irracional, desumano e brutal e que o princípio ético de decisão pacífica dos conflitos é o único caminho digno do homem e dos povos que se prezam de ser verdadeiramente civilizados e cul­tos.

Um coração novo, uma consciência nova, uma prática nova da justiça, dos direitos e das liberdades fundamentais, uma prática nova do amor solidário, da fraternidade e do diálogo político, uma atitude nova frente aos con­flitos, à violência e à guerra, um comportamento novo dos povos mais fracos e mais oprimidos pela fome, pela nudez, pela ignorância e pela tristeza, uma nova ordem nacional e internacional, no que toca à produção, à distribuição e ao consumo de bens fundamentais à vida humana e à construção duma sociedade equitativa e minimamente organizada em favor de cada um e de todos são na verdade, caminhos que levam à paz digna e justa.

Sabemos porém que esta paz social e política, digna e justa, depende de cada um e de todos, não só dos responsáveis da sociedade e da Nação. Sem a conversão de todos e de cada um à paz digna e justa não haverá ultrapas­sagem real dos conflitos em aberto, não crescerá a paz social e política. Impõe-se, por isso, uma profunda educação das consciências, da sociedade e da nação, em vista da paz fundada na força dos valores humanos, éticos, políticos e culturais, na força dos meios pacíficos e dignos e jamais na força das armas ou dos métodos de extermínio e da «terra queimada».

27 - A educação para a paz.

De facto, se a paz começa no coração do Homem - é do coração que nascem as vinganças, as ambições e os assassinatos - a transformação do Homem será a primeira tarefa que se impõe. A educação para a paz é a edu­cação do Homem para a paz. Impõe-se o aparecimento de um tipo de homem consciente, responsável e responsabilizado pelos grandes valores, pelos gestos e pelas tarefas que levam efectivamente à edificação da paz e ao banimento da violência e da guerra.

Isto exige que se abandonem os princípios opostos à paz, as ideologias que segregam sistematicamente o ódio, a violência, a luta, a divisão da socie­dade em amigos e inimigos, em bons e maus. Que se abandonem, de uma vez para sempre, os preconceitos e as discriminações, se ultrapassem as situ­ações de injustiça, de humilhação e de miséria e se eliminem os factores de corrupção e desagradação moral, cultural e social.

Exige, além disso, que se revejam com liberdade de espírito e com a necessária independência política os sistemas de educação que, de algum modo, venham a forjar, em vez de homens sábios, cultos e pacíficos, homens orgulhosos, homens agressivos e violentos, homens burocratas, desumanos e opressivos.

Exige, ainda, o aban­dono dos princípios contrários à paz. E são princípios destrutivos duma paz civil digna e justa o culto e a apologia da força das armas, da violência e da guerra, o desprezo e o desrespeito pela vida, o espírito de ódio e de -liquida­ção do inimigo», as medidas opressivas, degradantes e cruéis, a falta de confi­ança no Homem, como Homem, e nos métodos racionais, nos meios políti­cos e éticos, nos mecanismos que levam ao diálogo, mais do que ao confronto e à luta, nas instituições jurídicas, sociais e políticas, organizadas em favor da justiça e da paz.

A educação da paz nas consciências, nas sociedades, na vida e no seio da Nação impõe o cultivo de valores que a consciência universal reconhece como valores fundamentais duma sociedade dignamente organizada e, por isso, orientada à edificação duma paz verdadeiramente humana, social e política. São eles os valores da verdade, da justiça, da igualdade, da liber­dade, da solidariedade, da fraternidade, da compreensão, da magnanimi­dade, da participação real e afectiva na elaboração e na execução dos diver­sos programas políticos, económicos, sociais e culturais, da discussão aberta e leal dos problemas e das situações, da solução pacífica das contradições e dos conflitos.

Os homens de paz, antes de serem os homens das ideologias, das ciên­cias e das técnicas, os homens do progresso económico e do avanço do poder, terão de ser os homens dos valores humanos, culturais, éticos, espiri­tuais e políticos. Na verdade, a paz digna do Homem, antes de ser um bem económico ou um bem ideológico, é um bem ético, social, cultural e polí­tico.

A educação da paz não pode ignorar estes grandes valores éticos e que, sendo comuns a todos os homens, como aspiração profunda, são de facto a base mais sólida e mais eficaz dum mundo mais humano, duma sociedade mais pacífica, dum povo mais unido e mais fraterno.

