Regressado da
Europa, após doença grave, com a qual o Presidente se preocupou pessoalmente, D. Manuel
Vieira Pinto constatou que o Povo moçambicano experimentava,
outra vez, na carne, o medo, a insegurança, a tristeza, o desprezo, a
humilhação, a repressão, a tortura. Nesta carta, ao mesmo tempo que continua a
oferecer, sem oportunismos, a colaboração leal da Igreja para a edificação de uma sociedade livre,
justa e solidária, verdadeiramente socialista, denuncia a violação dos direitos
humanos, a limitação das liberdades pessoais e civis, a sombra estalinista, o
burocratismo, a pena de morte, a imposição de modelos estrangeiros (leia-se:
concretamente, o modelo soviético). Recorde-se que, entretanto, tinha sido
instituído o SNASP, Polícia política, à semelhança da PIDE/DGS. (A. B.).
in
D. Manuel Vieira Pinto – Arcebispo de Nampula. Cristianismo: política e
mística. Antologia, Introdução e notas de Anselmo Borges, Porto, 1992, ASA.
Era minha intenção pedir uma audiência quando passei pelo Maputo, de regresso da Europa, mas não foi possível. Vossa Excelência encontrava-se no Zimbabwe, efectuando a primeira visita oficial ao Povo que, tão heroicamente, e de mãos dadas com Moçambique, havia conquistado a liberdade e a independência.
Nessa audiência,
gostaria de agradecer a atenção que me tem dispensado e transmitir, ao mesmo
tempo, algumas das impressões que senti ao contactar de novo com a Revolução
moçambicana.
Permita-me, então,
que o faça através do papel, pedindo, desde já, me releve os limites possíveis
e o que de menos claro, ou menos correcto, eu possa dizer. Sei que verá, nesta
carta, a minha confiança no diálogo que, desde o início, procuro manter com os
responsáveis da Nação, em ordem ao bem do Povo, e o meu desejo, leal e sincero,
de cooperar na edificação de um "país, onde floresçam a liberdade, a dignidade
e o amor entre os homens».
1 - Em primeiro
lugar, quero saudar o Povo moçambicano pela vitória do Zimbabwe, se bem que o
tenha feito, em tempo oportuno, junto do Governo desta Província.
Estou certo de que
a libertação e independência do Zimbabwe muito ajudarão Moçambique e não
deixarão de constituir uma força decisiva na conquista e instauração da
liberdade dos povos de África e do Mundo, contra a escravidão do racismo e do
imperialismo. É bem verdade que o Povo moçambicano, aceitando o sacrifício de quatro anos
de guerra, logo após a luta heróica que travara contra o colonialismo
português, "escreveu uma etapa gloriosa, na história da libertação dos
povos».
2 - Em segundo
lugar, gostaria de manifestar a minha alegria pelo avanço da Revolução
moçambicana e pelas vitórias alcançadas ao longo destes primeiros cinco anos de
Independência Nacional.
De entre as
conquistas que o Povo sente, é-me grato destacar o sentido da própria dignidade
e independência, o sentido da igualdade e solidariedade, da produção e participação
colectiva nos bens; o sentido da unidade, da justiça e da liberdade; o sentido
do internacionalismo e do direito de construir a própria história, lutando com
outros povos no derrube do imperialismo e das opressões coloniais, e na
edificação duma nova ordem social, liberta da exploração do homem pelo homem.
As últimas medidas do Partido e do Governo traduzem este crescimento e
constituem, por si mesmas, avanços significativos.
Lembro, entre
outras, a criação da Moeda Nacional, o metical; o recenseamento geral
das populações, a 6ª Sessão da Assembleia Popular, o lançamento da Ofensiva
Política e Organizacional, a implementação da confiança através de medidas
políticas mais realistas e mais libertadoras, a abertura de Moçambique a países
e organizações humanitárias até agora menos presentes na reconstrução
'nacional, a sensível aproximação da Direcção com o Povo, a programação duma
economia enfrentando as grandes carências e tornando mais efectiva a
participação de cada um dos cidadãos.
3 - Mas se o Povo
moçambicano cresceu na consciência e na prática da própria dignidade, cresceu
também, e muito justamente, na consciência das situações que engendram a
indignidade e a injustiça. Isto exige, por um lado, uma séria atenção àquele
conjunto de medidas que garantem e promovem a autêntica dignidade do Povo, e
por outro lado, a determinação de corrigir e eliminar orientações e práticas
que, de algum modo, possam gerar ou instaurar situações menos dignas.
