REPENSAR A GUERRA (1-1-1974)


Homilia proferida na catedral de Nampula
No Dia Mundial da Paz



1. «Ouvi-me uma vez ainda, homens que chegastes ao limiar do novo ano de 1974. Ouvi-me, repito. Eu quero falar-vos uma vez mais da paz. 

Apesar dos «episódios atrozes de conflitos internacionais, das implacáveis lutas de classes, da repressão dos direitos e das liberdades fundamentais do homem»; apesar da violência que «caracteriza a história dos nossos dias», a paz continua a impor-se a todos os homens como um dever e um direito. A paz é o ideal da humanidade. A paz é necessária, possível, obrigatória. Ela deve entrar nas consciências dos homens como imperativo que deriva das exigências intrínsecas da convivência humana. 

A afirmação da paz, de individual deve tornar-se colectiva e comunitária; deve tornar-se consciência e dinamismo de um povo. Deve tornar-se convicção, ideologia, acção; deve conseguir penetrar o pensamento e a actividade das novas gerações e invadir a política, a economia, a cultura, o progresso, a linguagem, a opinião pública, os centros de interesse, os movimentos empenhados, de algum modo, na conquista e na defesa dos direitos do homem e dos povos (Cf. Mensagem de Paulo VI no 7.° Dia Mundial da Paz). 

2. Importa, porém, não confundir a paz com a ordem estabelecida, com as forças da ordem, com a ausência de armas, com o medo dos fracos, com a repressão dos fortes, com o silêncio dos mortos.
A paz é algo que se deve não apenas manter mas produzir, e produzir a partir da verdade e da justiça, do amor e da liberdade, a partir da consciência política do homem. Não é, por conseguinte, compatível com a «ordem» à custa da verdade, da justiça, do amor e da liberdade; não é repressão, não é medo, não é silêncio, não é morte. A paz é o homem, e o homem é o coração da paz. Daqui a necessidade urgente de tomar o homem a sério se queremos seriamente a paz. E não apenas o homem sem nome, distante, desconhecido, mas o homem aqui e de hoje, o homem que em Moçambique sofre, há quase doze anos, a violência da guerra, e que certamente deseja a paz. 

Por isso, falar da paz em Moçambique sem falar lealmente da guerra que o mancha de sangue, seria iludir o problema fundamental; seria aumentar a violência. Já o Profeta Ezequiel se insurgia contra os falsos profetas que, enganando o povo, afirmavam que tudo ia bem quando tudo ia mal (Ez 13, 10-16).
A mentira é uma forma de opressão. É de algum modo um homicídio (Jo 8, 44). A mentira mata, as meias verdades também, assim como o silêncio cúmplice do mal. Não digamos paz, voltando as costas à verdade. Enfrentemos a guerra e as interpelações que ela nos faz. 

3. A paz em Moçambique impõe-nos, antes de mais, o dever de repensar a guerra - «a guerra que não queremos» ­com uma mentalidade nova e com uma nova determinação (GS 80). Repensar a guerra, aqui e hoje, é reconhecer e identificar os conflitos que, dentro e fora do nosso contexto, concorrem para a destruição da paz. É rever, em espírito de diálogo, os direitos e deveres que dão consistência à paz do povo de Moçambique. É interrogarmo-nos serenamente se esta guerra será um meio digno e um meio apto para resolver o conflito aberto; se na base do litígio não estará em causa, mais do que uma «agressão» e uma «legítima defesa», uma justa aspiração deste povo à emancipação. É interrogarmo-nos seriamente sobre as injustiças e crimes que, no decorrer da guerra, uns e outros podem cometer. 

