CARTA AO PRESIDENTE SAMORA MACHEL – 24.12.1982





Na ausência de D. Manuel Vieira Pinto e num violentíssimo ataque aos bispos moçambica­nos, o Presidente Samora Machel chegara ao ponto de chamar-lhes macacos. Nesta carta, o Arcebispo de Nampula, ao mesmo tempo que exprime a sua solidariedade e comunhão com os bispos da Igreja Católica de Moçambique, reflecte sobre as condições de possibilidade de um correcto relacionamento entre o Estado e a Igreja, afirmando igualmente que a liberdade de consciência, de opinião e expressão, de informação e de palavra continuavam em causa. E ousa falar da fome e da guerra (palavras então proibidas pelo Partido), propondo a cora­gem do diálogo político. A carta tem a data de 24 de Dezembro de 1982
em D. Manuel Vieira Pinto – Arcebispo de Nampula. Cristianismo: política e mística. Antologia, Introdução e notas de Anselmo Borges, Porto, 1992, ASA

Antes de mais, desejo saudar todo o Povo moçambicano e desejar-lhe, no início deste Novo Ano, mais progresso, mais bem-estar e mais paz.

Queria também comunicar a minha estranheza pelo facto de não ter sido convidado, a tempo, para a reunião da Direcção do Partido e do Estado com os participantes das principais confissões religiosas existentes no país, mesmo depois de, para o efeito, me ter deslocado a Maputo, em vão, na primeira convocatória, 5 de Dezembro, como é do conhecimento do Governo Provincial.
Acompanhei, no entanto, o melhor que pude, as grandes linhas do Encontro, lendo sobretudo os discursos e as intervenções de Vossa Excelência.

Embora me custe, tenho de dizer que o teor da reunião me surpreendeu e desagradou. Com efeito, não me parece razoável continuar com uma crítica à Igreja, útil sem dúvida, num dado momento, mas actualmente sem resso­nância nem aceitação no coração dos crentes católicos e do próprio povo em geral. Efectivamente, a Igreja Católica do tempo novo de Moçambique não é mais a Igreja do tempo colonial, se bem que não esqueça nem rejeite o pas­sado que lhe pertence.

Por outro lado, a crítica feita mais pareceu uma acusação aos bispos moçambicanos do que uma análise desapaixonada dos comportamentos de alguns membros da Igreja ou da hierarquia católica do tempo do Governo colonial. Isto mesmo me parece sentir quando ouço os comentários dos cren­tes.
De facto para muitos que leram o jornal ou ouviram a rádio, o Partido Frelimo parece ter querido humilhar, mais uma vez, os bispos da Igreja Católica e pô-los em causa, frente às outras igrejas e confissões religiosas.

Permita-me, Senhor Presidente, que lhe exprima, com toda a lealdade e com aquela confiança que sempre tem caracterizado o nosso diálogo, o que penso da intervenção dos bispos católicos, expressa no Documento que apresentaram, e O que julgo necessário para que haja, de facto, um «correcto relacionamento entre o Estado e as igrejas».

Em primeiro lugar, quero reafirmar a minha solidariedade e comunhão com os bispos da Igreja Católica de Moçambique. Como bispos da mesma Igreja, formamos efectivamente um corpo solidário, embora cada qual tenha a sua história e se identifique mais com a Igreja particular a que preside. Não aceitamos, por isso, que alguém, ou alguma coisa, nos tente dividir ou então classificar de modo que uns apareçam, diante do Povo, como «bons» e outros como «maus».

Em segundo lugar, gostaria de referir que nos últimos anos do tempo colonial os «combatentes da rectaguarda» contra o sistema e pela independên­cia de Moçambique não se limitaram, felizmente, ao Bispo de Nampula, aos Padres Brancos e aos Padres de Burgos.A partir, particularmente dos anos 70, a rectaguarda da Luta pela Libertação e Independência de Moçambique abrangia já um grande número de missionários e de leigos cristãos.
A Reunião de Pastoral, havida na Matola, no ano de 72, é bem um sin­toma da profunda inquietação que então existia no seio da Igreja Católica em Moçambique. A oposição ao sistema era já uma força e o julgamento dos Padres de Macuti, pelo Tribunal Militar, em Janeiro de 73, veio tornar mais clara esta força, bem como o «combate» que então procurávamos travar con­tra o sistema colonial. 
Naquela altura e naquele contexto, a posição dos padres moçambicanos, face ao regime colonial e às novas situações, não era fácil. Embora profundamente revoltados contra o sistema colonial que efecti­vamente os apanhava «por fora e por dentro», não conseguiram encontrar um «espaço» que lhes permitisse enfrentar o sistema e defender abertamente a luta pela independência nacional.