Neste sentido, cabe
lembrar a importância da cultura que define o Povo e o torna capaz de construir
a própria história, acolhendo, embora, experiências e culturas de outros povos.
Sabemos já que é intenção do partido e do Governo defender a «personalidade
moçambicana.. contra a importação de «modelos estrangeiros .. e contra qualquer
tipo de aculturação que, porventura, viesse a produzir novas formas de
colonialismo. Há, na verdade, na personalidade africana, um conjunto de
valores destinados a enriquecer o património universal da cultura e da
civilização. O desgaste, ou desperdício de tais valores, frente ao processo de
aculturação e da escolha de modelos políticos, económicos e sociais,
constituiria, sem dúvida, um empobrecimento e um prejuízo para todos os povos
do mundo.
4 - Talvez convenha
recordar, ainda que brevemente, alguns desses valores.
Sente-se que o Povo moçambicano vive, com dinamismos inerentes à sua personalidade
histórica, o sentido da dignidade da pessoa humana e o amor à vida; o sentido
da comunidade e da solidariedade, da hospitalidade e da convivência; o sentido
da autoridade, do diálogo e do valor da palavra; o sentido da justiça e da
liberdade, da alegria e da festa, do espiritual e do religioso. Estes e outros valores
resistiram ao tempo, não obstante as sucessivas tentativas de
despersonalização, levadas a cabo pelos sistemas coloniais e esclavagistas. A
assimilação colonial, se por um lado diluiu um ou outro valor, não conseguiu
destruir a personalidade do Povo, antes o tornou mais sensível, particularmente
à liberdade e à justiça. A Revolução em curso não poderá desconhecer este
conjunto de valores, sob pena de criar traumatismos na real edificação da
sociedade socialista.
5 - O diálogo das
culturas, quando feito em liberdade, não trará, certamente, qualquer tipo de
desintegração espiritual e social ao Homem moçambicano. O mesmo não direi se,
em vez do diálogo, surgir a imposição da ideologia, mormente quando esta
pretende apresentar-se como única visão integral e completa do Homem e da
história. Estaríamos então na presença duma tendência totalitária e perante o
grave perigo de transformar o Homem em meio, aceitando, na prática, os sistemas
como fim. Seria, de novo, o tempo do homem-objecto, do homem humilhado e
oprimido.
6 - A experiência
destes cinco anos diz-nos que este perigo não é ilusório. Vemos que muitos,
investidos de poder, tentam impor «ideologias» em vez de criar consciências políticas,
provocando profundos traumatismos e fechando o Homem concreto ao projecto
histórico em curso.
Poderíamos lembrar,
como sintomas destes traumatismos, uma certa frustração e desinteresse, e um
certo desprezo pela vida. Sentimos, com efeito, no contacto com o Povo, uma
«sensibilidade» que na prática se traduz em tantas formas de tristeza, de
repulsa, de evasão e desinteresse. Não será difícil intuir que as várias
situações de embriaguez, prostituição, suicídio, neuroses, desvios e crimes têm
aqui uma das suas razões mais profundas. Preocupa-nos, de verdade, o avanço
dos fracassos. Mas combatê-los eficazmente será também assumir, lucidamente, as
causas que os geram e determinam.
7 - Creio que,
neste ponto, o valor religioso, como vida e equilíbrio daqueles que o admitem e
dele vivem, deverá merecer uma atenção especial. Pô-lo em causa, sem ter em
conta as leis duma antropologia séria, é perturbar o clima que envolve e anima
a vida dos crentes nas suas manifestações mais íntimas. Dentro do processo de
libertação do Homem, o combate ao obscurantismo e à alienação religiosa é, com
certeza, um imperativo. Mas a prática incorrecta dessa luta gera, sem dúvida, reacções
perigosas e parece que, não raras vezes, tem conduzido a efeitos opostos aos
intentados.
8 - O medo à revolução
e ao Poder que a dirige será outra causa dos traumatismos que tantos
experimentam.
As raízes deste
medo são diversas. Umas vêm de longe, como cicatrizes profundas na alma do
Povo. Outras são de hoje e situam-se na prática errada de tantos quadros, ou
nos «desvios» da Revolução. O próprio sistema, concebido para libertar e humanizar,
poderá, num dado momento, corromper-se, segregando novas formas de opressão. A
«sombra estalinista» continua a ameaçar os espaços da liberdade e do
bem-estar socialista. Não será difícil encontrar um clima de medo onde se luta
por instaurar um clima de confiança do homem no homem e de libertação
colectiva.