Em Moçambique há efectivamente conflitos. E, se é possível limitar e controlar a acção armada, outro tanto não sucede com a acção psicológica.
«Na luta que se trava o que se disputa não são as áreas; o que está em causa, são as almas, é a adesão das populações». Por isso, «a guerra subversiva, em vez de procurar territórios e de travar batalhas campais, procura conquistar larga audiência e apoio nas populações» (Marcelo Caetano, Discursos 2-12-70 e 2-12-71). Posto isto, perguntamos até onde chegará, neste momento a guerra em Moçambique; até onde chegará a sua ideologia, a sua determinação e a sua violência. E perguntamo­-nos se será lícito a alguém continuar a dizer que «os territórios das Províncias Ultramarinas estão em paz»; que nelas «a vida decorre, por toda a parte, tranquila e normal - num ambiente de trabalho e de entendimento exemplares»; que «a insegurança, geralmente em espaços pouco povoados junto das fronteiras, não perturba a vida do resto da Província, onde a paz não é uma possibilidade mas uma realidade» (dos jornais). 

A guerra em Moçambique é, infelizmente, uma realidade. E uma realidade que perturba, cada vez mais, as populações. Iniciada em 1964 no Distrito de Cabo Delgado, estendeu-se ao longo destes dolorosos dez anos, por cinco Distritos e afecta hoje grande parte das populações neles residentes; mobiliza milhares de homens, implica o dispêndio de somas muito importantes, tem já no seu passivo milhares de vítimas.

Aceitar, abertamente, a verdade dos conflitos é construir a Paz. A verdade e a paz caminham juntas (Sal. 84); a mentira e a violência dão-se as mãos (Jer 14). A paz será uma palavra vazia se não estiver construída sobre a ordem da verdade (PT 161). A falta de verdade na comunicação dos aconteci­mentos aliena as consciências, desumaniza as relações sociais, vicia o sentimento da responsabilidade pelo bem comum, atrofia a opinião pública, concorre para o estabelecimento da violência. Salvaguardadas as exigências do bem público, impõe-se para o bem da paz, uma informação honesta, objectiva, ampla e serena; uma informação capaz de orientar e formar a opinião pública na construção da paz. 

«Se a ideia da paz vier a conquistar, efectivamente, o coração dos homens, a consciência da sociedade, a mesma paz será salva». «Não é preciso gastar palavras a demonstrar a potência hodierna da ideia que se torna pensamento do povo, quer dizer, da opinião pública». Hoje em dia a ideia é rainha que governa de facto, os povos. O seu influxo imponderável forma-os, orienta-os, e depois são os povos, isto é, a opinião pública operante a governar os governantes» (Paulo VI, Mensagem no 7.° Dia Mundial da Paz). A paz e a guerra dependem também dos meios de comunicação social. E mau serviço prestam à paz aqueles órgãos de informação que, por causa dos interesses ou das conveniências, oprimem a verdade.

Se quereis a paz «eis o que deveis fazer: dizei a verdade uns aos outros; julgai segundo a justiça que constrói a paz» (Zac 8, 16). 

4. Mas não basta reconhecer os conflitos. Necessário se torna rever os conflitos e os deveres que dão consistência à paz em Moçambique. Semear na justiça é colher na concórdia; cultivar a perversidade é colher a violência - diz o profeta Oseias (10, 12-13). Por sua vez S. Tiago pergunta: «donde vêm as guerras e as pelejas que há entre vós? Não vêm precisamente das paixões? Cobiçais e nada tendes; matais, sois invejosos e não conseguis o que desejais; combateis, guerreais e nada tendes» (Tg 4, 1).
Os conflitos actuais não trarão, na sua virulência, muitas das injustiças que ontem se praticaram e que hoje, apesar de todo o progresso e esforço, ainda continuam, embora sob aspectos novos? Não serão injustiças as situações que ofenderam a dignidade, o crescimento, a expressão cultural, política e social do homem africano, das famílias e das etnias? Não será injustiça a repressão de certos direitos como «o direito de livre reunião, o direito de expressão e de discor­dância, o direito à própria identidade?» (Justiça no Mundo, Cap. I). E não se confunda «limitação temporária do exercício de alguns direitos por exigência do bem comum» com a repressão desses mesmos direitos. No contexto actual de Moçambique é fácil cometer-se esta injustiça. 

