Datada de Maio de
1987, esta carta não chegou a ser enviada, mas foi transmitida oralmente ao
Presidente. Cf. D. Manuel
Vieira Pinto – Arcebispo de Nampula,
Cristianismo: política e mística.
Antologia, Introdução e notas de Anselmo Borges, Porto, 1992, Edições
ASA.
A confiança que Vossa Excelência nos
merece, como Presidente da República Popular de Moçambique,
a preocupação que tem revelado, particularmente no que diz respeito à situação
de sofrimento em que vive o nosso Povo, concretamente à fome, à guerra e à desestabilização
do nosso país, e, por outro lado, o desejo várias vezes manifestado de
contribuirmos, dentro da nossa missão específica, para o desenvolvimento
integral do país e para a consecução duma "paz justa, assente na liberdade
e na independência”, levam-nos a vir junto de Vossa Excelência para expor, com
a franqueza de sempre, alguns dos problemas que, no momento presente, mais
afectam o nosso Povo e o nosso país.
Em primeiro lugar, a violência da
fome.
A miséria constitui, de facto, uma
das violências e humilhações a oprimir e a esmagar hoje em Moçambique milhares e milhares de homens, mulheres,
velhos e crianças.
As vítimas da fome são já muitas e
não cessam de aumentar todos os dias. Não temos números exactos, mas sabemos
que, nas diversas províncias do país, as pessoas afectadas pela fome contam-se,
já, por milhares e milhares. Sabemos também que as populações mais atingidas
pela guerra são igualmente as mais
afectadas pela fome e outras carências elementares. Sabemos que há milhares e
milhares de crianças vítimas da subnutrição e das situações que a guerra e a
desestabilização do país provocam e não cessam de agravar.
As notícias dizem-nos que já
morreram, desde o início da guerra, mais de 300 mil crianças. E a UNICEF
garante-nos que de quatro em quatro minutos morre uma criança em Moçambique.
O combate contra a fome e a miséria
impõe-se com uma exigência inadiável. Pensamos, contudo, que não bastará
invocar simplesmente como causa da miséria as calamidades naturais e as acções
de desestabilização, movidas contra a nossa República».
É certo que a guerra, destruindo a
nossa economia e obrigando-nos a investir na defesa da Nação a maior parte dos
recursos disponíveis, e forçando-nos, além disso, a inverter o processo
económico, iniciado na década de 80, constitui, sem dúvida, o primeiro factor
da miséria a que o Povo se vê, imerecida e injustamente, sujeito. Mas, no combate à degradação e desestabilização que
põem em perigo a vida económica e social do país, não bastará denunciar
unicamente a guerra, nem apelar simplesmente ao heroísmo do Povo, dizendo-lhe
que «temos de resistir» e de «persistir», na busca de soluções que visem
ultrapassar esta situação de humilhação e de carência. Julgamos que chegou o
momento de dizermos, lealmente e sem rodeios, que a miséria que nos esmaga tem
outras causas, além das acções de desestabilização e das calamidades naturais,
além das agressões contra a nossa economia, a nossa independência e soberania,
além da péssima herança que nos deixou o colonialismo, além dos novos
interesses e das novas formas de exploração e pilhagem.
Há que denunciar os erros, os
abusos, os desvios e os egoísmos que, a partir de nós próprios, têm concorrido
para o agravamento desta humilhante situação de miséria e de descalabro social
e económico.
Há que enfrentar as ideologias, os
sistemas, as tecnologias e os planos, menos ajustados à índole, à cultura e à
realidade do nosso Povo, e mais susceptíveis de criar desequilíbrios e de
provocar, nos diversos sectores da economia nacional, verdadeiros desastres ou
fracassos.
Há que dizer, claramente, que na
base desta instabilidade social e económica estão, por um lado, os nossos
dogmatismos e as nossas precipitações, e, por outro lado, os oportunismos, os
interesses, as falsas solidariedades, o neocolonialismo e os imperialismos de
todas as cores. Que estão as arbitrariedades e injustiças de uns, e estão,
igualmente, as novas formas de exploração e de discriminação de outros. Que
estão ainda os diversos mecanismos que, em vez de promover uma justa e
equitativa distribuição de bens, segregam uma nova forma de discriminação e de
humilhação. Mecanismos que voltaram
a instaurar o desprezo pelas pessoas, pelos direitos que lhes assistem, e a utilizar contra os produtores e os
consumidores medidas arbitrárias e compulsivas.