9 - A vigilância
incorrecta é também uma raiz desse medo. Se a Revolução e reacção andam juntas,
vigilância revolucionária e medo não deveriam andar. Assistimos, infelizmente,
ao aparecimento da «reacção», a partir de dentro e de fora. Cresce, por isso, a
vigilância e a presença activa dos Serviços de Segurança. Mas cresce também o
receio, atingindo, pouco a pouco, os tecidos mais íntimos da vida social. É fácil encontrar quem sinta de novo
os tempos malditos das políticas colonial-fascistas. Este medo instintivo
desequilibra e desmobiliza, pondo em perigo a criatividade do Povo, a sua
alegria e produtividade.
10 - As detenções
arbitrárias e injustas, as sanções erradas são igualmente uma
fonte de medo e de insegurança jurídica, além de abrirem caminho a desvios
perigosos. Criar ou manter situações de injustiça não será aceitar, de
antemão, situações de contra-revolução? A administração da Justiça, apesar dos
avanços havidos, continua a ser um dos graves problemas postos ao Poder. Há
quem expie nas cadeias, ou nos «centros», crimes que não cometeu. Há quem
experimente, na carne, o desprezo, a humilhação e a tortura. Muitos esperam
indefinidamente o dia em que possam ser ouvidos ou julgados nos termos da lei e
conforme as garantias que a Constituição em vigor proclama. Outros sentem - e
também sentimos - que os isolaram deliberadamente de tudo e de todos,
inclusive dos próprios familiares, criando-se deste modo situações permanentes
de violência e destruição psicológica. Sabem, além disso, que dificilmente
serão restituídos à liberdade.
Ao dizer isto,
penso sobretudo nos detidos por razões políticas ou por sabotagem de vária
ordem. O relatório da Amnistia Internacional de 1979 denuncia já a violação dos
direitos humanos em Moçambique, referindo-se particularmente aos detidos por
razões políticas e às condições em que se encontram. Impõe-se uma pronta e
eficiente actuação no sentido de restaurar e de estabelecer o Direito que a
Constituição garante a todo o cidadão.
11 - A «Lei dos
Crimes contra a Segurança do Povo e do Estado Popular», nascida num momento
difícil da revolução, e definida pela 3ª sessão da Assembleia Popular, não veio
ajudar a ultrapassagem do medo e da insegurança jurídica. A pena de morte,
introduzida «com o intuito de reprimir e desencorajar a prática de crimes
odiosos e bárbaros», agravou o medo e o desprezo pela vida humana e pôs em
causa um dos valores importantes da Frelimo. O Relatório do Comité Central ao
3º Congresso diz-nos que «a guerra ensinou» os combatentes da Frelimo « a ser humanos, amar o Homem,
não receando a confrontação aberta no próprio seio para imporem a justiça da
política de clemência»
Porque abandonar,
num momento difícil, esse valor e enveredar pelo caminho das execuções? Porque
impedir que o Homem, diminuído pelo crime, .. readquira a sua humanidade.. e se
transforme em elemento útil à construção da sociedade e do país?
Abandonar a pena de
morte e os mecanismos que a tornam frequente seria retomar a justiça da
política de clemência e de recuperação, tão cara à Frelimo - como Vossa
Excelência me disse, em Janeiro de 78 - fazendo assim recuar a violência, a
insegurança e o medo, em favor do respeito pela vida e da força moral do Poder.
Sinto que se torna
urgente rever a «Lei dos Crimes», no sentido de banir definitivamente dos seus
articulados o medo e a morte.
Urge instaurar a
legalidade, fundada na justiça e na equidade, e criar os mecanismos que a
tornem eficaz, em cada caso.
12 - Porque
aceitamos a existência de traumatismos que dificultam e deturpam a construção
da sociedade socialista, haverá que repensar, ousadamente, certas linhas e
métodos de trabalho. Não interessa, com certeza, o triunfo dogmático dum
sistema, ou duma ideologia, mas a criação duma autêntica sociedade de homens
livres, solidários e dignos.
