USAREMO e IGREJA LOCAL- 30.10.1975



RESPONSABILIDADE PASTORAL E IGREJA LOCAL - Reflexões
 - 30.10.1975-

Em reunião que efectuou em Maputo, em 29 e 30 de Agosto de 1975, a USAREMO (União dos Sacerdotes e Religiosos Moçambicanos), em documento publicado, afirmou textualmente:
"No trabalho a realizar aceitamos com agrado o apoio que os missionários estrangeiros nos podem prestar no crescimento da Igreja local. As opções fundamentais da Igreja em Moçambique cabem aos legítimos representantes da Igreja local, em comunhão com a Igreja universal”.
Neste contexto, impunha-se esclarecer três questões:
1ª- Que significa ser missionário estrangeiro na Igreja em Moçambique?
2ª - Qual o papel do missionário estrangeiro na Igreja em Moçambique?
3ª - Se "as opções fundamentais” cabem aos “legítimos representantes da Igreja local”, que se entende por “opções fundamentais” e quem são “os legítimos representantes” da Igreja local?
O presente texto, de 30 de Outubro de 1975, é uma reflexão sobre esta problemática, a propor na reunião da Conferência Episcopal de Moçambique (Anselmo Borges).

Em termos de Evangelização e de Pastoral, no contexto actual de Moçambique independente, a afirmação agora expressa no nº 3 do docu­mento emanado da Reunião da USAREMO, com data de 30 de Agosto de 75, põe-me algumas interrogações que eu desejava lealmente partilhar no sen­tido de encontrar em conjunto os caminhos que melhor possam servir a Igreja, chamada a ser verdadeiramente, no hoje de Moçambique, "sacramento universal de salvação» (L. G. 48, G. S. 40), poderoso "germe da unidade e esperança» (L. G. 9), povo de Deus "estabelecido por Cristo, como comunhão da vida, de caridade e de verdade» e por Ele "enviado a toda a parte como luz do mundo e sal da terra» (L. G. 9), como sinal "da liberdade, da paz» (Ad. G. 5) e "daquela fraternidade» que torna possível a solidariedade entre os homens de qualquer raça ou cultura eG. S. 92).
Diz o texto: "No trabalho a realizar aceitamos com agrado o apoio que os missionários estrangeiros nos podem prestar no crescimento da Igreja local. As opções fundamentais da Igreja em Moçambique cabem aos legíti­mos representantes de Igreja local, em comunhão com a Igreja universal».
Temos, portanto, três questões a esclarecer:
- Que significa ser missionário estrangeiro na Igreja em Moçambique?
- Qual o papel do missionário estrangeiro na Igreja em Moçambique?
- E, se "as opções fundamentais cabem aos legítimos representantes da Igreja local”, que se entende por “opções fundamentais” e quem são “os legíti­mos representantes de Igreja local”?

1. Quanto à primeira questão, julgo que todo o missionário não-nascido ou não-naturalizado em Moçambique reconhece, sem qualquer reserva, a sua condição de estrangeiro. Mesmo aqueles que, por força das estruturas colo­niais, se habituaram a sentirem-se em Moçambique como em própria casa, sabem que nos tempos novos Moçambique é felizmente um país indepen­dente e soberano e não estranham que lhes chamem estrangeiros. Por conse­guinte, nenhum missionário não-moçambicano se admira se lhe fazem notar a sua condição de estrangeiro. O problema surge da exclusão que, por razão da nacionalidade, possa nascer, tanto no seio da Igreja local como na comunidade política. Com efeito, na Igreja não há, em rigor, estranhos.

A fé e a comunhão no mesmo Cristo fazem desaparecer as barreiras de todos os tipos. Paulo aos Efésios diz-lhes claramente: «Lembrai-vos que nesse tempo estáveis sem Cristo, privados do direito de cidade em Israel e alheios às alianças da Promessa. Agora, porém, vós que, outrora, estáveis longe, vos aproximastes pelo sangue de Cristo. Ele é a nossa paz. Ele que de dois povos fez um só, destruindo o muro da inimizade que os separava. Já não sois hós­pedes, nem peregrinos, mas concidadãos dos Santos e membros de farru1ia de Deus (Ef 2). Em Jesus Cristo, o muro de inimizade está destruído; em Jesus Cristo, os homens de Moçambique - mais ainda os missionários - dei­xam de ser estranhos uns aos outros. Em Jesus Cristo não há judeu nem grego, não há servo nem livre, não há missionário moçambicano e missioná­rio estrangeiro, não há negro nem branco, pois todos são uma família (Gal. 3.28).