Querer seriamente a solução dos conflitos em curso é querer, em primeiro lugar, a justiça integral do homem e das populações de Moçambique. Isto leva-nos a eliminar corajo­samente as situações de injustiça e, ao mesmo tempo, a promover, no diálogo, o crescimento integral do homem e do povo.
E se «o desenvolvimento é o novo nome da paz» importa examinar até que ponto o desenvolvimento do homem de Moçambique gera e faz crescer a paz. Ninguém nega certamente o esforço que se tem feito pelo crescimento de Moçambique. Mas se, desenvolver integralmente o homem e os povos, é fazer com que o homem seja mais homem e o povo mais povo, então há que ter em conta, como principais índices de cresci­mento, não propriamente o poder económico ou social, mas o ser mais, o saber mais, o decidir mais, o participar mais, o autodeterminar-se mais. Promover o desenvolvimento integral é promover e defender o direito do homem de Moçambique à própria identidade, o direito à liberdade de afirmar as próprias aspirações e de construir a própria história. Não basta, por isso, alfabetizar, multiplicar estabelecimentos de ensino, organizar escalões de participação na vida pública, produzir e distribuir mais riqueza. Tudo poderá ser vão e até contraproducente se o homem for objecto e não sujeito do seu próprio desenvol­vimento. Importa, pois, examinar se o homem daqui e de hoje, é efectivamente sujeito de um crescimento cultural, social, político e económico. Desenvolvimento, dignidade, liberdade, autonomia, devem caminhar a par (PT 35-42). 

A «Populorum Progressio» de Paulo VI, fiel à vocação integral do homem, afirma claramente que os povos devem ser desenvolvidos de modo a que cheguem «a ser por si mesmo artífices do próprio destino», sujeitos e não objectos da própria história (P. P. 65). Nesta perspectiva, a autodeterminação é um direito natural e um imperativo inerente ao verdadeiro desenvolvimento. E, como direito, implica o dever de o homem e os povos, em vias de crescimento, se tornarem aptos a ­escolher livremente as suas próprias instituições políticas, culturais, económicas e sociais. «Quando, com efeito, surge num homem a consciência dos próprios direitos, nele crescerá também a consciência das próprias obrigações: de maneira que, aquele que tem algum direito, tem igualmente, como expressão da sua dignidade, a obrigação de o reclamar; os demais têm obrigação de reconhecer e respeitar tal direito» (PT 38). «Ninguém quer estar submetido a poderes políticos estrangeiros à sua comunidade ou ao seu grupo étnico» (PT 37).

A Igreja não só reconhece o direito dos povos à própria identidade, como também procura promover entre os povos desenvolvidos e subdesenvolvidos colonizados e antigos colonizadores, ricos e pobres, uma justa e leal cooperação de modo a eliminar possíveis neo-colonialismos, e a criar condições que permitam uma efectiva autodeterminação. «Nem colonialismo nem neo­colonialismo, mas ajuda e impulso às populações africanas de modo a torná-las capazes de exprimir, com o seu génio próprio e com as suas forças próprias, as estruturas políticas, sociais, económicas e culturais» (Paulo VI, discurso no Parlamento de Kampala, Uganda, em 1-8-69).

A Igreja vê na autodeterminação política dos povos um sinal positivo do crescimento da consciência e da liberdade do homem e dos povos, e ao mesmo tempo, um avanço no processo de libertação e de comunhão da humanidade em Jesus Cristo.

«Os problemas da África de hoje - diz ainda Paulo VI ­- podem considerar-se sob um duplo aspecto: o da liberdade dos territórios nacionais e o da igualdade das raças. Entendemos por esta palavra polivalente «liberdade» a independência civil, a autodeterminação política, a libertação do domínio de terceiros». Este é um acontecimento que domina a história mundial acontecimento que se deve à maior consciência que os homens adquiriram da sua dignidade, como pessoas individuais e como povo. «Os homens de todos os países e continentes são hoje cidadãos de um Estado autónomo e independente, ou estão para o ser» (PT 37). Trata-se de um facto que revela a orientação irreversível da história e que responde, certamente, a um plano providencial que não deixa de indicar, a quantos estão revestidos de responsabilidades políticas, a orientação a seguir. «A Igreja saúda, com satisfação este facto (autodeterminação) pois vê nele um passo decisivo no caminho da civilização humana. E saúda-o mais ainda por estar persuadida de haver contribuído para ele no domínio que lhe é próprio, ou seja, no domínio da consciência. Na verdade, à luz da mensagem evangélica aparece com mais clareza a dignidade da pessoa bem como a dignidade de um povo e tornam-se mais evidentes as exigências inerentes a tal dignidade» (Paulo VI discurso cit.). 