Isto leva-me a
falar das liberdades que, uma vez em exercício, tornarão mais real a sociedade
socialista. É já muito o que se fez neste sentido. Nota-se contudo que os «direitos
pessoais e civis» encontram, na prática, mais limitações que os «direitos
sociais». Sente-se que o Povo conquistou e vive o direito à terra e ao
trabalho, à educação e à cultura, à saúde e à assistência, ao poder económico e
político. Mas sente-se também que outros direitos, igualmente decisivos,
sofrem permanentes e indevidas restrições.
13 - Refiro-me,
concretamente, às liberdades individuais, consignadas na Constituição. Sabemos
que estas liberdades não são alheias aos objectivos da Revolução. O Homem novo
jamais poderá ser um Homem mutilado.
Por seu lado, a
justiça social não poderá existir sem liberdade, do mesmo modo que a liberdade
não terá consistência sem justiça social. É certo que ao Estado compete
regular as liberdades do indivíduo, em ordem à justa liberdade de todos. Mas
uma coisa é regular, outra coisa é negar ou impedir. A Constituição afirma que
«o Estado proíbe o abuso dos direitos e liberdades individuais, em prejuízo dos
interesses do Povo». Esta posição é legítima, desde que não se confunda, tacticamente,
o uso legítimo com o «abuso», e não se transforme os «interesses do Povo», num
indiscutível e novo absoluto. Seria voltar aos regimes de cariz totalitário, sacrificando
o Homem concreto às «razões do Estado».
14 - A liberdade de pensamento, de
consciência e de religião é uma daquelas que mais luta exigiu, para se tornar
património da consciência universal. Raros serão os estados que, hoje em dia, não consagram nas suas
Constituições essas liberdades. E onde, jurídica e praticamente, são negadas,
haverá que perguntar se não estamos em presença de regimes retrógrados,
desumanos e fascistas.
A República Popular
de Moçambique reconhece estes direitos. Parece, contudo, que o direito à
liberdade de consciência e de religião não está suficientemente
garantido no processo em curso. Tão-pouco o direito à liberdade de pensamento e
de palavra. Há mesmo "quem prenda aqueles que têm coragem de falar», o
que é contrário à tradição da Frelimo, como disse Vossa Excelência no discurso
de 18 de Março deste ano. Temo, porém, que na edificação duma sociedade de
homens livres e dignos, se estejam a criar, deste modo, subtis e perigosas
opressões. É que negar qualquer dimensão do Homem
histórico é negar a humanização, a que deve tender todo o processo
verdadeiramente revolucionário.
As liberdades
espirituais são uma exigência da radical dignidade do homem e não uma pura
concessão do Estado. E são além disso um facto da civilização. Onde quer que
estejam em causa, estará também em causa o direito e a civilização.
15 - Nesta ordem de ideias, parece-me
oportuno dizer uma palavra sobre a família e o seu lugar na construção de Moçambique,
como "país digno e livre».
A Constituição diz,
no Artigo 29, que "o Estado protege o casamento, a família, a maternidade
e a infância». Mas proteger não será, antes de mais, promover e garantir
valores, os direitos e os deveres, próprios do casamento, da família, da
maternidade e da infância? Para além de qualquer ideologia, a família será
sempre a primeira comunidade humana, dela dependendo, em grande escala, a
sociedade e a Nação. Será também a primeira escola das forças que
constroem, dignamente, a sociedade e o país. Deverá, por isso, merecer a melhor
atenção e o maior respeito.
16 - Em Moçambique, o casamento, a famí1ia,
a maternidade e a infância sofrem, desde há muito, graves ameaças. Poderíamos
falar de humilhação ancestral da mulher, poligamia, da prostituição, dos casamentos
prematuros, dos casais separados voluntária ou involuntariamente, da irresponsabilidade
dos pais, das tradições negativas, da falta de consciência política e ética, da
compreensão viciada da unidade conjugal e do baixo nível económico da maior
parte das farru1ias.
O partido e o
Governo têm estado atentos a estas ameaças procurando eliminá-las. Há outras,
contudo, que exigem uma acção mais pronta e mais clara. Penso sobretudo na
dignidade e unidade da família, no reconhecimento e promoção dos direitos e deveres que os pais devem
assumir relativamente à estabilidade e fecundidade do próprio casamento e à
educação dos filhos. Penso no lugar que a família e os valores próprios da
família africana devem ter dentro da construção da nova sociedade.
17 - Devo dizer que
muitas famílias não sentem, ao vivo, a protecção que o Estado lhes garante. Por
um lado, há carências graves dificultando o crescimento integral da família.