Perdoe-nos, Senhor Presidente, se
falamos destes abusos, injustiças e erros, mas, se o fazemos, é porque sabemos
que a imoralidade, a corrupção, a desonestidade e a prepotência - também no
campo social e económico são problemas que o preocupam seriamente, e porque
estamos convencidos de que o combate pela economia não poderá ser travado tendo
como objectivo, unicamente, «a reabilitação económica», mas deverá enfrentar,
igualmente, a reabilitação ética, moral, espiritual e cultural do país.
O combate contra a fome e a miséria
não poderá limitar-se «a planificar, organizar e controlar a realização de planos e a desenvolver sempre mais os métodos de
planificação, de organização e de controlo», mas deverá ter em conta, com igual
preocupação e firmeza, as ideologias, os sistemas, os modelos, as tecnologias
em vigor no país, deverá ter em conta as diversas formas de injustiça, de
imoralidade e de corrupção que concorrem, de algum modo, para a ruína e o
descalabro do nosso país.
A fome, a partir dos nossos erros,
desvios e abusos, ou da destruição e desestabilização, provocada pela guerra, é
de facto uma grave violência e como tal não só contribui para o mal-estar e
instabilidade do país, mas igualmente para o avanço e agravamento da violência
armada.
Combater a guerra que desestabiliza
e destrói o país é combater simultaneamente todas as causas que a partir de
nós próprios e da violência agressiva provocam e agravam a fome.
Tudo isto está dito por Vossa
Excelência no discurso de encerramento da Sessão Extraordinária do Comité
Central, em 3 de Novembro de 1986, e, igualmente, estão anunciadas algumas
medidas que urge tomar. Impõe-se de facto -o
relançamento da nossa economia, adaptando corajosamente todas as medidas de
saneamento económico e financeiro que forem necessárias". Impõe-se «um
combate vigoroso contra a corrupção, a candonga, a negligência, a
indisciplina, o esbanjamento de recursos, a má gestão, a improdutividade".
Urge aprofundar o conhecimento das
realidades económicas e sociais do país, valorizando o papel e as potencialidades
do sector familiar» e do «sector privado».
Urge pôr cobro à injustiça e à
imoralidade na aquisição e distribuição de bens de consumo, aos diversos
circuitos de exploração e de roubo, aos diversos esquemas de discriminação e
segregação económica, às diversas formas de ajuda e cooperação neocolonialistas
ou neo-imperialistas, venham donde vierem.
Urge parar com os abusos, a partir
dos quadros do partido e do aparelho do Estado, junto das populações ou em
áreas de guerra.
Urge enfrentar sem reticências o
sofrimento que esmaga o nosso Povo, humilhando-o, destruindo-o com um cinismo e
uma crueldade cada vez maiores.
O sofrimento do Povo, a partir da
fome, preocupa-nos seriamente e preocupa, sem dúvida, os dirigentes do país. Mas, infelizmente, não é só a fome, não é só a
carência quase absoluta de bens essenciais que faz sofrer e chorar o Povo. Há
outros sofrimentos e outras violências.
A guerra com o seu cortejo de
atrocidades e de crimes é uma das violências que mais humilha e destrói o
nosso Povo. As armas estão em todo o país. Nenhuma província ou região está
limpa de sangue. As vítimas da guerra contam-se, já, por milhares e milhares.
O Povo está atento a esta violência
que mata e dizima milhares dos seus filhos, que destrói e queima os seus bens e
haveres, que põe em causa o futuro do país. O Povo está atento às causas que
provocam esta guerra e às forças que a promovem, exasperam e perpetuam.
O Bureau Político do Comité Central
do Partido Frelimo diz-nos que «a
situação da guerra que vivemos resulta duma agressão exterior contra a nossa
Pátria e a nossa Revolução». Que ela é movida pelo imperialismo que tem na
África do Sul racista a sua base operacional e nos bandidos armados o seu
instrumento». Que ela «é um fenómeno histórico que acontece em todos os
processos revolucionários na luta dos povos pela independência e justiça
social» , que ela .faz parte da conspiração internacional dos antigos colonos,
dos círculos racistas e da Extrema Direita internacionais ... Diz-nos que ·0
Povo tem sabido compreender a natureza da agressão à sua Pátria e tem respondido
com coragem e determinação aos desígnios do imperialismo».