Se a paz e a guerra passam também por este direito ­que a consciência humana reclama cada vez mais, e que a Igreja promove e defende no domínio que lhe é próprio ­falar da paz e da guerra, aqui e hoje, sem falar do direito de autodeterminação e do seu conteúdo, será certamente iludir um problema de fundo. Com efeito «até que não chegue a hora em que os direitos de todos os povos, entre os quais o direito à autodeterminação e à independência, sejam devida­mente reconhecidos e dignificados, não poderá haver paz verdadeira e duradoira ... » (Paulo VI, discurso ao Sacro Colégio, 22-12-73). 

Sendo assim, a paz e a guerra não dependem só dos outros - «dos movimentos fomentados, apoiados, baseados em países estrangeiros; dos interesses imperialistas das grandes potências». A paz e a guerra, em Moçambique dependem também da tomada de consciência dos povos ontem dominados por sistemas coloniais e hoje em busca progressiva de uma justa e efectiva emancipação; dependem das razões por que combatem uns e outros; dependem com certeza do reconheci­mento da dignidade do homem e do povo de Moçambique e das iniciativas que dêem conteúdo e expressão real aos direitos inerentes a uma justa e progressiva autodeterminação. Parece que tudo isto obriga a colocar a solução do conflito mais na acção política do que na força das armas - uma acção política fundada no direito, aberta ao diálogo e às soluções dignas. 

5. Repensar a guerra com uma mentalidade nova é dizer a uns e a outros que o recurso às armas para vingar a justiça gravemente ofendida não é mais um meio digno do homem nem é mais um meio apto. A guerra é um mal e fonte de males. É por natureza uma violência radical contra a vida e contra a comunhão fraterna a que estão chamados por Deus todos os homens. É a negação do plano de Deus sobre a história. Com efeito «é da vontade de Deus que todos os homens formem uma só família e se tratem uns aos outros como irmãos» (GS 24). 

Conceber a luta entre os homens como uma exigência estrutural da sociedade constitui não apenas um erro óptico-filosófico mas também um crime potencial e permanente contra a mesma comunidade» (Paulo VI, discurso no Parlamento de Kampala). O homem, por vocação, leva dentro de si não O destino da luta fratricida, mas o direito e o dever da comunhão fraterna.
Toda a guerra é, de algum modo, fratricida e diabólica. Não é o demónio homicida desde o princípio? (Jo 8, 44). 

É certo que não se pode negar aos governos o direito de legítima defesa, enquanto existir o perigo de guerra e não houver uma autoridade internacional competente e dotada dos meios convenientes» (GS 79). No entanto «o recurso às armas, em caso de legítima defesa, só é lícito depois de esgotados todos os recursos de negociações pacíficas» (GS 79). A guerra é o último recurso, jamais o primeiro. De outro modo não se poderá falar de guerra legítima nem de acções armadas legítimas.
O Concílio lembra aos governos e aos povos, o dever de tratar seriamente assuntos tão graves como são os da defesa do direito por meio da violência armada (GS 79). É que a guerra não é mais um meio apto para reparar o direito violado (PT 87, 119, 126; Paulo VI, discurso na ONU em 4 de Outubro de 1965). 

Apesar dos esforços que, certamente, se terão feito para pôr termo à guerra em Moçambique, cabe todavia perguntar: quem responderá, diante de Deus e da história, pelo sangue derramado ao longo destes dolorosos dez anos, se na busca sincera de uma solução honrosa do conflito não foram, de facto, esgotados todos os recursos de negociações pacíficas?