Mas não bastam os valores que levam à paz. Urge criar e fazer crescer nas consciências, no ambiente social e na própria sensibilidade da Nação um conjunto de convicções, sem as quais a paz não é possível. Convicções como estas: «os assuntos dos homens devem ser tratados com humanidade e não por meio da violência. As tensões, os casos contenciosos e os conflitos devem ser ultrapassados através de negociações razoáveis e não com a força das armas. As oposições ideológicas devem confrontar-se num clima de diá­logo e de discussão livre. Os interesses legítimos de determinados grupos devem ter em consideração os interesses legítimos dos outros grupos aos quais digam respeito as exigências do bem comum superior. O recurso às armas não deveria ser considerado como o instrumento próprio para soluci­onar os conflitos. Os direitos humanos imprescritíveis devem ser salvaguar­dados em todas as circunstâncias. Não é permitido matar para impor uma solução» (Mens. Paulo VI, 1/1/79).

Estas convicções requerem, sem dúvida, uma longa e paciente educação. Mas é urgente fazê-la se queremos um mundo, uma sociedade, uma nação mais humana e mais voltada para a paz digna e justa. A educação da paz exige ainda que se pratiquem, com decisão e sinceridade, gestos de paz, obras de paz. «Não há paz sem justiça e sem liberdade e sem um empenha­mento corajoso para promover uma e outra» (Mens. Paulo VI, 1/1/79).

As obras de paz terão de ser em favor da justiça, da liberdade e da fra­ternidade a que todos são chamados. O combate pela justiça, pela liberdade, pelo respeito sagrado às pessoas, às comunidades humanas, ao povo e pela convivência na igualdade e na fraternidade, contra as injustiças, as opressões, as violações da dignidade humana e da fraternidade universal é, de facto, um combate decisivo pela paz. Contra a humilhação da fome, da nudez, da igno­rância, da doença, da miséria e do medo, o combate pelo desenvolvimento humano, harmonioso e integral é, sem dúvida, um combate pela paz.

A educação da paz exige obras de paz e gestos de paz. E serão gestos de paz os encontros fraternais a todos os níveis, os momentos de reconciliação e de perdão, as campanhas de amizade e de respeito pela vida e pela paz na justiça e no amor solidário.

A educação da paz é a educação do Homem, do povo e da sociedade. É educação da opinião pública, da sensibilidade e das motivações históricas dum povo. É educação da linguagem pública, da «leitura da história», das razões mais profundas da luta pela vida, pelas comunidades sociais e políti­cas, pela própria Nação.

28 - A paz depende de todos.

Esta educação para a paz não exclui ninguém. Deve ser obra de todos e para todos. A paz não depende apenas dos homens em guerra, mas depende de cada um e de todos. Mas, se a paz depende de todos, a responsabilidade pela sua implantação e triunfo comporta graus diversos.

Assim, «a responsabilidade dos chefes de Estado e dos dirigentes políticos é capital para o estabelecimento e para o desenvolvimento das relações pací­ficas entre os diversos componentes de uma nação e entre os povos». Mais do que os outros, eles devem ponderar seriamente o que significa a paz e o que significa a guerra para os povos que dirigem. «Disto prestarão severas contas à história e ao próprio povo» (Mens. João Paulo II, 1/1/84).

As organizações internacionais, os meios de comunicação social (Imprensa, Rádio, TV) as organizações sociais e políticas têm também um papel importante na construção da paz. É seu dever criar condições de paz, ajudar à solução pacífica dos conflitos e promover, a nível das nações e das sociedades, uma mentalidade de paz fazendo desaparecer a velha mentali­dade de guerra e «a bárbara concepção da guerra útil».

Às famílias cabe também uma responsabilidade própria na construção da paz. É da família que depende, em primeiro lugar, a transmissão e a educa­ção da vida humana. Compete-lhes, por isso, o direito e o dever de tudo fazer para que haja melhores condições de vida e menos ameaças de morte. É que onde houver situações que atentem contra a dignidade da vida e con­tra o direito de cada um a viver com alegria aí haverá ameaça de guerra.

Os cristãos, como discípulos de Jesus, são, por vocação, «obreiros da paz­ (Mat. 5, 9) e não fautores de guerra e de violências (Mat. 26, 52). São eles os primeiros a buscar a «conversão», vivendo assim as exigências dum «coração novo», fecundado pelo Espírito de Deus. Na verdade, é no Espírito, derra­mado nos nossos corações (Rom. 5, 5), que temos acesso ao poder de nos reconciliar uns com os outros, de nos amarmos uns aos outros e de constru­irmos a fraternidade entre todos os homens (Ef. 2, 14).

Por isso, as comunidades cristãs não podem ficar indiferentes às divisões que encontrem, às vinganças que vêem, ao ódio que as cerca, às lutas que espalham o sofrimento e a morte. Fiéis à Palavra de Deus que os manda aparecer no meio de todos como sinal de reconciliação, de justiça, de amor e de paz (2 Cor. 5, 17-21), as comunidades cristãs terão de testemunhar os caminhos da paz, de denunciar os caminhos da guerra e do ódio, e de cons­truir, ao nível que lhes é próprio, a paz na dignidade e na justiça.

