Manifesto dos Missionários Combonianos da Diocese de Nampula
com o seu Bispo Manuel Vieira Pinto.
Janeiro-Fevereiro de 1974
«O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos, e aos cegos o recobrar da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano de graça do Senhor» (Lc 4, 18-19).
«Deus no Antigo Testamento revela-se a si mesmo como libertador dos oprimidos e defensor dos pobres, exigindo dos homens a fé nele e a justiça para com o próximo. Só com a observância dos deveres de justiça se reconhece verdadeiramente a Deus como libertador dos oprimidos (Justiça no Mundo, cap. II).
«O agir pela justiça e o participar na transformação do mundo resultam claramente como dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, isto é, da missão da Igreja, para a redenção dos homens e a libertação de todo o estado de opressão» (Justiça no Mundo, Introdução).
Conscientes, portanto, de que a Igreja só pode ser verdadeiramente sacramento de salvação na medida em que, em Cristo, levar todos os homens à plena liberdade dos filhos de Deus; sentindo o apelo da fidelidade ao nosso carisma missionário de «salvar a África com a África»; solidários com todos os povos africanos e com os combonianos que em África trabalham para o crescimento destes povos; interpelados pelos gritos deste povo («Eu vi a aflição do meu povo e ouvi o seu clamor» - Ex 3, 7) e por uma situação de Igreja ambígua e comprometedora; à luz da Palavra de Deus e dos últimos acontecimentos desta mesma Igreja (a saída dos Padres Brancos e de outros missionários da Diocese da Beira, a saída compulsiva dos Padres de Burgos, a saída de alguns missionários combonianos de Tete, as lamentáveis informações do Arcebispo de Lourenço Marques, particularmente as Dominicais do Advento e a atitude negativa de outros Bispos);
Nós, missionários combonianos da Igreja de Nampula, em união com o nosso Bispo, interrogamo-nos profundamente sobre a autenticidade do nosso testemunho missionário e o significado da nossa presença no meio do povo de Moçambique.
Enviados para anunciar o Evangelho de Cristo, sentimos que este anúncio não pode ser levado integralmente a este povo que nos espera, não tanto por causa dum condicionalismo político que nos impeça de anunciar Cristo, mas sobretudo pela renúncia da Igreja em assumir a sua missão profética e libertadora, que lhe compete por direito divino, perante os acontecimentos e a vida deste povo, que julgamos profundamente impedido de crescer fiel à sua história.
Não querendo compartilhar da cumplicidade desta Igreja que colabora, talvez inconscientemente, no manter desta situação contrária ao Evangelho de Cristo, e não podendo protelar mais a resposta às interrogações deste povo, sentimos a necessidade de tomar uma posição segundo a nossa consciência e em conformidade com o autêntico Evangelho de Cristo e as orientações da Igreja Universal.
Neste sentido, e com esta finalidade, passamos a expor os problemas e situações que, no nosso entender, debilitam a Igreja e a tornam um contra testemunho para o povo de Moçambique, e a anunciar as decisões que, em consciência, julgamos dever tomar.
I - RENÚNCIA DA IGREJA AO SEU MÚNUS PROFÉTICO
1 - Não reconhecendo que o povo de Moçambique tem o direito que lhe é conferido por Deus à sua própria identidade e a construir por si mesmo a sua história (Cf AG 9; LG 13 e 16; Discurso do Papa na Uganda).
«Só na medida em que um povo assume nas suas próprias mãos o seu futuro, exprime autenticamente a sua própria e distinta personalidade (Just. no Mundo, cap. I).
«Até que não chegue a hora em que os direitos de todo os povos, entre os quais os direitos à autodeterminação e à independência, sejam devidamente reconhecidos e dignificados, não poderá haver paz verdadeira e duradoura, mesmo que prepotência das armas possa temporariamente ter a supremacia sobre as reacções dos opositores». (Paulo VI, Discurso ao Sacro Colégio, 22-12-1973).
