Tentações da hora presente
Encontro de responsáveis de zonas pastorais
Nampula, Centro Catequético Paulo VI (Anchilo)
17-19 de Dezembro de 1975.
1 -
O povo de Moçambique está lançado
numa revolução que o atinge em todos os domínios: político, económico, cultural,
social e religioso. E como todas as revoluções, a revolução moçambicana
implica uma ruptura e uma invenção permanente. Ruptura com uma ordem
estabelecida e invenção de uma ordem a estabelecer. Implica portanto uma
situação de mudanças. E mudanças em todos os campos.
2 -
A Igreja se é o povo animado pelo Espírito e reunido na fé em Jesus Cristo, se
é fermento na massa, se é espaço onde os homens concretos experimentam e vivem
a liberdade, a fraternidade, a solidariedade e a comunhão, não está fora da
história, não está fora da revolução que se processa aqui e hoje. Está dentro,
como dentro está o homem, o povo moçambicano.
A Igreja
experimenta portanto na própria carne o ritmo da revolução. Ritmo que é ruptura
e invenção. Experimenta e vive a situação de mudança. E será nesta situação de
mudança que os cristãos terão de viver e de dizer a fé, terão de viver a
liberdade, a fraternidade, o compromisso político. Para isso, impõe-se que os
cristãos evitem as tentações que porventura possam surgir no contexto actual e
vivam ousadamente o tempo novo.
3 -
Defender os chamados direitos da Igreja seria uma das tentações possíveis. No
contexto revolucionário, devido a um passado próximo, a Igreja aparece ainda
bastante ligada a privilégios. É intenção da revolução destruir todo e qualquer
privilégio, seja de quem for. O único privilegiado é o povo. Neste sentido, a Igreja
nada tem a defender. Primeiro, porque é um serviço ao povo e, se algum direito
reclama, é o de poder servir livremente o povo com aquilo que lhe é próprio: o
Evangelho de Jesus de Nazaré (Lc 4, 14). Depois, porque a Igreja não pode
aparecer como sociedade paralela à sociedade política e alheia à luta dos
homens pela liberdade e bem-estar.
A Igreja é povo, é dinamismo na
história. É povo reconciliado, unido e animado pelo Espírito de Jesus,
Espírito de Justiça, de Verdade, de Sabedoria, de Serviço, de Amor e de Paz
(Is 11, 1 - 9). É povo atento, assumindo os grandes ideais da revolução. É povo
gérmen de unidade, de esperança e de salvação (LG 9).
É dinamismo na história dos homens. «Não
há em concreto duas histórias, uma profana e outra sagrada, justapostas ou
estreitamente ligadas. Há um só devir humano, assumido irreversivelmente por
Cristo, Senhor da história (Cl 1, 13). Deste modo a Igreja – simultânea-mente
«reunião visível e comunidade espiritual» - caminha juntamente com toda a humanidade,
participa da mesma sorte terrena do mundo e é como que o fermento e a alma da
sociedade em ordem a transformá-la em família de Deus
(OS 40).
Por
tudo isto, falar, hoje e aqui, em direitos da Igreja, é ambíguo. Falar em direitos
do povo que a Igreja, como sinal de salvação (LG 48) promove, será mais
correcto. Perante a nacionalização das obras e dos bens que a Igreja dirigia é
fácil, para certos cristãos, cair na tentação de reclamar o que pertence à
Igreja, confundindo a Igreja com a instituição, ou mais ainda com as estruturas das missões. Não
interessa à Igreja o ter. Interessa o ser: ser fermento da justiça, da liberdade,
da paz, do progresso, (AG 8); ser sinal da libertação do homem todo, pela
vitória da Vida - Jesus Cristo - sobre a morte (o pecado); ser a Profecia de
Deus no desenrolar da história, anunciando constantemente a utopia da
fraternidade universal e definitiva e denunciando a opressão dos ídolos e dos
mitos; ser o sacramento da comunhão universal em Jesus Cristo.
4 -
Criticar de fora
seria outra das tentações. «A crítica e autocrítica são alimentos da unidade» e
esta é a grande força da revolução. O povo de Deus não pode ser mudo na
história em construção. Deverá anunciar e denunciar. Mas
tanto o anúncio como a denúncia supõem e exigem, como ponto de partida, a
autocrítica. Antes de anunciar a boa-nova de libertação em Jesus Cristo, a
Igreja deve interpelar-se a si mesma. Perguntar até que ponto vive e testemunha
com a vida a boa-nova. Antes de denunciar a opressão, a Igreja deve examinar-se
a si mesma. Sem autocrítica sincera, objectiva e contínua, é fácil neutralizar
o poder da palavra. Porque, onde a palavra não corresponde à vida, há
hipocrisia, e onde há hipocrisia, há descrédito.