Assim explica o Bureau Político as
causas desta guerra e assim explica o comportamento do Povo frente à violência
que o esmaga e destrói.
Estas causas têm, sem dúvida, a sua
verdade. Perguntamo-nos, porém, se tais causas bastarão para explicar
inteiramente esta guerra - uma guerra que está em todo o país e que põe frente
a frente cidadãos do mesmo país e filhos do mesmo Povo. Que nome devemos dar a
uma guerra que põe moçambicanos uns contra os outros matando-se e destruindo-se
barbaramente? Como explicar que esta violência no interior do país resulta apenas
de «elementos comandados do exterior», do «imperialismo», da «conspiração
internacional, que tem seu apoio nos antigos colonos, nos círculos racistas e
de Extrema Direita»? Não haverá, porventura, outras causas que, a partir de
dentro, contribuam igualmente para a manutenção e exasperação desta guerra?
Não há dúvida de que o apartheíd ou
o regime racista da África do Sul é o grande responsável por esta guerra que
pretende fazer do nosso Povo um Povo novamente dependente, e do nosso país uma
colónia ou uma plataforma ao serviço de interesses e propósitos hegemónicos. A
guerra que destrói e ensanguenta o país não pode desligar-se destes propósitos
hegemónicos, e não pode ignorar os
interesses que a provocam, estimulam e perpetuam. Mas bastarão estas causas
para explicar a guerra que nos humilha e destrói, sem piedade?
Certamente que haverá outras causas,
cujas raízes poderíamos buscar na prática do ódio, da hipocrisia e da mentira,
na prática da injustiça e do desprezo de uns pelos outros.
A história diz-nos que as situações
de humilhação e de injustiça, não eliminadas a tempo, acabam por gerar tensões
e conflitos armados.
Assim, onde houver humilhação,
indignidade e injustiça, aí haverá violência, aí surgirão os conflitos, até ao
recurso às armas.
«A paz - diz João Paulo II -
reduz-se ao respeito dos direitos invioláveis do Homem, ao passo que a guerra
nasce da violação desses direitos».
Perdoe-nos, Senhor Presidente, se
entre as causas desta guerra incluímos as situações de humilhação, de
indignidade e de injustiça que temos provocado ao longo destes anos. Tais
situações estão sem dúvida na base desta guerra, tal como outras humilhações e
injustiças de perto ou de longe. Por isso, a vitória contra esta guerra terá de
ser, ao mesmo tempo, uma vitória contra a humilhação, a indignidade e a
injustiça que possam existir a nível da Nação.
Infelizmente, não faltam a nível do
país situações deste género. Basta pensar nas prepotências, nos abusos do
poder, nas práticas de discriminação e de desprezo, nas violações dos direitos
essenciais a todo o ser humano, nas limitações indevidas ou confiscação das
liberdades, das detenções arbitrárias, nas condenações sem processo e sem
julgamento em Tribunal Público e imparcial, nas execuções sumárias, nos maus
tratos, nos castigos humilhantes e cruéis, nas torturas, nos assassinatos
indiscriminados, nas políticas de repressão e de vingança, no ostracismo por
motivos políticos, ideológicos, partidários ou religiosos ou por simples
razões de Estado.
Custa-nos dizer que a sociedade que
tentamos construir está dia a dia mais ameaçada pela humilhação, pela
indignidade e pela injustiça. Não há, efectivamente, relações humanas fundadas
na verdade, na justiça, na liberdade, no amor solidário, na concórdia, na
co-responsabilidade, na democracia e no diálogo político a todos os níveis.
Há muita mentira, muita injustiça,
muita violação dos direitos e das liberdades essenciais a todo o cidadão, há
muito ódio, muito espírito de vingança e de represália, muito desprezo e
humilhação, muita discriminação e manipulação, muito autoritarismo e
despotismo, muito dogmatismo e violência.
Há também muitas vítimas destas
indignidades e injustiças, destas humilhações e violências.