A Igreja é comunhão de vida, de caridade e de verdade, é germe da uni­dade, de esperança e de salvação (L. G. 9). É sinal de fraternidade universal (G. S. 92). É família de Deus (L. G. 6-7).
Em Igreja todos são radicalmente iguais. «Comum é a dignidade dos membros, comum a graça de filhos, comum a vocação à perfeição. Nenhuma desigualdade em Cristo e na Igreja por motivo da raça ou nação, de condição social ou de sexo- (L. C. 31).
A igualdade eclesial não exclui a diversidade de origem, de cor ou de cultura. Exclui, sim, toda e qualquer forma de discriminação.

Deste pecado, a Igreja do passado não está inteiramene ilesa. Devemos confessar abertamente que no tempo colonial a Igreja nem sempre denun­ciou a discriminação, o racismo, tanto no próprio seio como na sociedade política; nem sempre anunciou com palavras e gestos a igualdade fundamen­tal de todos os homens de Moçambique, a fraternidade que exclui toda a forma de paternalismo, de colonialismo, de separatismo social e cultural. Contudo, o pecado de ontem não pode justificar que os libertados de hoje caiam nas mesmas tentações. Continuaríamos a ofender gravemente a comu­nhão eclesial e a destruir no meio do povo o sinal da fraternidade que todo o homem de coração sincero procura encontrar. Seríamos o contra-testemunho de Evangelho que a Revolução moçambicana espera.

2. Temos agora uma segunda questão:
- Qual o papel do missionário estrangeiro em Moçambique?
Os padres, irmãs, irmãos moçambicanos dizem que «aceitam com agrado o apoio que os missionários estrangeiros lhes possam prestar no crescimento da Igreja local».
Em que consiste, porém, este apoio?
Alguém escreveu que «na África negra o Cristo está prisioneiro de um cristianismo de brancos».

Aceitando esta afirmação, há quem defenda a retirada maciça dos missi­onários brancos. O vazio provocado por esta retirada seria libertador. Daria aos africanos a ocasião de assumir efectivamente o próprio destino, e de serem eles mesmos.

 Não podemos negar que a evangelização muitas vezes colonizou mais do que libertou. Por outro lado, a ligação da evangelização à colonização foi um facto entre nós. Um facto que todos nós lamentamos e cujas consequên­cias teremos de sofrer por longo tempo. Muitos dos missionários estrangei­ros, traídos pelos condicionalismos de vária ordem, não agiram com sufici­ente respeito pela inteligência, liberdade, cultura das pessoas, dos grupos e dos povo? Tentaram construir partindo do zero, criar uma personalidade cristã, ignorando ou mesmo desprezando a personalidade africana. Onde tal evangelização se deu, o resultado foi desastroso. Abandono da «religião», recalcamento, agressividade, desejo de vingança, infantilismo, paternalismo são alguns dos frutos amargos que necessariamente teremos de colher. E à medida que o Povo moçambicano crescer na expressão de liberdade polí­tica, crescerá também na expressão da liberdade religiosa. Então a crítica às «missões coloniais» poderá ser mais profunda e mais radical. Então os missio­nários poderão ser postos mais em causa.