Creio que a justiça e a verdade nos mandam olhar para os padres moçambicanos, do tempo colonial, com mais compreensão e objectividade. Penso que devemos ver neles, antes de mais, moçambicanos que, à seme­lhança de tantos outros, tiveram de sofrer a opressão e a humilhação do sis­tema que os envolvia e vigiava dum modo especial, dada a sua qualidade de presbíteros da Igreja Católica. Por isso, não concordo, nem me parece justo, que na crítica ao sistema colonial, os bispos católicos, ontem padres moçam­bicanos, tenham sido tratados como foram.

Embora sinta que me faltam elementos para julgar da reunião, uma vez que não estive presente, permita-me, mesmo assim, que me pronuncie dum modo simples, mas sincero, sobre um ponto que me parece fundamental e sobre alguns problemas que os bispos católicos abordaram.

Creio que nos discursos que Vossa Excelência proferiu durante a reu­nião, o relacionamento entre o Estado e as igrejas ocupa o primeiro lugar.
 Um «correcto relacionamento entre o Estado e as igrejas» é, na verdade, um problema que nos preocupa desde o início da Revolução. Passámos já por diversas fases, umas difíceis, outras mais fáceis. Posso dizer que em todas elas foi preocupação dos bispos católicos encontrar os caminhos dum relaci­onamento que salvaguardasse a dignidade de ambas as partes e a liberdade própria da Igreja.

Porém, um «correcto relacionamento» exige de uns e de outros uma longa aprendizagem e supõe, à partida, a sincera aceitação de alguns princí­pios libertadores.

Em primeiro lugar, o abandono de preconceitos, de ressentimentos e de mútuas desconfianças. O Encontro havido parece confirmar que a libertação das consciências e das mentalidades, neste campo, não aconteceu ainda. A desconfiança e o receio de que, na sociedade em construção, pudesse apare­cer um «poder paralelo» foram bastante evidentes.

Em segundo lugar, o mútuo reconhecimento da identidade a missão específica, quer do Estado quer da Igreja.Sem este sincero reconhecimento, o Estado correrá o perigo de tentar reduzir a Igreja a uma «organização social», com as suas hierarquias, ou a um «aparelho ideológico», com a sua influência na construção da sociedade. Por sua vez a Igreja poderá ser tentada a aceitar alianças com o Poder, criando assim ambiguidades e situações negativas para uns e para outros.

Mas se o perigo existe para ambas as partes, creio bem que, no caso concreto, poderá ser maior para o Estado. Com efeito, não será da lógica marxista-leninista considerar as igrejas como organizações sociais e como aparelhos ideológicos e tentar enquadrá-las na estrutura geral das instituições estatais e sociais?
 Esta lógica parece ter maior incidência em diversos espaços socialistas.

De facto, não é difícil verificar, em certos países socialistas, a tentativa de incorporar as igrejas na estrutura geral do Estado Popular. Talvez possamos perguntar se estas tentativas não traduzem a influência remota de uma Igreja estatal prussiana, de um Josefismo da monarquia austro-húngara, de uma secular interdependência do Estado e da Igreja nos países onde prevalece a religião ortodoxa, ou se não estaremos perante uma tendência totalitária e centralizadora do Estado Popular.

Falar, por conseguinte, em «identificação dos crentes com o Estado Popular que somos todos nós», em «igrejas, antes de mais, moçambicanas» e sem «representantes do exterior» é propor, à partida, um tipo de relaciona­mento perigoso e ambíguo.
A discordância dos bispos, neste ponto, não significa nem «sectarismo», nem «proselitismo», nem menos «patriotismo» ou menos «empenhamento» no bem geral do país. Significa, sim, a salvaguarda e a defesa da identidade e da missão específica, tanto da Igreja como do Estado.

Um «correcto relacionamento» terá, efectivamente, de processar-se, em todas as circunstâncias, dentro do respeito pela «independência e autonomia de ambas partes, e dentro do princípio de não-interferência nos respectivos campos específicos.
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Em terceiro lugar, um correcto relacionamento exige de ambas as partes, juntamente com o mútuo respeito, um corajoso e leal espírito crítico.
Não se trata, como é óbvio, duma crítica negativa ou subversiva para uns ou para outros. Trata-se duma crítica objectiva que permita ao Estado e à Igreja situarem-se constantemente no lugar que lhes é próprio e na missão que lhes é específica, evitando, assim, a tentação do domínio de um pelo outro, a mistificação e a falsificação do serviço ao Povo.