Pensamos, concretamente, nos presos
por razões políticas, ideológicas ou partidárias, nos detidos sem processo e
sem culpa formada, nas vítimas da violência arbitrária, a partir das diversas
«operações» lançadas no país, durante
estes anos de revolução e de independência, pensamos nas vítimas de tantas
medidas autoritárias e desumanas, de tantas políticas erradas, de tantos abusos
e irresponsabilidades.
Tudo isto pesa, queiramos ou não, na
génese e na crueldade da guerra que dizima e ensanguenta o país.
Por isso, a busca da paz obriga-nos
a enfrentar, não só as agressões que nos vêm do exterior, dos regimes racistas
e expansionistas, dos interesses imperialistas e neocolonialistas, mas
igualmente as agressões que nascem das situações de humilhação, de indignidade
e de injustiça, presentes dum modo ou doutro na sociedade, na comunidade
política e no país.
O combate contra a guerra
obriga-nos, de facto, a encarar estas situações de injustiça, obriga-nos a
assumir uma política e uma estratégia que reponha a justiça, a dignidade, a
liberdade onde quer que tenham sido ofendidas ou violadas, que promovam o
diálogo entre os diversos moçambicanos desavindos, que despertem a mútua
confiança e tornam possível, a nível da Nação, a reconciliação e a paz.
Este seria um dos passos a dar, no
combate contra a guerra e na consecução da paz: reconstruir a unidade nacional
pela reposição da justiça, pela devolução das liberdades onde tenham sido
confiscadas ou abusivamente limitadas, pela reparação da dignidade humana onde
tenha sido ofendida ou maltratada.
Um outro passo, igualmente
fundamental, seria a opção pela política e estratégia do diálogo contra a
política e a estratégia da represália e do extermínio.
Permita-nos, Senhor Presidente, que
mais uma vez proponhamos os meios racionais e humanos como o caminho mais
seguro e mais eficaz na conquista da paz.
Não se trata de um diálogo à custa
da dignidade, da liberdade, da independência e soberania do nosso país. Não se
trata de uma reconciliação entre a injustiça e a justiça, entre o mal e o bem,
entre o apartheid, neocolonialismo, o imperialismo e a dignidade, a
independência e a soberania da nossa Nação.
Trata-se, sim, dum diálogo que há-de
passar pela verdade, pela justiça, pela dignidade e pela liberdade, pelas
conversações, pelos acordos e instrumentos jurídicos que melhor conduzam a um
pronto cessar-fogo e a uma paz verdadeiramente digna de todos ..
Trata-se de uma reconciliação que
pressupõe igualmente as exigências da verdade e da justiça, da dignidade e da
liberdade, e que se exprime na compreensão, no entendimento, na clemência e no
perdão.
O diálogo que propomos passa,
portanto, pela verdade, e, em primeiro lugar, pela verdade da própria guerra.
Donde nasce efectivamente esta
guerra, quais os seus objectivos, quais os seus autores e cúmplices, quais as
forças e interesses que a movem? Será que as causas desta guerra se limitam aos
interesses do «regime de Pretória e das suas forças retrógadas e belicistas»,
aos interesses dos «sistemas de opressão e de exploração secularmente
combatidos pelo nosso Povo» ou será que existem por detrás de certas
ideologias, de certa política e estratégias, de certas solidariedades e ajudas
outros interesses igualmente colonialistas e imperialistas?
O Povo pergunta pelos interesses que
movem esta guerra e pelas forças que a promovem e mantêm. Pergunta igualmente
pelas políticas ou estratégias da violência que o esmaga, pergunta pelos povos
ou regimes verdadeiramente interessados no bem-estar e na paz a que tem
direito.
De facto o Povo não sabe exactamente
donde vem esta guerra e a quem serve esta guerra, mas uma coisa ele sabe com
inteira certeza: esta guerra não serve o país, não serve o presente, nem o
futuro da Nação moçambicana.
Realmente esta guerra cruel e
fratricida não serve o Povo, nem a Nação moçambicana. Se proveito existe em tal
violência, este pertencerá a quem a alimenta e estimula. Ao Povo, ao país, no
final da luta, restará apenas a desolação e a morte.
Denunciar os interesses da guerra é
assumir a verdade desta guerra e das forças que a promovem e sustentam.
Mas não bastará a verdade da guerra,
para fazer avançar o diálogo da paz.