2 - Não proclamando e não defendendo suficientemente outros direitos fundamentais do homem, como:
a) «Direito ao desenvolvimento segundo os elementos culturais próprios» (Just. no Mundo, cp. III, 8). Conferir o Estatuto Missionário, n. ° 58: «O ensino indígena obedecerá à orientação doutrinária da Constituição política... Os programas terão em vista a perfeita nacionalização...». Verificamos com tristeza que a Igreja, fiel ao Estatuto Missionário, vem contribuindo para o genocídio cultural deste povo, alienando-o dos seus próprios valores.
b) Direito de associação e livre expressão. Constatamos que o povo não pode reunir-se nem manifestar ideias que não sejam conformes à política do Governo. Por isso, vive sob um constante medo, porquanto todos aqueles que ousam fazê-lo ficam sujeitos a repressões, seguindo-se não raras vezes, prisões arbitrárias, interrogatórios vexantes, torturas, julgamentos sem processo regular, especial¬mente por acção da D.G.S.
c) Direito à informação. Vemos todos os dias nos nossos jornais e demais meios de informação, mesmo aqueles que usam o rótulo de católicos (Rádio Pax, Diário), uma constante deformação dos factos e um servilismo ao capitalismo e ao poder constituído.
3 - Não desmascarando um sistema socioeconómico que, tendo o lucro como objectivo primário (Cf GS 64) leva:
a) À concentração de bens nas mãos de poucos privilegiados criando situações de desigualdade escandalosas.
b) À expropriação da propriedade originária do povo de Moçambique a favor de grandes companhias latifundiárias. c) À formação de cinturas negras em volta das cidades, donde os africanos são escorraçados por não poderem concorrer à propriedade privada por falta de poder económico e de estruturas sociais adequadas.
d) À exploração do trabalhador, exploração do trabalho de menores, emprego instável, contratos de trabalho à margem da lei, falta de órgãos de defesa capazes, salários injustos, descriminações de salários nas empresas privadas entre brancos e negros com o mesmo trabalho, protecção exagerada dos intermediários em detrimentos dos produtores, especialmente autóctones (ex.: algodão comprado a baixo preço e vendido a um preço muito superior), provocando o abandono das terras e o desinteresse pelo trabalho e favorecendo uma emigração desordenada.
4 - Não iluminando acontecimentos graves tais como a guerra e suas consequências.
a) Aceita uma situação de guerra seguindo a orientação do Governo de que se trata de uma guerra imposta e não se preocupa em saber se na verdade se trata do esforço deste povo de Moçambique para chegar à sua identidade.
b) Não denuncia com clareza e firmeza os massacres e demais situações profundamente lesivas da dignidade do homem, de qualquer parte que venham. Em contrapartida, por servilismo ao Governo, até factos claramente provados e de todos conhecidos, são negados publicamente por alguns membros da Jerarquia. Reconhece-se que alguns destes factos foram denunciados, mas unicamente a nível do Governo mas não publicamente como se impunha.
c) Aceita sem reservas a política dos aldeamentos sabendo que na realidade é lesiva do direito do homem a escolher livremente o seu domicílio, e que nas circunstâncias actuais se trata mais de uma verdadeira estratégia de guerra do que de um processo de desenvolvimento.
d) Não favorece nem promove de forma alguma o diálogo entre as partes em litígio, porque parece não reconhecer ao povo de Moçambique o direito à autodeterminação, nem vislumbrar qualquer inspiração cristã nas reivindicações dos «Movimentos de Libertação» relativa àquele direito.
II - A IGREJA TORNA-SE UM CONTRATESTEMUNHO
1 - Nas relações com o poder constituído.
a) A Igreja de Moçambique, embora afirme que relativamente aos poderes «sempre tem conservado e sabido afirmar quando necessário, uma independência de que será justamente ciosa» (Pastoral colectiva dos Bispos de Moçambique - 1970 na prática aparece ao lado dos detentores do poder, identificando-se mais com a sociedade dominante do que com o povo quee deve servir. Evangelizar torna-se sinónimo de portugalizar.
b) Há uma dependência económica quase completa da Igreja em relação ao Estado. c) Aceita sem a devida denúncia a intromissão e controlo do poder civil na sua actividade ministerial. Ex.: controlo das homilias, padres presos e expulsos.
d) Confunde a liberdade que a lei lhe concede com a liberdade própria da Igreja, à qual não pode renunciar sem deixar de ser Igreja de Cristo (Cf DH 13; CD19).
e) Os Bispos, eleitos à base da Concordata, podem prestar-se mais a servir a política do Governo e a consolidação do «statu quo» do que ajudar o povo a pronunciar a sua identidade.