6. Repensar a guerra é afirmar, clara e oportunamente, os princípios cuja violação ofendem a justiça e tornam abertamente injusta, senão criminosa qualquer acção armada. É que, os homens em litígio são sempre homens e como tais devem agir. Queiram ou não, permanecem sujeitos aos imperativos do direito natural e, se cristãos, às exigências inalteráveis do Evangelho. E se a guerra por sua natureza tende a ser uma «acção recíproca», nem por isso os crimes de uns justificam os crimes de outros. Nem tão pouco se pode aceitar o princípio de que seria eventualmente justificável uma acção armada, embora brutal, desde que levasse à capitulação rápida do agressor. A consciência humana e cristã não pode aceitar a eficácia à custa da moral e do direito. Os fins não justificam os meios. São por isso injustas e criminosas as operações militares, ou as acções de guerrilha, que não respeitem o direito à vida, à dignidade e integridade da pessoa humana, a imunidade das populações civis. (Diversas Convenções internacionais consagraram felizmente estas regras essenciais. E como a maior parte destas estipulações estão sancionadas pelo direito natural, estão obrigados a cumpri-las também os beligerantes que as não assinaram). 

Tanto na paz como na guerra, o respeito sagrado pela vida humana constitui princípio inviolável de acção. Nenhum homem tem o direito de vida ou de morte sobre o seu semelhante. Só Deus é Senhor. Em plena acção armada permanece válido o dever de não matar. Legítima defesa não é sinónimo de autorização para matar. São crimes abomináveis os homicídios de qualquer espécie. São crimes de lesa humanidade os massacres de inocentes, de prisioneiros de guerra, de civis julgados coniventes com o inimigo (GS 27). 

Nenhuma instância, por superior que seja, está habilitada para ordenar um acto intrinsecamente perverso como são os assassinatos, os massacres, os atentados contra a vida de inocentes (Pio XII, Alocução 3-10-53). Ninguém tem o direito de dizer que os fins justificam os meios; que o terror é permitido por causas legítimas; que a morte de inocentes pode ser lícita em determinadas circunstâncias (Paulo VI, 11-1-73). Programar operações militares, acções de guerrilha sem ter em conta a salvaguarda das vidas inocentes ou, o que é mais grave, atentando directa ou indirectamente contra a vida de inocentes, é cometer crimes e, por conseguinte, é tornar a guerra que os pratica abertamente criminosa, ainda que, por hipótese, se trate de uma guerra de legítima defesa.

A história julgará os homens que, ao longo destes dez anos de guerra, cometeram impunemente acções violentas contra inocentes. Derramar sangue inocente é acumular sangue sobre a própria cabeça. Aquele que derramar o sangue do homem, pelo sangue responderá (Gn 9, 6). A Palavra de Deus dita a Caim permanece válida e digna de atenção: «A voz do sangue de teu irmão clama da terra por mim. Serás maldito sobre a terra que abriu a boca para beber da tua mão o sangue de teu irmão» (Gn 4, 10-11). 

Ao pensar nos massacres, de um e de outro lado, que se tornaram conhecidos, e naqueles que possivelmente permanecem ocultos nas trevas da guerra, temos vontade de gritar como os profetas: «Ai da cidade sanguinária», «ai dos homens que derramaram sangue» (Cf. Naum, 3, 1; Ez. 36, 18; Habac. 2, 12). Ez. 36, 18; Habac. 2, 12). 

7. Não só os homicídios de qualquer espécie são crimes abomináveis a tornar abominável a guerra que os pratica. A dignidade intangível de cada homem, mesmo quando declarado e punido como criminoso por quem de direito, não permite, em caso algum, o uso de tratamentos desumanos. As crueldades, as sevícias, as torturas, mesmo usadas para obter confissões de grave importância para a paz, devem ser absolutamente condenadas como actos intrinsecamente perversos, porque <mão só ofendem a integridade humana como degradam o sentido de justiça, inspirando sentimentos de ódio e de vingança» (Paulo VI, 25-10-70. As torturas morais ou físicas, repressivas ou detectivas, as prisões arbitrárias, as pressões psicológicas, todos os actos que violam a dignidade e a integridade da pessoa humana são uma infâmia e tornam infame quem os pratica (GS 27); tornam infame a guerra que os usa. 