Impõe-se também a justiça,
concretamente a devolução das liberdades que porventura tenham sido confiscadas
ou indevidamente limitadas. De facto, nem todas as liberdades essenciais à
pessoa humana e ao cidadão terão sido devidamente respeitadas.
A justiça, como fundamento do
diálogo político, implica, necessariamente, o respeito pelas liberdades a que
todo o cidadão tem direito; implica, ao mesmo tempo, o reconhecimento dos
abusos cometidos e a ultrapassagem de situações ofensivas da dignidade e da
liberdade.
É possível que na guerra em aberto haja quem lute, porque um dia a
liberdade a que tinha direito lhe foi confiscada. O caminho para a paz obriga à reparação destas ofensas e à devolução das
liberdades porventura ofendidas ou maltratadas.
Obriga também a que se crie aquele
conjunto de condições que permitam aos exilados e refugiados regressarem
prontamente ao seu país, podendo assim contribuir para o advento e eliminação
da guerra.
É que o diálogo político, tendo como fundamento a verdade, a justiça,
a liberdade, a dignidade e a independência, obriga a que se responsabilize pela
paz todos os moçambicanos, verdadeiramente nacionalistas, e sinceramente
empenhados na construção da nossa Pátria.
Como disse muito bem Vossa
Excelência, «ninguém, senão nós próprios, defenderá a nossa Pátria», «ninguém,
senão nós próprios, construirá a paz e a tranquilidade».
Gostaríamos que este plural fosse
entendido por todos os moçambicanos, filhos do mesmo Povo e da mesma Nação, e
que esta responsabilidade de defender a Pátria e de construir a Paz fosse
assumida efectivamente por todos os moçambicanos, estejam fora ou dentro do
país.
Na verdade, compete aos
moçambicanos, por direito e por dever, a primeira responsabilidade na solução
dos problemas que lhes dizem respeito. Compete-lhes, portanto, em primeiro
lugar e antes de mais ninguém, a solução desta guerra e a busca dos melhores
caminhos que levem à concórdia e à paz nacional.
Aos estrangeiros compete-lhes o
dever de nos deixar exercer o direito sagrado de sermos nós próprios a resolver
os nossos problemas, o direito de nos entendermos uns com os outros.
Este direito de sermos os primeiros
a assumir a responsabilidade pelos destinos da nossa Pátria é um dos direitos
que funda e garante a nossa soberania e a nossa identidade e que a justiça
manda defender e proclamar.
Estamos certos de que Vossa
Excelência proclamará e defenderá este direito, diante de todos os países e
regimes, diante de todos os povos, sejam aliados ou não aliados, e diante de
todos aqueles que dum modo ou doutro estão envolvidos e implicados nesta guerra
de opressão e barbárie.
O diálogo político em ordem à paz e
ao termo da guerra passa efectivamente pela verdade, pela justiça e pelo
reconhecimento e exercício da liberdade e da independência. E passa também
pela unidade e pela clemência, até ao perdão e à reconciliação.
A nossa experiência permite-nos
dizer que o Povo concreto, o Povo real está unido à sua Direcção na questão da
paz e da reconciliação entre todos os moçambicanos, entre todas as etnias,
raças e culturas que integram e caracterizam o nosso país. Mas teremos também
de dizer que o Povo não se sente unido à sua Direcção quando a palavra de ordem
é o reforço dos exércitos e o aumento das armas. O Povo está cansado de ser
mobilizado, está cansado de treinos político-militares, cansado de ver os seus
filhos armados. Por isso, não quer mais armas, nem mais treinos, não quer mais
que os seus filhos aprendam a matar.
O nosso Povo sabe, por intuição e a
partir da experiência, que a paz entre os filhos do mesmo Povo, entre grupos
sociais e culturais do mesmo país, não virá pelas armas, nem pelo reforço dos
exércitos nem tão-pouco pela simples derrota de uns e vitória de outros. Sabe
também que, no caso concreto, há moçambicanos de ambos os lados, e que a
vitória das armas outra coisa não faria além de adiar indefinidamente a paz
nacional.
De facto, poderão as armas conseguir
criar a unidade entre todos os moçambicanos,
sanar as feridas e apagar no coração dos vencedores o orgulho e a arrogância e
no coração dos vencidos o espírito de desforra e de vingança?