Mas deverão os missionários estrangeiros abandonar o campo de traba­lho, ou deverão permanecer, aceitando os riscos no desejo sincero de encon­trar, na experiência diária, a melhor maneira de partilhar a vida com o povo que luta pela sua liberdade integral, evangelizando deste modo e sendo evangelizados? Numa declaração feita no final do Sínodo, os bispos de África e Madagáscar, ao mesmo tempo que sublinham a aspiração dos Africanos a tomar nas próprias mãos o seu destino, denunciam um evidente e conta­gioso desalento de parte dos missionários vindos de outras Igrejas-irmãs, missionários que se interrogam sobre o significado e o futuro do seu aposto­lado em terras de África, e concluem:

"Diante de tal situação parece oportuno chamar a atenção sobre a comu­nhão e a co-responsabilidade na Igreja. A ideia da comunhão e de corresponsabilidade na Igreja fazem parte da mensagem no Novo Testamento. Se há diversidade de dons, de ministérios, de operações, não há senão um só Deus que opera tudo em todos. A manifestação do Espírito é dada a cada um para a utilidade comum (l Cor. 12, 4). Por isso, os bispos de África e Madagáscar denunciam, como contrário ao Evangelho e ao ensinamento autêntico da Igreja, qualquer gesto, palavra ou escrito que possa impedir a cooperação entre velhas e novas igrejas. Esta tomada de posição clara e nítida deveria bastar para reavivar o entusiasmo missionário daqueles que acreditam ainda na possibilidade de servir a Igreja no interior do próprio país ou nos países estrangeiros- (IV Sínodo Dei Vescovi, Le nuove vie del Vange!o, pág. 286). A cooperação entre velha e novas igrejas a nível de pessoas e de meios foi um tema debatido durante o Sínodo. Várias conferências episcopais intervieram. Mons. Yago, Arcebispo de Abidjan, Costa do Marfim, afirmou, em nome da sua Conferência, que «os responsáveis das novas igrejas, conscientes da urgência tanto de meios como de pessoal, saberão acolher, conforme a lei de hospitalidade africana, o missionário como um irmão e como um amigo e criar entre o sacerdote local e o sacerdote estrangeiro uma atmosfera de caridade e de fraterna colaboração» (IV Sinodo dei Vescovi, Le nuove vie del Vange!o, pág. 97).

Por sua vez, Mons. Thiandoum, Arcebispo de Dakar, fez um apelo aos missionários, dizendo que «a evangelização é obra de Deus e dos homens e que o acento posto sobre a personalidade da Igreja local em nada diminui a cooperação missionária». E a terminar a sua intervenção sinodal, declara: «É necessário sermos nós mesmos, mas em conjunto com os outros» (IV Sinodo dei Vescovi, Le nuove vie del Vange!o, pág. 245). Parece, portanto, que a cooperação missionária entre velhas e novas igrejas não está em causa. Reduzir a evangelização em Moçambique aos cristãos de Moçambique seria empobrecer gravemente a comunhão e a catolicidade eclesial. Mas, se a cooperação não está em causa, está sem dúvida em causa o modo de a realizar. Num país onde, felizmente, já não há direcção administrativa estrangeira, os missionários não-moçambicanos deverão ceder fraternalmente os lugares de direcção aos cristãos autóctones.

A Igreja em Moçambique necessita de se descolonizar rapidamente e de assumir, a partir das próprias raízes, uma fisionomia e uma expressão africanas. Nenhum missionário estrangeiro põe em dúvida esta exigência. Animados pelo espírito de serviço, de bom grado verão nos primeiros lugares de responsabilidade pastoral os cristãos moçambicanos. Permanece, no entanto, a pergunta: como cooperar nesta Igreja e neste "hoje» de Moçambique?

A Assembleia Geral da USAREMO fala em apoio. "Aceitamos de bom grado o apoio que os missionários estrangeiros nos podem prestar”. Que sig­nifica este apoio? Qual a sua dimensão, a sua práxis?
Os bispos de África e de Madagáscar falam em «corresponsabilidade», «colaboração», «cooperação» Que dizer aos missionários estrangeiros para os situar num trabalho pastoral que os faça experimentar a comunhão eclesial, o sentido de responsabilidade e de criatividade, muito embora ocupando lugares subalternos? Que fazer para que os missionários estrangeiros não deixem de sentir em Igreja a igualdade fundamental dos filhos de Deus e não venham a cair na tentação de se considerarem de algum modo margina­lizados? Seja qual for a forma de cooperação, um princípio se deve tornar, sem dúvida, cada vez mais claro e mais dinâmico: as igrejas africanas devem caminhar mais e mais para uma autonomia, para uma dinâmica e expressão próprias. Passou o tempo das missões; chegou o tempo de comunhão. «A Igreja não é uma organização uniforme, é a comunhão de comunhões», dizia Mons. Sangu, no Sínodo. O missionário não é mais o homem que vem para ensinar, para construir uma Igreja segundo modelos prefabricados; é o homem que vem para viver-com, para partilhar, para cooperar na construção de uma Igreja de raiz, de estrutura e de expressão africanas.