8. O direito à vida e à dignidade exigem das forças empenhadas na luta o respeito pela imunidade das populações civis. Nas guerras de tipo subversivo, as populações são de facto um dado fundamental. Delas depende, em grande parte, o êxito ou o fracasso dos combatentes. Não admira, portanto, que sejam disputadas por uns e por outros, correndo assim o grave perigo de serem duramente pressionadas, oprimidas ou mesmo flageladas. E muitas vezes o têm sido. Desde as represálias sangrentas até às intimidações, aos raptos, às detenções arbitrárias, às pressões físicas e psicológicas, aos assassinatos, à destruição das habitações, das produções agrícolas - tudo têm sofrido nestes longos dez anos de guerra. Constitui na verdade, para todos, uma grave e tremenda responsabilidade o caminho sangrento que milhares de pessoas estão a percorrer, dia a dia, desde o primeiro momento de guerra. 

Apesar das ambiguidades inerentes à guerra subversiva, a ninguém é lícito oprimir, de qualquer modo, as populações civis sob o pretexto de possível conivência com o adversário ou de possível perigo. Em qualquer circunstância assiste-lhes o direito de serem respeitadas na sua dignidade inviolável, na sua vocação à liberdade. 

As medidas de segurança, por muito imperiosas que sejam, e concretamente os «aldeamentos», se não respeitam a dignidade da pessoa humana, as justas e dignas aspirações do povo; se não concorrem efectivamente para o crescimento e liberdade das populações, mas antes as dominam e utilizam; se no contexto de guerra, mais do que defender as populações, as expõem a diversas formas de pressão e a possíveis ataques de represálias' se, com efeito, não passam duma estratégia de guerra; numa palavra - se não têm por fundamento a dignidade e a vocação do homem e das populações - não podem ser aceites pela consciência humana e cristã. 

         9. Não é lícito igualmente fomentar a violência nas populações civis como possível barragem contra o inimigo definido ou latente. Cultivar sentimentos de ódio e de vingança será alargar indefinidamente o círculo infernal da violência e da morte. 

Perante a escalada da violência não será fomentando manifestações públicas - tanto mais se inspiradas pelo medo, pelo ódio, pelo desejo de vingança - que venceremos a batalha da paz. Não será exigindo a defesa de uns à custa do extermínio de outros que reconstruiremos a concórdia na justiça. Não será semeando a morte que obteremos a vida.

Os homens de Moçambique, as raças, as culturas devem encontrar-se. E parece ter chegado a hora do encontro. Será um encontro na morte ou um encontro na vida e para a vida?

10. «A paz depende também de ti». Depende da maneira como cada um pensa e quer a guerra, pensa e quer a paz. É que a paz dos povos passa pelo coração de cada homem. Por isso, cada um, no lugar que lhe compete, é responsável pela paz. E, se não quer efectivamente a guerra, deverá comprometer-se activamente com as exigências da paz. Ninguém tem o direito de se alhear da realidade desta guerra que aflige e oprime tantos milhares de homens nossos irmãos. E não basta lamentar. Importa construir na justiça a paz dos homens chamados filhos de Deus a viverem como irmãos. A paz depende de todos, de uns e de outros. 

Sentimos que Moçambique vive um momento decisivo. É hora dos homens dignos do Homem. Sabemos como são difíceis os caminhos da paz justa; como são numerosos e graves os obstáculos à vitória sobre a confrontação armada. 

Devemos acreditar que o Senhor está presente na história como Príncipe da Paz (Is 9, 6). Ele renova todas as coisas (Ap 21, 6) e suscita no mais íntimo do coração dos homens desejos sinceros e operantes de justiça e de concórdia (GS 38). N'Ele todos os homens são chamados a crescer na liberdade e na paz, a vencer a inimizade, e «a forjar das espadas relhas de arados e das lanças foices» (Is. 2, 4).

Deixemo-nos interpelar por Deus e pelo homem que sofre a opressão da guerra.
A paz depende de ti porque depende de todos. 
«Bem­-aventurados os pés dos que evangelizam a paz» (Is 52, 7).

Nampula, Janeiro de 1974

Bispo de Nampula
Manuel

Sem comentários:

Enviar um comentário