Por outro lado, há novas situações que tornam impossível a educação dos filhos
pelos pais e a própria unidade familiar.
A falta de ligação
dos Centros Educacionais e de outras unidades com as famílias não permite o
contacto necessário dos pais com os filhos. Além disso, há um medo instintivo
de que o Estado se apodere dos filhos, desprezando a famí1ia. Os
comportamentos de vários quadros, mobilizando continuadores ou jovens casais,
sem o mínimo respeito pela família e direitos dos pais, justificam largamente
esse medo existente.
A corrupção sexual,
que vitima tantos jovens em serviço nas diversas unidades, põe em risco a
dignidade do homem e da mulher, a seriedade do casamento e a saúde moral da
sociedade em construção. Urge, neste ponto, uma larga ofensiva, promovendo as
consciências, afirmando os valores, garantindo os direitos e os deveres que
incumbem aos pais e à família como tal.
18 - Apraz-me
felicitar o partido e o Governo pela «Ofensiva Política e Organizacional» em
curso. Sabemos que tal ofensiva não tem, como objectivo primeiro, desalojar os
«infiltrados» e os «incompetentes» e aumentar os detidos, mas promover as
consciências e transformar as situações. Parece que nem todos assim o entendem,
pois preocupam-se sobretudo em descobrir sabotagens e desvios.
Assumir a ofensiva
será certamente empenhar-se num autêntico crescimento político, científico,
técnico e ético da própria consciência colectiva e realizar as tarefas que
permitam a passagem de relações individualistas a relações solidárias, a
passagem de condições desumanas a condições inteiramente humanas, a passagem
de propriedade egoísta à propriedade social. Será assim que Moçambique se
tornará um «país desenvolvido e próspero, um país onde cada cidadão tenha
trabalho, boa alimentação, saúde, educação correcta, assistência e habitação
condigna; um país onde floresçam a liberdade, a dignidade e o amor entre os
homens».
19 - Quereria afirmar, mais uma vez, o
nosso engajamento na «luta contra o subdesenvolvimento e pela edificação duma
sociedade avançada». Não faço esta oferta, por razões de «oportunismo», como
alguém já tentou insinuar, se bem que a Igreja em Moçambique nem sempre tenha
sabido servir, como devia, o Homem e o Povo. A missão da Igreja, sendo por
natureza espiritual, passa justamente pelo
Homem concreto e pelas situações que o envolvem. O anúncio do Evangelho inclui,
assim, o anúncio da justiça e da liberdade, da igualdade e da solidariedade, da
participação e posse equitativa dos bens. Não se pode participar o Evangelho
sem assumir a luta pela justiça contra a injustiça, a luta pela igualdade
contra a desigualdade económica, social e política.
20 - Situados na Revolução
e nesta fase da história do Povo de Moçambique, desejamos cooperar eficazmente
na plena libertação de cada homem moçambicano e do Povo como tal. A batalha que
desejamos assumir não se limita à eliminação das carências. Queremos trabalhar
a favor do homem integral e solidário, a favor do Povo, como sujeito activo e
consciente do seu próprio destino, como «força principal da Revolução» em
marcha. Penso que é este o conteúdo da vitória que o Partido e o Governo pretendem
alcançar, nesta década, agora iniciada.
21 - Julgo também
que será necessário esclarecer mais e melhor, com a prática e a palavra, o que
é e o que não é uma sociedade socialista.
Nos contactos
diários, observo que a maioria do Povo não entendeu, até agora, o que é o
«Socialismo», ou pior ainda, entende-o erradamente. Parte da culpa desta
ignorância ou distorção cabe a certos quadros postos em contacto com o
Povo, através dos comícios, seminários, encontros e administração ordinária.
Devido à sua
impreparação, oportunismo e abuso do poder, «levaram o Povo ao descontentamento
generalizado», pela ausência de responsabilidades colectivas livremente
discutidas e assumidas.
A mobilização pela
mobilização gerou naturalmente desilusões e perguntas sérias.
A falta de interesse e do respeito pelas situações e problemas concretos do
Povo, a inconsequência das palavras e a ineficácia das acções colectivas,
puseram em dúvida o autêntico conteúdo do Socialismo, bem como a força dirigente
do partido. Por sua vez, as práticas erradas do «combate à alienação
religiosa» obrigaram o povo a concluir que o Socialismo e militância
anti-religiosa são coisas idênticas. Edificar o socialismo seria, então,
construir uma terra contra Deus e contra os crentes.