O nosso Povo abe tudo isto e por
isso não sente vontade de se unir à sua Direcção para fazer mais guerra. Sente,
sim, um desejo profundo de concórdia entre todo os seus filhos para, todos
juntos, apagarem este fogo da guerra e plantar a árvore da paz.
Sabemos que Vossa Excelência vive
esta mesma aspiração de paz. Por isso, ousamos pedir, mais uma vez, que o
diálogo político, o entendimento e a reconciliação sejam, na busca da paz e na
expulsão da guerra, as armas e as estratégias mais decisivas.
Neste sentido, permita-nos que
lembremos a urgência de algumas políticas. Em primeiro lugar, a política do
respeito pelas pessoas e populações, ainda que suspeitas ou eventualmente
culpadas, a política da não-liquidação física do adversário, a política do
abandono de retaliações ou de represálias indiscriminadas.
A estratégia da violência física e
do desprezo pelo adversário e pelos possíveis suspeitos ou culpados tem levado
à prática indiscriminada de assassinatos, de crueldades e de maus-tratos. Tem
dado origem a atrocidades, a extermínios e a massacres. Tem permitido
julgamentos improvisados e execuções mais que sumárias e exemplares em
crueldade e primitivismo. Tem fomentado a arbitrariedade contra as populações,
por parte das Forças de Defesa e Segurança e das forças paramilitares.
Muitos têm sido, na verdade, os
abusos e os excessos cometidos pelas tropas e pelas milícias. Assassinatos,
fuzilamentos, maus tratos, crueldades, torturas, violações de mulheres, roubos,
pilhagens, destruições e inclusive massacres - tudo têm feito as Forças Armadas.
Teremos de acrescentar que muitas
das estruturas administrativas cometem, igualmente, arbitrariedades contra as
populações e contra o Povo a quem devem servir.
Esta violência contra o Povo e
contra as pessoas, ainda que suspeitas ou culpadas, deverá ser prontamente
denunciada, combatida e eliminada.
Pensamos que esta medida contra toda
e qualquer estratégia de violência arbitrária, de terrorismo ou de contra-terrorismo,
uma vez posta em marcha, muito poderá contribuir para a recuperação da
confiança do Povo e para a mobilização de novas energias na conquista da paz.
Por outro lado, o abandono das
políticas e das estratégias de violência, de liquidação e de vingança,
certamente que virá criar um clima mais propício e mais aberto ao diálogo, à
reconciliação e à paz. Este é', sem dúvida, o primeiro objectivo a ter em
conta.
De facto, o que está em causa não é
propriamente a derrota de uns e a vitória de outros, mas sim a vida do Povo, o
presente e o futuro do país.
Salvar o Povo, o Povo concreto,
real, histórico - o Povo de Moçambique ou deixar que o esmaguem e destruam:
esta a grande questão que no momento presente urge enfrentar e assumir.
Sabemos que esta perspectiva de
conversações entre as forças em presença levanta questões de difícil solução.
Cremos, porém, que nenhuma questão poderá ter mais peso do que a questão da
salvação do nosso Povo e da nossa Pátria.
A questão do poder e do regime, a
questão da ideologia ou do sistema se acaso existe - terá de passar a um
segundo plano, frente à urgência de salvarmos o Povo e o futuro da Nação.
A questão da salvação do nosso Povo
e do nosso país é sem dúvida a questão fundamental. Assumi-la é um dever de
todos os moçambicanos, estejam dentro ou fora do país.
Assumi-la é também optar pelos meios
que levem mais prontamente e mais dignamente ao termo da guerra e ao advento da
paz.
É optar pelos meios pacíficos, ou seja, pelo diálogo político, pela
verdade, a justiça, a dignidade, a liberdade, a reconciliação, a clemência e o
perdão.
Estamos certos de que Vossa
Excelência deseja seriamente esta política de diálogo como caminho para a
eliminação da guerra que nos aflige e para a consecução e instauração da paz em
Moçambique e em toda a região da África Austral.
Perdoe-nos, Senhor Presidente, o
nosso à-vontade e a ousadia desta longa exposição, e aceite as nossas sinceras
e cordiais saudações e os nossos votos de prosperidade na difícil mas nobre
missão que o Povo moçambicano em boa hora lhe confiou.
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