A
crítica na hora própria e no devido lugar é uma força importante na construção
da nova sociedade. Os cristãos são cidadãos chamados, como qualquer cidadão, a
cooperar na edificação da sociedade nova. Como todo o moçambicano consciente,
deverão estar dentro, assumindo e realizando com dignidade as tarefas que o
bem do povo exija. Engajados na revolução, como sujeitos e não como objectos,
os cristãos, apelando para a sua consciência de cidadãos moçambicanos, farão
a crítica que for oportuno, exercendo deste modo o poder popular e contribuindo
para que o povo se liberte de toda a exploração, de toda a injustiça e se torne
um povo sujeito do poder, senhor e
ar1ifice da própria revolução. Criticar a partir de fora, é criar condições
favoráveis à reacção, ao derrotismo, à desconfiança.
Criticar
a partir de dentro é participar, é tornar presente e operante a Palavra que
liberta, denuncia, une e faz progredir correctamente de modo que a revolução
seja para o povo e feita pelo povo e não o povo para a revolução e por ela manipulado.
5 -
Declararem-se perseguidos e aceitar passivamente as críticas, seria uma outra
tentação dos cristãos nesta fase da revolução moçambicana.
As
críticas feitas à Igreja podem ser ponto de partida para a descoberta de um
novo modo de evangelizar, e de testemunhar o reino que vem e que já está na
revolução moçambicana. O único fim da Igreja é o advento do reino de Deus (G.
S. 45), reino que não acontece apenas depois da morte, mas que desde já está
presente na história daqui e de hoje. Está presente em cada justa luta pela
instauração da dignidade, da liberdade, da solidariedade e do amor fraterno.
Está presente em cada libertação verdadeira, em cada emancipação e em cada
crescimento autêntico do homem. Está presente onde haja um homem que trabalhe e
se entregue para que o homem não seja mais vítima do homem.
A Igreja
é, no coração da história, sinal desse «reino». Não é, nem pode ser, sinal dos
reinos que os homens constroem à custa do homem. Ao longo da história, nem
sempre a Igreja conseguiu vencer a tentação de alianças. E as alianças com os
reinos do mundo corrompem, como corrompe inevitavelmente o poder do homem
sobre o homem. A Igreja em Moçambique
não venceu, no passado, a tentação da aliança com o poder colonial. Tornou-se
por isso ambígua e embora tivesse denunciado injustiças, não conseguiu
denunciar a injustiça estrutural do sistema. É nesta linha que devemos ver a
crítica à Igreja. Cada acontecimento poderá então ajudar a Igreja a purificar-se
e a tornar-se mais sinal de Vida Plena no meio do povo. «Eu vim para que tenham a
vida e vida em abundância (Jo 10, 10)».
Transformar
a crítica em autocrítica não é a mesma coisa que transformar a mentira em
verdade, a injustiça em justiça. Por razões que todos conhecemos, não faltará
quem, a pretexto de exploração, aproveite para dizer em voz alta o que o seu coração
há muito sentia. Tais críticas, nascidas de traumatismos, não concorrem para a
libertação do povo e podem provocar novas opressões.
A
discriminação, o medo, o sentimento de perseguição, a desconfiança perante o
processo de libertação, o desinteresse, aparecem não raras vezes como frutos
amargos de críticas incorrectas. Devemos compreender quem as faz e ajudar a
repor no seu lugar a verdade e a justiça, deixando que o povo dialogue com as
estruturas indicadas.
Na
República Popular de Moçambique
«todos os cidadãos gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres,
independentemente da sua cor, raça, sexo, origem, lugar de nascimento,
religião, grau de instrução, posição social ou profissão» (art. 26 da
Constituição). Não há, portanto, qualquer discriminação por motivo de religião,
como não há qualquer proibição de praticar uma religião. Na República Popular
de Moçambique «o Estado garante aos cidadãos a liberdade de praticar ou de não
praticar uma religião» (art. 33 da Constituição).
6 -
Não nos preocupa a nacionalização das obras e bens das missões. Nasceram para
servir o povo; para servir o povo continuam e com mais eficácia uma vez que o
Estado dispõe de meios e de poder que a Igreja não tinha. Consideramos, por
isso, um passo em frente na libertação do povo, a nacionalização do ensino e
da saúde.
Seria
porém de preocupar, se no intuito de devolver ao povo o poder que lhe pertence,
alguma palavra viesse a negar o direito do povo à liberdade religiosa. Tal
preocupação não acontecerá se todos partirem do princípio de que o direito à liberdade
religiosa não tem o seu fundamento no Estado, mas na dignidade e personalidade
do povo. Não se deixem, por conseguinte, os cristãos vencer pela tristeza, nem
desanimem os missionários.
É hora de verdade, de autenticidade.
É hora de deserto e de escárnio. É hora de anunciar a boa nova de liberdade em
Jesus Cristo (2Co 3, 17), convertendo-nos ao povo e caminhando como povo na construção da história que a Revolução aponta
e promove.
Mais
do que falar em tempos difíceis, falemos em tempos novos.
«Hoje,
se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações como no deserto, no
dia da provação» (Sl 94).
Bispo Manuel
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