2 - Na sua missão evangelizadora dos povos.
a) A Igreja continua ainda bastante alheia às realidades africanas nas suas estruturas e nos seus responsáveis. Ex.: liturgia europeizada, seminaristas alienados do seu povo, falta de responsáveis autóctones da comunidade cristã (bispos, sacerdotes, catequistas).
b) A Igreja apresenta-se ainda muito clerical e paternalista e, desconhecendo o diálogo, impede a formação de comunidades adultas e responsáveis.
c) Os Bispos não têm defendido publicamente a missão do missionário quando posto em causa pelo regime constituído. Ex.: aceitam a discriminação entre missionários portugueses e não-portugueses; que tem dito a Igreja sobre os missionários que foram expulsos e sobre aqueles a quem foi recusada a autorização de residência ou o visto de regresso?
Em consequência de tudo isto e para que a Igreja em Moçambique seja sinal mais autêntico de salvação,
I – Pedimos à Jerarquia da Igreja de Moçambique que:
a) Declare que em Moçambique existe um povo com cultura e índole próprias e, portanto, com direito a escolher um caminho e uma história própria em conformidade com o direito dos povos à autodeterminação.
b) Sendo a acção pela justiça parte constitutiva da mensagem evangélica (Cf Justiça no Mundo, Introdução; CD, 12), a Igreja oriente a sua acção missionária de forma que o povo tome consciência deste e de outros direitos.
c) Sendo a guerra, além de outras causas, fruto de um processo histórico e de sistemas que exploram ou não admitem o direito dos povos à autodeterminação, reconheça que as reivindicações dos «Movimentos de Libertação» conformes aos direitos dos homens e ao Evangelho, são legítimas, e leve os responsáveis a resolver o conflito por meios justos e pacíficos, oferecendo-se, se necessário, como intermediária.
d) Denuncie, publicamente, não só as situações particulares de opressão, mas sobretudo os sistemas que as originam.
e) Denuncie a Concordata e o Estatuto Missionário, enquanto deformam gravemente a missão da Igreja de ser luz dos povos, tornando-a cúmplice de um sistema que contribui para o genocídio cultural do povo de Moçambique impedido de crescer como povo autóctone e livre (Cf Estatuto Missionário, nºs 2, 66 e 68).
f) Renuncie à colaboração no ensino do Estado, uma vez que tal ensino aliena este povo, e defenda o direito ao ensino livre. g) Renuncie aos subsídios e demais privilégios que a comprometem e a impedem de exercer livremente o seu múnus profético e aparecer como sinal inequívoco de salvação.
h) Promova a criação de órgãos de informação conformes ao direito à verdade e estimule a formação de uma verdadeira e sã opinião pública, também na Igreja, criando órgãos de diálogo a todos os níveis.
i) Promova a criação da comissão «Iustitia et Pax» em Moçambique (PP 5).
j) Procure novos caminhos que garantam a formação de elites a nível eclesial (seminários, noviciados, centros caquécticos), social, económico e político (ensino médio, universidades).
k) Faça os devidos passos para que a Conferência Episcopal de Moçambique pertença de modo efectivo à Conferência Episcopal da África e Madagáscar, e a Igreja de Moçambique, possivelmente, dependa da Congregação para a Evangelização dos Povos.
m) Actue junto das instâncias competentes no sentido de se reconhecer às Igrejas locais o direito de serem ouvidas comunitariamente na nomeação dos seus bispos, à semelhança do que acontece nos territórios que dependem da Congregação para a Evangelização dos povos.
II - Os combonianos decidem com o seu Bispo:
a) Orientar a Evangelização e a Catequese de modo a revelar o mistério total de Cristo e procurar discernir os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, ajudando este povo a descobrir os planos de Deus a seu respeito (Cf GS 4 e 11).
b) Continuar a rever as estruturas das Missões de modo que sirvam cada vez mais o povo e apareçam como um teste¬munho do amor de Deus do qual a Igreja deve ser sinal (Cf AG 15).
c) Renunciar aos subsídios concedidos pelo governo ao pessoal missionário.
d) Entregar, a partir do próximo ano lectivo, as escolas do ensino primário, dado que os actuais programas conduzem à alienação deste povo dos seus verdadeiros e autênticos valores, comprometendo-se, porém, a continuar a trabalhar pela promoção do povo, pela formação profissional e desenvolvimento comunitário.
Esta reflexão e consequentes resoluções foram tomadas em conjunto por todos os missionários combonianos da Diocese de Nampula, com o seu Bispo, e comunicadas à Conferência Episcopal de Moçambique por intermédio do seu Presidente.
Das mesmas será dado conhecimento à Secretaria de Estado do Vaticano, aos missionários e ao povo de Deus.
Nampula, 12 de Fevereiro de 1974
(Assinado pelo Bispo Manuel Vieira Pinto e por todos os combonianos e combonianas da Diocese)
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