Em quarto lugar, um correcto relacionamento exige também uma sã cooperação entre a Igreja e o Estado no campo comum do desenvolvimento integral do Homem. Isto, porém, não quer dizer que o empenhamento da Igreja no desenvolvimento dum Povo só terá possibilidade onde houver um correcto relacionamento entre o Estado e as instituições religiosas.
O serviço ao Homem e à sociedade faz parte da missão da Igreja. O anúncio da justiça e a construção da paz são parte integrante do Evangelho, confiado à Igreja. Por isso, a Igreja, como Igreja, não pode limitar-se ao plano cultural ou ao interior de cada um dos crentes, nem pode aceitar que o Estado a restrinja ao interior do templo.

Isso significaria que a Igreja se dirige ao homem «parcelado» e não ao homem considerado no seu todo e assumido com a totalidade do seu ser, do seu agir e do seu estar na sociedade e na história. Significaria, ainda, que a Igreja abdicava das funções que lhe são essenciais. A Igreja, para não trair a sua identidade e missão, não pode desenvolver somente uma função cultu­ral. Deverá desenvolver também, e em primeiro lugar, a função da profecia e a função do amor, feito múltiplos serviços a todos e a cada um dos homens. Ficar somente na função cultural seria consentir uma grave e injusta redução da liberdade e da missão que lhe é própria.
  
De facto, a concepção laicista - não laica - da separação da Igreja e o Estado leva o Estado a considerar a religião como assunto privado e a impe­dir, logicamente, a profecia e o serviço ao Homem e à sociedade. Numa separação deste tipo, a Igreja será sistematicamente excluída da vida pública e das instituições educativas e sociais. A própria contribuição ao desenvolvi­mento terá de ser legitimada pelo enquadramento nas iniciativas dos serviços do Estado. Onde tal concepção de separação entre a Igreja e o Estado esteja presente, uma sã cooperação tornar-se-á necessariamente problemática e as relações entre os crentes e o Estado - e não apenas entre as hierarquias e o Estado - estarão constantemente em crise. Uma sã cooperação exige uma correcta relação e esta não será possível sem o conhecimento da verdadeira identidade, independência, autonomia e missão, quer da Igreja quer do Estado.

Os bispos católicos, no documento que apresentaram, puseram à consi­deração de Vossa Excelência alguns problemas urgentes e graves, tais como a liberdade de escolha vocacional, as limitações ao exercício da liberdade reli­giosa, a discriminação com base na religião, o direito dos pais cristãos a edu­car os filhos na fé, as perturbações internas a partir de acções armadas.
Estes problemas não são invenções mas realidades que afectam os cren­tes, umas, e, o povo em geral, outras.

A Igreja continua sem possibilidade de cultivar e de formar os seus qua­dros, embora o Estado lhe reconheça, em teoria, esse direito.
Continuam também, em algumas zonas do país, as limitações à prática da liberdade religiosa, e, bem assim, a identificação abusiva e intimidatória dos crentes.
A liberdade de consciência, de opinião e expressão, de informação e de palavra continuam também em causa. A discriminação, com base na religião, infelizmente, não acabou. Os crentes sentem-se humilhados frente ao partido e ao Estado. E, se a religião não é critério de selecção, é-o, certamente, a concepção marxista do mundo e da história.

Os pais continuam a perguntar por que razão o Estado não lhes permite educar os filhos. Os pais cristãos sabem que seus filhos dificilmente terão acesso à educação da fé que receberam. Sabem também que os seus filhos serão educados, abusivamente, no ateísmo. Embora nos doa, teremos de dizer que «a liberdade com que sonhamos» ainda não chegou plenamente. Os bispos católicos, ao falar destes problemas, não quiseram «fomentar a divisão» nem «recuperar privilégios». Mas quiseram transmitir, com lealdade e abertura, «os problemas e aspirações do Povo», uma vez que os crentes, que não são minoria, são povo de pleno direito.

A Igreja Católica, no Documento que apresentou, reafirma, mais uma vez, a sua disponibilidade para servir o Povo moçambicano, apoiando o combate à fome, à nudez, à miséria, à ignorância e à corrupção da ordem ética.

A fome avança dia a dia e neste momento é, de facto, o grande inimigo do partido e do Estado. As vítimas aumentam e bem assim a agressividade social e a instabilidade política. É, na verdade, muito difícil governar popula­ções ameaçadas pela fome. O combate à miséria deveria ser, no momento presente, a grande preocupação de todos nós e o ponto de encontro dos nossos esforços e dos nossos diálogos.