O desgosto, a
desilusão, quando não o desespero que tantos experimentam, face ao
socialismo científico, não têm, neste momento, a sua raiz mais sensível na
abolição da propriedade privada dos meios de produção ou na implementação duma sociedade
sem classes, mas nos maus tratos que um certo esquerdismo tem dado ao Homem,
particularmente quando crente ou ideologicamente duvidoso.
A recuperação da
imagem correcta do Socialismo terá em conta a crítica das práticas e
orientações abusivas e não deixará de reconsiderar a liberdade de religião e de
pensamento, e o seu justo lugar na Revolução.
22 - As situações
de injustiça e de miséria, persistentes e arbitrárias, associaram também o
Socialismo com repressão e com o sofrimento que o Povo suporta há tantos
séculos. Será oportuno restaurar o direito do Povo à alegria, à palavra e ao
bem-estar, contra o fatalismo da opressão, do silêncio e da tristeza. Impõe-se,
igualmente, um esclarecimento mais digno sobre a função coerciva do Estado e o
significado da luta de classes, dentro da construção da nova sociedade.
Impõe-se também uma
palavra mais clara sobre o sentido das nacionalizações dos meios de produção e
de troca. Com efeito, há quem confunda o Socialismo com as nacionalizações e
estas com a rejeição e fuga dos colonos. Esta confusão, além de alimentar um
certo racismo, obscurece por completo a novidade e o dinamismo duma sociedade
verdadeiramente socialista.
23 - O
«burocratismo», denunciado energicamente por Vossa Excelência, aquando do
lançamento da Ofensiva Política e Organizacional, é talvez uma das causas mais
graves dessa imagem negativa do Socialismo científico.
Já Lenine se
queixava desse vício desastroso. Dizia ele que o «burocratismo reaparece em
todos os programas, impedindo assim a consolidação de uma sociedade realmente
socialista», e confessava que «no País tudo se afundava no pântano burocrático
das administrações». Lembrava, por isso, que «seria necessário lutar, todos os
dias, contra o burocratismo», na certeza de que tal luta exigiria
«inteligência, autoridade e força» (Obras Completas, tomo XXXVI, pág.
578). E, à maneira de aviso, escrevia, pouco antes de morrer: «a burocracia é o
nosso pior inimigo interno» (Obras Completas, Ed. XXXIII, pág. 228).
Este inimigo está presente
e mina gravemente as bases da sociedade que desejamos construir. Além de
aparecer como a «nova burguesia, gerindo a propriedade social e toda a vida da
sociedade», o burocratismo segrega, como frutos venenosos, o dogmatismo e o
conservadorismo, acabando por criar situações potenciais de anti-revolução. É
ele que, no seu agir quotidiano, separa o Povo da Direcção, praticando a
arrogância e o desprezo e transformando o centralismo democrático em dirigismo
despótico.
É ele que perpetua o abuso do poder,
adiando e impedindo a correcta discussão dos problemas, evitando a crítica
oportuna e necessária dos erros e desvios e forjando, a nível de diversos
escalões, relatórios que, se têm pouco a ver com a verdade das situações, terão
muito a ver com a defesa e garantia de «privilégios» e lugares adquiridos. Mao
Tsé-Tung procurou evitar esta grave esclerose, graças à táctica da «revolução
na revolução». A ofensiva política, actuando já em vários sectores do aparelho
de Estado e da vida do país, dará certamente uma atenção especial ao
«burocratismo», como primeiro «infiltrado» no aparelho de Estado.
24 - Escrevo estas
linhas após a comemoração do décimo sexto aniversário do
início da luta armada pela libertação de Moçambique. Ninguém tem o direito de
ignorar o heroísmo desses homens e mulheres determinados a lutar até à morte
contra a dominação estrangeira e o colonialismo português, e pela libertação e
independência total da terra e do Povo de Moçambique. Prestamos homenagem a
todos os combatentes, vendo neles a consciência mais viva do Povo moçambicano e
a sua vanguarda gloriosa. Lembramos, com respeito, os que tombaram,
fertilizando com o sangue e o exemplo a terra e o Povo de Moçambique.
25 - Hoje, a
Frelimo continua organizada em partido marxista-Ieninista. É ela a força
dirigente da luta que travamos pelo avanço duma terra e dum Povo inteiramente
libertado da exploração e humilhação. Mas dirigir não é certamente implantar um
«poder». Este perigo poderá vir a surgir. A história ensina que todo o poder tende
a corromper-se, tornando-se, de algum modo, absoluto e sacral.