As comunidades cristãs, animadas pelo Espírito de Paz e de Amor, aten­tas e abertas às profundas e justas aspirações do povo, deverão trabalhar pela sincera e progressiva ultrapassagem das situações de injustiça, de humi­lhação, de violência, de miséria, de medo e de vingança, esforçando-se ao mesmo tempo por aparecerem, diante de todos, como sinais de reconciliação e de perdão e como fermentos de fraternidade a que são chamados todos os homens.

29 - A paz é um bem urgente.

Urgente não só a nível de Nação, mas também a nível do povo, das famílias, da sociedade, dos bairros, das aldeias, das cidades, das empresas, dos sistemas e das organizações políticas, sociais e culturais.

A paz é um bem necessário a todos e a cada um dos sectores da vida social e política, da vida cultural e económica. A paz é um bem urgente. Um bem que o povo espera e suplica.

Pedimos, por isso, aos dirigentes da Nação, e sobretudo aos homens que de algum modo promovem, dirigem e mantêm esta guerra, que deixem as armas da morte e assumam as armas da vida. E serão armas de morte a mul­tiplicação das forças em luta e das operações de guerrilha e de contra-guerrilha, o aumento do ódio, das vinganças, das represálias e do medo, o aumento das situações de violência, de sofrimento e de morte.

Não parece que estas armas de morte gerem, promovam ou consigam a paz. Não parece que o recurso às armas e à liquidação das forças em luta levem à paz digna e justa. A paz por via das armas será necessariamente uma paz de extermínio a clamar por vingança, uma paz de vencidos a gritar por desforra. Não parece que uma guerra deste tipo venha a ser superada pela vitória de uns e pela derrota de outros.

A história diz-nos que estas guerras de guerrilha não terminam facil­mente com a vitória das armas. E menos ainda quando a luta não se trava entre estranhos, mas entre irmãos e filhos do mesmo povo e quando as populações, frustradas pelo sofrimento, abrem caminho a quem lhes acene com um tempo melhor. As armas podem impor um certo silêncio mas não levarão as forças em luta a dar as mãos num gesto de paz, de reconciliação e de justiça.

30 - Um apelo à paz.

Com os olhos postos na violência que avança, oprimindo as populações, destruindo bens necessários à vida e ao bem do povo, matando homens e mulheres, e tendo presente o clamor cada vez mais forte do povo que sofre, pedimos aos homens da guerra, de um e de outro lado, que deixem as armas e que assumam, na base da justiça, da confiança, do diálogo e da mútua cle­mência e compreensão, os meios políticos, diplomáticos e jurídicos, os meca­nismos e as instituições nacionais ou internacionais capazes de conseguirem uma paz verdadeiramente digna de uns e de outros, digna das aspirações do povo e da história da Nação.

Que os homens e mulheres deste país, que os diversos responsáveis dos destinos deste povo, que os povos que cercam e observam, que as forças em combate se empenhem com coragem e decisão, com espírito de serviço ao bem integral do povo e da Nação, na construção da paz, hoje e aqui.

31 - A paz, dom de Cristo.

As comunidades cristãs sabem que a paz verdadeira não é apenas o resultado do esforço do Homem ou das comunidades sociais e políticas. A paz, com plenitude de vida e convivência, na justiça e no amor, é dom de Cristo, feito Paz (Ef. 2, 14). É fruto do Espírito, vivendo e actuando no cora­ção dos homens e da família humana (G. S. 22). Por isso, é dever dos cristãos empenhar-se, não só nas bases duma paz verdadeira, nos caminhos pacíficos e dignos, mas também assumir o Evangelho da Paz (Ef. 6, 15) e dar testemu­nho de Jesus Cristo, fonte de vida e de paz .
.«Ele é, de facto, a nossa paz. Ele, de dois povos, fez um , destruindo os muros da divisão e do ódio, na cruz, a inimizade» e o espírito de vingança (Conf. Ef. 2, 14). Os cristãos têm o dever de construir a paz, têm o dever de testemunhar a paz e de pedir para todos os homens o espírito de paz.

32 - Conclusão:

«Bem-aventurados os artífices da paz» (Mat. 5). «Que cada vez mais se junte a lucidez à generosidade. Que a paz seja mais verdadeira e lance raízes no próprio coração do Homem. Que o clamor dos homens que esperam a paz seja ouvido. Que cada um aplique todas as energias de um coração reno­vado e fraterno em construir a paz em todo o país, em todo o universo ­(Mens. João Paulo II, 1/1/84).


Sem comentários:

Enviar um comentário