3. Surge-nos por fim uma terceira questão:

- Que se entende por opções fundamentais e quem são os legítimos representantes da Igreja local?
Com efeito, a Assembleia Geral da USAREMO afirma: «As opções funda­mentais da Igreja em Moçambique cabem aos legítimos representantes da Igreja local, em comunhão com a Igreja universal».
Quererá isto dizer que a «africanização» da Igreja em Moçambique cabe aos africanos?
Também eu, com os bispos de África e Madagáscar, afirmo a necessi­dade de africanizar a Igreja em Moçambique. Mas, africanizar concretamente a Igreja em Moçambique significa, antes de mais, libertá-la das opressões ocidentais e coloniais onde quer que elas se verifiquem. E, se quisermos ser honestos, teremos de confessar que a formulação da teologia, da pastoral, da legislação económica tem sido, até agora, mais opressiva que libertadora da alma africana. A expressão da Igreja local é, na maioria dos casos, tragicamente estrangeira.

Não falamos já das estruturas que, desde a sua concepção até aos servi­ços que suportavam, apareciam distantes do povo e estranhas por completo ao meio ambiente.
Entre nós, impõe-se um longo e criterioso trabalho de desocidentalização e descolonização da Igreja. Sem esta difícil, mas importante, tarefa de base, a Igreja em Moçambique, continuará a correr o perigo de ser vista e sentida como filha do Ocidente e irmã do colonialismo. Poderá tal tarefa ser levada a cabo exclusivamente por moçambicanos? Creio que não. Eles mais do que ninguém têm na verdade uma sensibilidade que lhes permite descobrir facilmente o que há de opressivo na edificação da Igreja em Moçambique. Mas não poderão os missionários estrangeiros ajudar a detectar os vícios, os abusos, a linguagem, os ritos, as práticas inúteis e a salvaguardar ao mesmo tempo o universalismo do Evangelho e a comunhão com todas a igrejas?
Mais do que libertar, africanizar significa tornar a Igreja capaz de se exprimir em categorias africanas.

Na terceira assembleia plenária, em Kampala, Agosto de 72, os bispos chamavam a atenção para o perigo da palavra africanização se tomar um mito. E concluíam: «No contexto de um desenvolvimento de África verdadei­ramente africano, o Simpósio encoraja toda a forma de estudo, de investiga­ção, capaz de enriquecer o conhecimento da antropologia, sociologia afri­cana, das religiões tradicionais, ritos e cerimónias da sociedade africana. Deseja, além disso, que tal investigação não seja teorética, mas contribua efectivamente para a solução africana dos problemas de desenvolvimento e da evangelização. Deseja ainda que os peritos se convençam, como peritos e como cristãos, de que dão, com esta investigação, um contributo original e necessário à Igreja universal» (loc. cit., pág. 48).

Paulo VI, em Kampala, Agosto de 69, falou de um «cristianismo africano» no sentido de que «os africanos possuem valores humanos e formas caracte­rísticas de cultura, susceptíveis de encontrar no cristianismo e pelo cristia­nismo uma superior e genuína plenitude e de demonstrar a sua validade atra­vés de ricas expressões próprias, tipicamente africanas» (loc. cit. pág. 29).

Segundo a declaração dos bispos ao longo do Sínodo, a africanização não se identifica com a «indigenização» e a «localização». Estas, bem como a adaptação de que fala o Concílio Vaticano II, seriam etapas no caminho de uma verdadeira africanização. Estariam mais na linha da pastoral do que na linha da teologia; mais em relação com os fiéis, no sentido de lhes proporcio­nar uma melhor compreensão e aceitação do Evangelho, do que em relação com a própria mensagem cristã no sentido de a tornar mais africana da cul­tura e religião africanas.
"Não basta que o anúncio do Evangelho tenha em conta a mentalidade e os valores culturais de África. Não basta formular a mensagem cristã numa linguagem acessível. Hoje requer-se uma precisa integração dos valores afri­canos, através dos quais se deve chegar a uma inteligência e a uma interpre­tação dos dados da fé. O problema põe-se, portanto, a nível teológico. Uma teologia africana que responda às interrogações doutrinais e morais e que ori­ente aquela acção pastoral, exigida pela condição africana de hoje» (loc. cit., pág. 305).