Se o aparelho de
Estado está doente, haverá que atender ao partido para que não seja também
afectado. Diz-nos Lenine que não seria de admirar se "o burocratismo”,
nascido nas instituições do Estado, exercesse igual influência corrupta nas
organizações do partido», (conf. Obras Compl., Edição alemã, 1930, pág.
616, Tomo XXX).
A ofensiva
política, em marcha, terá em conta este perigo, tanto mais que, para muitos, o
partido e o seu órgão principal de vigilância - o SNASP - começam já a
aparecer como a «nova elite de Poder».
26 - A organização
de certas Aldeias Comunais pode também deturpar a verdadeira imagem do
Socialismo científico. São já muitas as aldeias, a nível do país. A razão que
as determina, bem como os
objectivos a que devem tender, são perfeitamente aceitáveis. Reunindo as
populações desorganizadas e dispersas, surgiriam as aldeias como espaço de
unidade, de solidariedade, de amizade, alegria e bem-estar. As aldeias seriam
então o embrião da sociedade socialista, materializando já a ausência da
exploração e da opressão, e a presença da solidariedade e da participação
efectiva nos bens, incluindo o do Poder. Seriam, além disso, os pólos dum
integral desenvolvimento e da experiência socialista.
Acontece, porém,
que a grande parte das aldeias sofre de males congénitos e de
carências graves, gerando-se, assim, um mal-estar que ninguém poderá desprezar,
ou tentar encobrir. Como primeira raiz desses males aparece, por um lado, a falta
dum trabalho político sério, capaz de criar no Povo a decisão de assumir o
sentido e a importância da Aldeia Comunal. Por outro lado, voltou-se, em
algumas zonas, às velhas medidas compulsivas, criando-se, deste modo,
situações graves de opressão e recusa.
Acresce ainda que
alguns dirigentes eliminaram ou restringiram, na organização das aldeias,
certas liberdades, inclusive a religiosa, que para a vida, alegria e
tranquilidade do Povo continuam a ter importância decisiva. Para muitos, as
aldeias significam, com efeito, uma perda das liberdades quotidianas e um
espaço de sofrimento, dadas as contínuas e duras provações que as afectam.
Será necessário tornar
mais presente e actuante a «Resolução sobre Aldeias Comunais» emanada do Comité
Central, aquando da sua 8ª sessão, particularmente o princípio de que ·0 Homem
e a terra são os principais elementos que intervêm como ponto de partida para
o estabelecimento das Aldeias Comunais. e a recomendação de que 'para a criação
duma Aldeia Comunal é factor imprescindível a mobilização e discussão entre as
massas camponesas de modo a que elas, compreendendo os objectivos e interessando-se
directamente, se organizem e assumam essa tarefa, contando com as próprias
forças». .
Importa sanar,
quanto antes, as situações incorrectas existentes, «dar prioridade ao Homem e
ao trabalho político», estruturar as Aldeias Comunais de tal modo que, pouco a
pouco, elas possam desenvolver-se correctamente e proporcionar, cada vez mais,
aos seus membros, a satisfação das necessidades de uma vida completa». Só
assim, as aldeias poderão manifestar e traduzir «a edificação de uma sociedade
justa e progressiva» e afirmar a força libertadora da Revolução.
27 - Eis, Senhor
Presidente, algumas das minhas impressões, colhidas ao longo dos dias, no
contacto directo com o Povo.
Quis transmiti-las,
com inteira lealdade e confiança, fazendo de cada problema indicado não uma
análise exaustiva, como seria necessário, mas um momento de partilha da comum
preocupação que nos anima: a liberdade integral de Homem e Povo, o avanço duma
Pátria onde não haja exploradores nem explorados, o triunfo dum país onde
floresçam a liberdade, a dignidade, o amor e a Paz».
Aceite as minhas
saudações respeitosas e os meus votos sinceros de novas vitórias em favor de Moçambique
digno, próspero, solidário e fraterno.
P.S. - As citações são tiradas do Discurso de Vossa
Excelência de 18 de Março deste ano, das entrevistas concedidas a Cadernos do
Terceiro Mundo, ano 3, nº 24, e à Revista «Afrique-Asie» de 7/7/80, e do
Relatório do Comité Central ao 3º Congresso da Frelimo.
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