Por sua vez, o partido e o Estado deveriam assumir este combate como prioritário e mediante acções decisivas. Deste combate dependem, efectiva­mente, outros combates. Refiro-me, neste ponto, à desmobilização do povo. As populações estão sempre mais longe da palavra e das iniciativas do par­tido e do Estado.

Infelizmente, ao longo destes anos, nem sempre as populações foram tratadas com respeito e com justiça. Muitos dirigentes abusaram do poder e a propósito de iniciativas válidas, tais como as Aldeias Comunais, a produção colectiva, o combate à criminalidade, a defesa da Revolução e da Unidade Nacional, a segurança do Estado e a consolidação da Nação, maltrataram e ofenderam gravemente centenas, senão milhares, de moçambicanos.

Face, porém, à oportuna preocupação do partido e do Estado de «conso­lidar a Nação moçambicana, com base em toda a nossa sociedade organi­zada e sem marginalização de qualquer sector», ou de qualquer moçambi­cano, não terá chegado o momento de Vossa Excelência entrar em diálogo, franco e aberto, com as populações, ouvindo-as e dando-lhes possibilidades de se libertarem do abatimento, da desilusão, do desinteresse, da passividade e de uma espécie de automarginalização psicológica e política?

Torna-se, na verdade, necessário e urgente assumir com realismo a situa­ção que a maior parte do Povo está a viver, bem como as contradições, cada vez mais agudas, entre a "força principal» e «a força dirigente». Doutra maneira, o partido e o Estado acabarão por governar um povo fictício.

As situações de sofrimento são ainda mais graves nas zonas afectadas pela violência armada. A guerra é já uma dura realidade. Não sei se vale a pena continuar a iludi-la. O Povo real sabe e fala da guerra. Faz perguntas e espera respostas que convençam.
Espera, sobretudo, que o sofrimento provocado pelas acções armadas de ambos os lados e pelas perturbações de vária ordem seja tomado a sério pelos responsáveis da Nação e constitua, para o partido e para o Estado, uma referência obrigatória, nas opções a tomar e nas diversas acções a urgir.

Sei que levanto problemas melindrosos ao falar das «acções armadas» presentes actualmente em seis províncias e, ao que parece, em vésperas de também afectarem esta Província de Nampula.

Mas se nós, os bispos, decidirmos falar da guerra a Vossa Excelência, como primeiro responsável dos destinos da Nação, não foi para aparecermos como "arautos da Paz», para criar confusão, ou para dar «credibilidade aos bandidos armados», mas porque o sofrimento do Povo a isso nos obriga.
É possível que, frente a estas novas situações de guerrilha, vindas de fora e de dentro, possa haver quem defenda, até ao fim, o recurso à força das armas. Pergunto-me, porém, se as armas resolverão, por si mesmas, o conflito aberto e com tendência a tornar-se cada vez mais vasto.

Sei bem que tudo isto preocupa seriamente o partido e o Estado. Sei também que o Poder Popular tem energias e mecanismos bastantes para ten­tar, para além das armas, outros caminhos de tranquilidade e de paz. Isto, porém, não significa que o Poder legítimo tenha de pactuar com o crime, com o racismo ou com o imperialismo ou tenha de procurar uma paz à custa da justiça ou da própria dignidade.

Os caminhos da paz, mais dignos dos povos, não são, efectivamente as armas, mas a força do diálogo político.
Esperamos que chegue o dia em que os homens e os povo deixem as armas e recorram à política para resolver os conflitos que as sociedades e a história naturalmente segregam.

Termino esta carta reafirmando a minha sincera dedicação ao povo moçambicano, por quem tenho dado o melhor da minha vida. Desejo também manifestar a minha confiança no espírito de serviço e de abertura de que Vossa Excelência me tem demonstrado sempre que me pareceu conveniente, para bem do Povo, expor a minha opinião.Sei bem que, sem este espírito de serviço e de abertura, esta minha franqueza e lealdade não seriam possíveis.

Espero que veja nesta exposição não uma crítica negativa, mas o contributo sincero para uma crescente dignificação do partido e do Estado para um melhor relacionamento entre o Estado e as igrejas, para uma cooperação mais vasta e mais eficaz das igrejas na defesa, consolidação e desenvolvimento da Nação e para uma unidade nacional cada vez mais viva e fecunda.
 Peço que me releve qualquer afirmação ou palavra menos exacta. 

Aceite, Senhor Presidente, as minhas respeitosas e cordiais saudaç­ões e o meu reconhecimento pela atenção dispensada.
Formulo, mais uma vez, para Vossa Excelência e para a Nação moçambicana, votos de prosperidade e de Paz.

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