Uma correcta africanização da Igreja deve contudo evitar o perigo de nacionalismos fechados e o erro de considerar a teologia segundo a raça, a tribo ou a cor. O carácter universal do cristianismo não poderá ser esquecido, nem diminuído. Ao contrário, pela africanização, a Igreja deve aparecer manifestamente mais católica. Isto é, mais universal e mais rica em expres­sões de vida.
Assim entendida, a africanização compete sobretudo aos africanos. Preparados tecnicamente e tendo como ponto de partida as comunida­des, serão eles os primeiros obreiros duma Igreja de expressão africana, tanto a nível da teologia, co o da liturgia, das instituições e da práxis. Nisto têm razão os moçambicanos, quando reclamam para si a incumbência de pensar a Igreja.
Mas, se o carácter universal da Igreja não pode estar ausente de uma válida e corrente africanização, a corresponsabilidade dos missionários estrangeiros deverá ser desejada não só como um dado positivo da comu­nhão, mas ainda como possível ajuda no campo da investigação e da experi­ência. A africanização da Igreja em Moçambique é um imperativo urgente.
Uma Igreja de rosto ocidental e profundamente marcado pelas rugas coloniais corre o perigo de ser expulsa do coração do Povo moçambicano que nasce. Impõe-se, portanto, uma africanização da Igreja de Moçambique, a nível de quadros, da inteligência e da experiência da fé; a nível de institui­ções e da presença cristã na revolução em curso.
Serão neste caso os moçambicanos os primeiros evangelizadores dos moçambicanos; mas, por exigência da própria catolicidade da Igreja, não poderão ser os únicos.

4. Se por «opções fundamentais» se entende a escolha que a Igreja tem de fazer face à revolução concreta que o Povo moçambicano está a viver na própria carne, então compete a toda a Igreja em Moçambique optar. Não falo da opção de um partido, por uma ideologia ou por um regime. Seria reduzir tragicamente o Evangelho e tornar a Igreja mais uma vez ambígua. Seria esvaziar a mensagem da graça libertadora e da sua função crítica de todos os ídolos. Seria esquecer a novidade radical de Jesus de Nazaré, para cair no oportunismo ou na reacção. Falo da opção pelo povo. Não por um povo abstracto mas por um povo concreto, situado no tempo e num dado espaço político, social, económico e cultural. É evidente que a opção pelo povo como ele é, como ele vive este momento da história de Moçambique, implica renúncias nem sempre fáceis. Mas não diz o Concílio que a Igreja «não coloca a sua esperança nos privilégios e que está disposta a renunciar ao exercício de alguns direitos legitimamente adquiridos quando verificar que o seu uso põe em causa a sinceridade do seu testemunho ou que novas condições de vida exigem outras disposições» (GS 76)?

Optar pelo Povo significa efectivamente renunciar não só aos privilégios mas a todos os esquemas de algum modo incompatíveis com as justas exi­gências do tempo novo de Moçambique. Significa mais ainda a denúncia de todos os sistemas opressivos, de todas as estruturas de domínio, de todas as classe exploradoras, de todas as ideologias totalitárias. Significa anúncio da liberdade pascal dos oprimidos - liberdade que tem a sua raiz no triunfo de Cristo sobre o pecado e sobre a morte - e compromisso com as tarefas políti­cas, sociais, económicas, culturais, verdadeiramente libertador. Significa parti­lha da Palavra, do Pão, da amizade e da esperança com os pobres que lutam para superar a miséria de várias faces e com os pobres que não sabem ou nem querem lutar porque se tornaram inteiramente alienados.

Esta opção pelo povo de pobres - que é o Povo de Moçambique - não dispensa a Igreja de trabalhar - sobretudo a nível de actividades colectivas ­para que os sistemas que produzem a miséria, opressão, o medo, a distância psicológica, social, religiosa desapareçam (também as estruturas eclesiásticas e eclesiais) e dêem lugar a sistemas que produzam a dignidade, a igualdade, a liberdade, a fraternidade, a solidariedade, a concórdia, a comunhão e a ale­gria.

A Igreja em Moçambique não pode desconhecer o processo que tenta libertar o povo; não pode situar-se fora da história em atitudes de oração, de receio, de desconfiança ou então em atitude de cruzada. A Igreja, porque é força libertadora, mercê do triunfo da vida sobre a morte que nela acontece sempre que celebra a Páscoa, não pode deixar de se meter, como fermento, na construção da história do Povo moçambicano. Só assim terá lugar em Moçambique. Só assim gozará de credibilidade no coração do Povo. Perante a revolução que dia a dia se torna mais profunda, a Igreja não poderá ser neutra. A história diz-nos que a neutralidade da Igreja, relativamente ao Poder, frequentemente degenera em compromisso. Não se meter em política significou, em tantas situações históricas, estar com o poder que mais garantias oferecesse. Estamos ainda no princípio. Passaram apenas cinco meses após o Dia da Independência. Mas a Revolução é já muito profunda e os desafios à Igreja são já muito claros.

5. Se por «opções fundamentais» se entende a formação e programação das grandes linhas pastorais que urge traçar a nível da Igreja em Moçambique e a nível das igrejas particulares, a responsabilidade de tais linhas cabe ao próprio povo de Deus em crescimento, particularmente aos bispos a quem o Espírito confiou o encargo de apascentar as igrejas (Act 20, 28). Com efeito, a estabilidade de uma Igreja local depende profundamente da autono­mia que num dado contexto ela experimenta, não só a nível da expressão da fé, da celebração da eucaristia e do consequente amor fraterno, mas também a nível de ministérios e de compromisso na construção da história. Neste sen­tido, a Pastoral não pode limitar-se aos padres mas terá de aparecer como obra de todo o Povo de Deus, reunido e animado pelo Espírito. Mercê, porém, do ministério que o Espírito lhes confiou, em favor da comunidade, os bispos terão de ser os primeiros responsáveis das «opções fundamentais», na medida em que estas signifiquem alguma coisa para as igrejas a que presi­dem.

Aos bispos, como sucessores dos apóstolos, compete o dever de dirigir a Igreja em comunhão com o Papa e com todo o Povo de Deus (LG 22). Cada bispo a quem é confiada uma Igreja particular exerce, em favor da mesma, o múnus de ensinar, santificar e governar (CD 11), presidindo deste modo à comunhão. À face da teologia, os bispos independentemente da cor ou da raça, são legítimos representantes da Igreja a que presidem por mandado do Espírito.

6. Se, porém, se entendesse por «legítimos representantes da Igreja local apenas os moçambicanos, então deveríamos lealmente perguntar:
- Qual a competência dos Bispos estrangeiros, actualmente à frente da maioria das dioceses de Moçambique, quando se trata de fazer «opções fundamentais»?
- Se aceitamos que os «legítimos representantes da Igreja local» são, neste momento, os moçambicanos, por que não lhes confiar efectiva­mente a direcção da Igreja e a orientação da Pastoral e da Evangelização?
Isto exigiria, por um lado, que os missionários estrangeiros deixassem de exercer funções directivas. Estariam neste caso, particularmente, os bispos, tanto a nível das dioceses a que presidem como a nível da Conferência. Exigiria, por outro lado, que os moçambicanos assumissem efectivamente a direcção da Igreja em Moçambique. Contudo, haveria que evitar a tentação:
- de sacrificar a qualidade à necessidade de preencher quadros o mais depressa possível;
- de colocar a conveniência acima do Espírito;
- de subordinar a expressão actual das comunidades e estruturas a esquemas ultrapassados.

Conclusão:
Ao elaborar esta reflexão, tive um fim em vista: ajudar a Igreja local a encontrar os caminhos que lhe permitam aparecer, no hoje de Moçambique, como um sinal eficaz de Vida oferecida a cada homem e celebrada em cada Páscoa. 

Manuel
Bispo de Nampula

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